sábado, agosto 14, 2010

CINEMA: WERNER HERZOG 1

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MEU FILHO, OLHA O QUE FIZESTE!

Mark Yavorsky foi um excelente aluno, um bom basquetebolista na Universidade de San Diego, um promissor estudante de arte dramática na UCSD, um actor com futuro no Old Globe Theatre, e houve professores que asseguraram que escrevia brilhantemente e se expressava de forma poética muito acima da média. Chegou a ensaiar Ésquilo, o trágico grego, tendo-lhe sido atribuído o papel central de Orestes, em “A Trilogia de Orestes” ou “Oresteia” (458 A.C.), composta por “Agamemnon”, “Coéfora” e “Euménides”.
Esta tragédia baseia-se na mitologia grega e parte da lenda de uma maldição familiar: Agamemnon mata a filha Efigénia em sacrifício aos deuses, e a mulher, Clitemnestra, como represália e de colaboração com o amante, Egisto, assassina o marido, quando ele volta, triunfante, da guerra de Tróia. Na segunda parte da trilogia, Orestes, filho de Agamemnon e de Clitemnestra, vinga a morte do pai, assassinando por sua vez a mãe, sendo por isso “enlouquecido pelas Fúrias”. Na terceira parte, “Euménides”, Orestes é julgado pelo seu acto e absolvido pela acção de Atena, a deusa da sabedoria e da razão, que procura assim pôr fim a esta interminável espiral de vingança.
Mark Yavorsky, porém, duas semanas antes da estreia da peça, no Old Globe Theatre, abandona o papel e precipita-se num processo psicótico extremo. No dia 10 de Junho de 1979, Mark Yavorsky, então com 34 anos, atravessa com a mãe (Mary Wathan, 65 anos) a rua onde se encontra a casa onde ambos habitavam, em Point Loma, Pacific Beach, San Diego, e vai tomar um café com duas vizinhas que moram em frente. Não aceita a chávena que lhe põem na frente, e volta a casa para buscar a sua chávena de estimação.
Regressa, toma o café, vai ao carro estacionado em frente, buscar uma espada antiga e desfere três golpes mortais na mãe. Preso, julgado, condenado, é considerado inimputável, e passa vários anos no Patton State Hospital em San Bernardino County. Libertado sob vigilância anos mais tarde, tem um percurso caótico de internado e fugitivo, até que morre em 2003.
Trinta anos depois da tragédia, o argumentista Herbert Golder descobre esta perturbante história de loucura, que mescla realidade e ficção, tragédia e lenda, escreve-a para cinema e passa-a ao seu amigo Werner Herzog, que encontra nela todos os ingredientes, temas e obsessões da sua carreira. Michael Shannon, que se tornara notado como um actor brilhante em “Revolutionary Road”, é convidado para interpretar o papel de Mark Yavorsky, agora sob o nome de Brad McCullum, acompanhado por um elenco de actores de culto (Willem Dafoe, Chloë Sevigny, Brad Dourif, Loretta Devine, Michael Peña ou Udo Kier). David Lynch produz (os bons espíritos encontram-se!) e o filme chama-se, muito apropriadamente, tendo em conta a sua influência da tragédia grega, “My Son, My Son, What Have Ye Done”.
O filme de Herzog é, como sempre neste realizador, uma obra estranha, consumida por uma obsessão patológica, por um anti-herói que cruza religiosidade e paranóia, que entrelaça ficção e realidade, e onde, como o cartaz anuncia, “não interessa tanto saber quem, mas como”, ou seja, não importa muito conhecer a personagem, descobrir o criminoso, mas sobretudo perceber o porquê dos actos. Isto é: um estudo das condicionantes que levam personalidades especiais a praticarem certos actos. Neste particular, o filme constrói-se a diversos níveis, o que aponta para variadas razões que, interligadas, explicam (ou ajudam a explicar) o “porque fizeste isto!”
A investigação policial não deixa desde logo qualquer dúvida sobre o que mobiliza o realizador. Desde o princípio se sabe quem é o criminoso e qual o crime. A vítima jaz, facilmente identificada, no chão de uma casa, a arma está a seu lado, houve testemunhas que contam o ocorrido, e o criminoso está entrincheirado na casa ao lado. Não há dúvidas sobre os factos. Há perplexidades sobre o porquê.
Brad McCullum vive só com a mãe, o pai morreu quando ele era muito criança, praticamente nunca o conheceu. A mãe é possessiva e dominadora, mas o filho coopera, aceita. Uma matriarca insuportável. Que o filho segue religiosamente. Ela controla cada um dos seus passos. Sabemo-lo pelo relato de duas pessoas que são chamadas ao local do crime pelo próprio Brad McCullum: a namorada e o encenador de teatro que o dirigiu no papel de Orestes. Duas personagens essenciais, obviamente, pelo seu relacionamento íntimo com o acusado pelo matricídio. A namorada Ingrid porque, de alguma forma, representa para a mãe o perigo de Brad McCullum se emancipar e se furtar ao seu domínio. Lee Meyers por uma razão algo diversa, dado que acabou por assumir esse papel transgressor de violento libertador: foi ele quem afinal acabou por “ensiná-lo”, armar-lhe o braço, encenando-lhe a morte da mãe em palco. Ambos vão intercalando “flashbacks” que des-obscurecem, desocultam momentos de uma relação funesta.
Mas há, como referimos, várias camadas de ficção que se sobrepõem: a realidade do dia a dia opressivo da existência de Brad e da mãe, o texto da tragédia de Ésquilo, a investigação levada a cabo pelo detective Hank Havenhurst, os depoimentos de Ingrid e Lee Meyers, os testemunhos das vizinhas que presenciaram o crime, e outros aspectos ainda, não factuais, mas obviamente importantes, como o cenário onde decorre a acção, desde a pacata rua de uma pacífica cidade costeira, até à delirante decoração da casa de Brad, assombrada por imagens de flamingos e um “kitsch” surrealizante. Há ainda a impetuosa representação de Michael Shannon, que intercala momentos de aparente lucidez com outros de total insanidade, o “flashback” que recorda a viagem de Brad McCullum ao Peru, onde, depois de “ter ouvido vozes”, se recusa a integrar uma expedição suicida que irá tentar dominar o rio Urubamba, no Peru (local onde Herzog já havia rodado, em 1972, "Fitzcarraldo”). Depois há as fascinantes e intrigantes imagens que se assemelham as fotografias, estáticas, com os intervenientes olhando directamente a câmara, e também as referências obsidiantes ao universo muito pessoal de Herzog, os animais, os vidros, os anões, as personagens obsessivas, os heróis que transpõem obstáculos que parecem exceder todas as suas possibilidades, o gosto por ambientes exóticos, expressionistas, o deslumbramento pela América Latina, a súbita deriva por uma feira rural na Mongólia (ou noutro local muito semelhante), tudo isto induzindo uma atmosfera de estranheza e trágico onirismo.
Não são tanto os factos que interessam, mas o clima. Aqui a arte de Herzog é completa. O seu domínio perfeito. A angústia desenrola-se, a cada plano. A fronteira entre a “normalidade” e a insanidade estreita-se. O que pode a fragilidade da condição humana contra o destino traçado pelas “fúrias”? Em plena presença da tragédia humana, grega ou americana, Herzog movimenta-se sem artifícios, logrando um fortíssimo documento de insuspeitada ressonância social.

MEU FILHO, OLHA O QUE FIZESTE!
Título original: My Son, My Son, What Have Ye Done
Realização: Werner Herzog (EUA, Alemanha, 2009); Argumento: Herbert Golder, Werner Herzog; Produção: David Lynch, Jimmy Balodimas, Eric Bassett, Bingo Gubelmann, Benji Kohn, Giulia Marletta, Ken Meyer, Julius Morck, Stian Morck, Chris Papavasiliou, Jeff Rice, Ali Rounaghi, Jack Sojka, Rick Spalla, Austin Stark, Omar Veytia; Música: Ernst Reijseger; Fotografia (cor): Peter Zeitlinger; Montagem: Joe Bini, Omar Daher; Casting: Jenny Jue, Johanna Ray; Direcção artística: Danny Caldwell; Guarda-roupa: Mikel Padilla; Maquilhagem: James Lacey; Design de produção: Jack Sojka, Christopher Francis Woods; Assistentes de realização: Ian Calip, John T. Churchill, Anneke Scott, Frank Tignini; Departamento de arte: Tyson Estes, Tim Ott; Som: Ronald Eng; Efeitos visuais: Jason Michael Zimmerman; Companhias de produção: Defilm, Industrial Entertainment, Paper Street Films; Intérpretes: Michael Shannon (Brad McCullum), Willem Dafoe (Detective Hank Havenhurst), Chloë Sevigny (Ingrid), Brad Dourif (Tio Ted), Loretta Devine (Miss Roberts), Michael Peña (Detective Vargas), Udo Kier (Lee Meyers), Grace Zabriskie (Mrs. McCullum), Irma P. Hall (Mrs. Roberts), James C. Burns (comandante Brown dos Swat), Gabriel Pimentel, Candice Coke, Jenn Liu, Braden Lynch, Noel Arthur, Brian Sounalath, Julius Morck, James Lacey, Stefan Cap, Stephen Tompkins, Frank C. Wells, Reed Willard, etc. Duração: 91 minutos; Distribuição em Portugal: Prisvídeo - Edições Videográficas / Vitória Filmes; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 8 de Julho de 2010.

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