quinta-feira, janeiro 07, 2010

CINEMA: ÁGORA

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ÁGORA
Alexandria, no séc. IV, era uma cidade charneira no Médio Oriente, e essa época era igualmente um período de profundas transformações políticas, sociais e religiosas. Alexandria era uma cidade situada no Egipto, administrada pelo Império Romano, onde se cruzavam várias culturas e diversas religiões. É sabido que a convivência entre religiões não é quase nunca pacífica, e muitas vezes os políticos servem-se disso para inflamar os ânimos e provocar a violência e a guerra. Nunca de uma forma ingénua, acrescente-se. As guerras santas são as mais hipócritas e indefensáveis das guerras. Mas muitas das mais sangrentas guerras da História da Humanidade tiveram justificações religiosas, quando o que estava sempre em jogo eram questões de lutas pelo poder. Em Alexandria tal também aconteceu, como o demonstra, de alguma forma, “Ágora”, de Alejandro Amenábar, segundo um argumento escrito por si e por Mateo Gil, tendo como personagem central e aglutinadora de factos a figura de Hipátia (Rachel Weisz), mítica matemática, filósofa, astrónoma e professora.
O filme decorre nos últimos anos do século IV e inícios do V (Hipátia é assassinada em 415) e mostra-nos, em termos gerais, as lutas pela supremacia religiosa na região. O Império Romano tinha-se cristianizado, mas em Alexandria coexistiam diversas crenças, com uma relativa liberdade de culto. Os deuses antigos do Egipto conviviam com o Cristo de Judeus e Cristãos. Estes haviam sido violentamente perseguidos durante séculos, mas conseguiram impor-se. Não contente com ser aceite, e mesmo proclamada a religião oficial dos Romanos, a Igreja Católica procura agora ser hegemónica, sendo necessário para isso ilegalizar todos os outros cultos e exterminar os seus seguidores. O filme inicia-se em 391 e assinala o momento mais aceso da luta pelo poder entre adoradores de Osíris, Íris e Horus, os judeus das sinagogas e os cristãos das catedrais. Não é uma luta de palavras e de crenças, mas uma luta armada com as armas que tinham na mão. O representante de Roma procura manter uma certa neutralidade, apesar de se dizer cristão, mas no resto cada um procurava tirar desforço e vingar-se do que o ou os rivais haviam feto anteriormente. Nada de dar a outra face às agruras da agressão. Antes o quem com ferro fere, com ferro morre. Portanto, em escalada. Os cristãos que tinham criado os “parabolanos”, uma espécie de exército de salvação para ajudar os desvalidos, transportar doentes, tratar dos leprosos, etc., tudo coisas da maior grandeza espiritual e do mais sagrado humanismo, cedo esqueceram essas tarefas e transferiram a multidão desse corpo de soldados, que chegou a atingir os 800 elementos, para outro tipo de tarefas: perseguir “bárbaros” (o “bárbaros” são sempre os outros, os que não são como nós), destruir tempos pagãos (ou seja, os que professam uma crença que não é a nossa), assassinar e prender os ímpios (mais uma vez os “outros”) e impor a sua crença (porque acreditam que ela é “a verdadeira” e, como tal, tem de ser a “única”, logo imposta, se necessário for). Primeiro anularam-se as crenças primitivas que já vinham do antigo Egipto e assinalavam a ligação do Homem à Terra, e eram de certa forma femininas e matriarcais. Depois os judeus encurralados agrediram os cristãos que ripostaram e limparam o terreno, levando tudo à frente, templos destruídos e até a importante biblioteca, onde se guardava toda a sabedoria do mundo, incendiada e esventrada. Estátuas e monumentos, templos e papiros tudo voou na voragem da intolerância. A horda assassina de cristãos era fundamentalmente constituída pelos “parabolanos”, a guarda do patriarca, mas muitos historiadores falam igualmente de monges e outros clérigos que conseguiram inflamar as mentes da populaça. Foram eles que conduziram os assaltos e a pilhagem e propagaram a destruição. Este o quadro geral.
O pormenor: Hipátia.
Pouco se sabe de Hipátia de Alexandria, com base em documentação histórica factual. A totalidade dos seus escritos desapareceu (alguns historiadores falam apenas na sobrevivência de dois manuscritos que sobraram, duas revisões de obras do pai, mas nada assegura que sejam da sua mão). O que se sabe é por portas e travessas e muito através da correspondência que Sinésio, um aluno seu, manteve com ela ou com outros colegas de aulas. Não se sabe quando nasceu, apenas se avançam datas possíveis. Sabe-se que morreu em 415 e que dava aulas muito frequentadas por alunos pertencentes à elite de Alexandria (e arredores), nas décadas de 380 e 390 (continuando até à data da sua morte). Uns afiançam que morreu com cerca de 60 anos, outros um pouco mais nova.
Hipátia parece ter sido uma astrónoma notável para o seu tempo, uma matemática inspirada, uma filósofa com um instinto de curiosidade e de compreensão do mundo notáveis, e sobretudo uma mulher muito especial para a época. Num mundo dominado pelos homens (e que seria depois cada vez mais patriarcal em certos aspectos), ela conseguiu sobressair de forma invulgar, ser ouvida nos negócios da cidade, respeitada e olhada com admiração por iguais e alunos. Apesar de alguns inimigos seus a fazerem passar por bruxa e feiticeira e outros lhe chamarem prostituta, particularmente em virtude do seu relacionamento com um aluno em especial, Oreste, que viria mais tarde a ser o representante de Roma em Alexandria, Hipátia jurou não manter qualquer tipo de relações mais íntimas com nenhum humano. Ela casara com a ciência, com a astronomia, e parece que era assim feliz, até se iniciarem as perseguições. Há mesmo um episódio na sua vida muito sintomático, e que aparece no filme, referindo-se a Oreste, mas que aconteceu com outro aluno (uma liberdade narrativa que reuniu num só pretendente factos pertencentes a dois, o que tem de se admitir numa obra que não é precisamente um documentário). Na verdade, segundo relatos de um tal Damáscio (1), um jovem aluno de Hipátia, perdidamente enamorado da professora, conseguiu a coragem necessária para se declarar. Esta resolveu castigá-lo. No dia seguinte trouxe-lhe uma prenda, um pano contendo o sangue da sua menstruação, e perguntou-lhe” É isto o que na realidade amas?”. Mostrou-lhe assim a dimensão física do corpo, ao lado da beleza inexpugnável dos conceitos da matemática ou da filosofia. Discutível, claro, mas uma forma de afirmar a sua invulnerabilidade aos prazeres carnais.
O filme de Alejandro Amenábar vai buscar esta mulher para o centro do seu “Ágora” alexandrino e é ela que serve de fio condutor às peripécias políticas e religiosas que marcaram aquele tempo e que haviam de a marcar a ela. Acompanhamos as suas aulas, o seu gosto pela astronomia (e pela astrologia, nesta altura duas disciplinas que se confundiam), a discussão sobre as teorias de Ptolomeu, a forma como impunha uma convivência tolerante nas suas aulas (onde todos os alunos eram “companheiros” e “irmãos”, apesar das suas diferenças religiosas), a maneira como convivia com os escravos, sobretudo com Davus, o seu escravo pessoal, as suas conversas e trocas de ideias com Theon, seu pai e director da importante biblioteca de Alexandria, a sua importância como personalidade da cultura e da política na cidade. Até ao dia em que se tornou indesejável, por tudo isso, perante os fanáticos religiosos, que viam nela um obstáculo ao seu completo domínio. Ela representava a voz da tolerância e da diferença, ela era aquela que defendia a coexistência, ela era o grão de areia que impedia a engrenagem de avançar a todo o vapor numa só direcção. Por isso aproveitaram-se de uma oportunidade, um pretexto, uma inventona, chamaram-lhe bruxa, foram-na buscar a casa, arrastaram-na pelos cabelos até ao tempo mais próximo, onde a desmembraram e cortaram a cabeça, uns dizem que a esfolaram viva, todos são unânimes em afirmar que a humilharam e a destruíram, antes de conduzirem os restos para o centro de uma praça e para o cimo de um fogueira. Em Nome de Deus.
Estas lutas religiosas, como começou por se dizer, são as mais sangrentas e as mais dolorosas. O filme de Amenábar procura mostrar isso mesmo e não se ficar por relatar um caso exemplar da Antiguidade Clássica (precisamente o momento em que, para muitos, termina a Antiguidade Clássica e começa a Idade Média). Obviamente que lhe interessa documentar de que forma caem certas civilizações e sobre esses escombros outras se erguem, como se estabelecem certos ciclos culturais, religiosos, civilizacionais, como se atinge o poder e se procura manter o mesmo, de como as ditaduras surgem, com base da mentira, na propaganda, no medo. Obviamente que é esse um dos seus intentos, mas não o único. O bando de “parabolanos” não é por acaso que se vestem de uma forma que se confundem com os modernos talibãs. Aliás, é o próprio cineasta que o confessa em entrevistas: ele queria um guarda-roupa que distinguisse facilmente cristãos de Judeus e de alexandrinos e, mais do que isso, pediu à figurinista que criasse uma associação entre os “parabolanos” cristãos que assaltavam o poder e os talibãs de agora (que assaltam igualmente o poder mundial, e procuram destruir o Ocidente). A metodologia é a mesma, as intenções idênticas. Destruir para reinar, criar a terra queimada para sobre ela lançar uma nova semente. A ver vamos.
Sobre o filme muito há a dizer, ainda que, desde já, e apesar de todas as boas intenções e algumas qualidades, esta me parecer a menos conseguida de todas as obras de Amenábar (“Tesis”, “Abre os Olhos”, “Os Outros” e “Mar Adentro”). O cineasta pretendeu construir uma obra na melhor tradição dos filmes históricos que ficaram na recordação dos anos 60, como “A Queda do Império Romano”, “Spartacus”, “Barrabás”, “Ben Hur”, “Lawrence da Arábia” ou “Lord Jim”. Para o conseguir foi ao ponto de reconstruir grande parte de Alexandria, em Malta, e de utilizar muito pouco imagem digital (afirmando que assim tudo seria mais real). O orçamento subiu até aos 50 milhões de euros, metade do qual para cenários. O resultado é bom, mas não é brilhante, apesar de algumas cenas de exteriores, no ágora e nas ruas, serem bem conseguidas, e haver alguns interiores bem trabalhados. Mas curiosamente a movimentação das multidões, onde não há muita utilização de digital, parece paradoxalmente falsa, assim como a interpretação da maioria dos actores não é convincente, com excepção de Rachel Weisz, muito boa, e do eficaz e sóbrio Michael Lonsdale (Theon). Nestas condições, muito embora o significado da metáfora política e religiosa, “Ágora” coloca-se mais perto dos “peplums” italianos da mesma época do que das obras de Kubrick, Mann, Wyller ou Brooks.

(1) Muito interessante será ler “Hipátia de Alexandria”, da polaca Maria Dzielska, recentemente editado pela “Relógio d’ Água”.
:ÁGORA
Título original: Agora
Realização: Alejandro Amenábar (Espanha, Malta, 2009); Argumento: Alejandro Amenábar, Mateo Gil; Produção: Álvaro Augustín, Fernando Bovaira, Simón de Santiago, José Luis Escolar, Jaime Ortiz de Artiñano; Música: Dario Marianelli; Fotografia (cor): Xavi Giménez; Montagem: Nacho Ruiz Capillas; Casting: Jina Jay, Edward Said; Design de produção: Guy Dyas; Direcção artística: Dominique Arcadio, Matthew Gray, Stuart Kearns, Jason Knox-Johnston, Frank Walsh; Decoração: Larry Dias; Guarda-roupa: Gabriella Pescucci; Maquilhagem: Marcelle Genovese, Graham Johnston, David Martí, Jan Sewell, Suzanne Stokes-Munton; Direcção de Produção: Carlos Ruiz Boceta, Oliver Mallia, Gina Marsh; Assistentes de realização: Luis Casacuberta, Javier Chinchilla, Pierre Ellul, José Luis Escolar, Julian Galea, Ben Lanning, Mónica Sánchez, Carlos Santana; Departamento de arte: Lino Chetcuti, Bonello Chris; Som: Tom Sayers; Efeitos especiais: Kenneth Cassar; Efeitos visuais: Félix Bergés; Companhias de produção: Mod Producciones, Himenóptero, Telecinco Cinema, Canal+ España, Cinebiss; Intérpretes: Rachel Weisz (Hipátia), Max Minghella (Davus), Oscar Isaac (Orestes), Ashraf Barhom (Ammonius), Michael Lonsdale (Theon), Rupert Evans (Synesius), Richard Durden (Olympius), Sami Samir (Cyril), Manuel Cauchi (Theophilus), Homayoun Ershadi (Aspasius), Oshri Cohen, Harry Borg, Charles Thake, Yousef 'Joe' Sweid, Andre Agius, Paul Barnes, Christopher Dingli, Clint Dyer, Wesley Ellul, Angele Galea, George Harris, Jordan Kiziuk, Ray Mangion, Samuel Montague, Alan Paris, Christopher Raikes, Amber Rose Revah, Charles Sammut, Nikovich Sammut, Juan Serrano, etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Dezembro de 2009.

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