quarta-feira, novembro 10, 2010

MAIS LEITURAS

  
 
II. Diversas




Leituras muito diversificadas nestes últimos meses, apesar do já atrás referido predomínio republicano que as comemorações impuseram (e a febre editorial acompanhou). Como estávamos no campo da História Política, não quero deixar de recomendar um ensaio brilhante (mais um que devia ser obrigatório nas escolas, sobretudo se se quer educar para a cidadania): “À Porta Fechada” (Estaline, os Nazis e o Ocidente), de Laurence Rees (ed. D. Quixote) é um relato estarrecedor sobre os tempos da II Guerra Mundial e a divisão do mundo que lhe é posterior. Extremamente bem documentado, com referências indiscutíveis a factos que nos obrigam a corar de vergonha pela desumanidade de quem os projectou e concretizou friamente, este volume não deixa ninguém indiferente (ou deixará?). Tudo se passou há setenta anos, mais coisa menos coisa, no coração da Europa. Como é possível?


Ainda História e ainda biografia, uma fabulosa “Clarice Lispector, uma Vida”, de Benjamin Moser (ed. Civilização). Como admirador incondicional da escritora, ucraniana de nascimento e brasileira pela palavra, esta aventura de uma existência amargurada é uma narração invulgarmente brilhante do percurso de uma personalidade que se afirmou como um dos nomes maiores da literatura mundial do século XX. Combinando a biografia com a análise literária da obra de Clarice Lispector, este é outro texto indispensável.
Benjamin Moser, nascido em 1976, nos EUA, vive na Holanda. Apaixonou-se por Clarice Lispector quando a descobriu ao estudar português (também aprendeu chinês e fala uma quantidade de línguas que nos faz inveja). Escreve bem, com inteligência e clareza, e a sua obra é magnífica.


Brilhante ainda é a selecção de textos de George Steiner, aparecidos no “The New Yorker”, e recolhidos num volume há pouco traduzido para português pela Gradiva. Esta antologia, organizada por Robert Boyers, é exemplificativa do pensamento de Steiner, um dos mais sedutores pensadores da actualidade, que aqui escreve, com desenvoltura e profundidade, sobre literatura, política, história, questões sociais, etc. A leitura é fulgurante e acompanha-se com o fascínio de quem assiste a um lúcido e penetrante exercício de inteligência e perspicácia.


Passando para um campo completamente diferente, cito três romances que me deixaram absolutamente subjugado. “O Seminarista”, do brasileiro Ruben Fonseca (ed. Sextante), começa assim: “Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço.”
O “Especialista” andou num seminário, e agora é matador profissional. Cita amiudadas vezes clássicos em latim, e o seu ofício é para se executar com brio. Apenas isso. Sem remorso, nem prazer. A escrita é nervosa, muito dialogada, carregada de um humor negro que desarma. “O Seminarista” demonstra a maestria literária de quem redige esta sombria novela que nos restitui um retrato sórdido de uma certa sociedade. Ou da sociedade actual. Ou somente da condição humana?


Brilhante é “Milagrário Pessoal”, de José Eduardo Agualusa (ed. D. Quixote). “As Mulheres de Meu Pai” e “Barroco Tropical” já me tinham deixado rendido à escrita deste invulgar autor da lusofonia. “Milagrário Pessoal” confirma tudo o que vinha de trás e abre caminhos para o futuro. Ao ler Agualusa o que primeiro sinto é o prazer e o orgulho de pertencer a esta lusofonia que permite tal engenho, que viaja de Portugal para o Brasil ou para África, falando a mesma língua, passando por terras e gente que por acaso conheço algumas, e cujas recordações sinto tão vivas e fortes nesta poética digressão em busca de novos vocábulos da língua portuguesa. Um velho anarquista angolano e uma jovem linguista portuguesa vivem paixões e desvendam milagres linguísticos. “Os milagres acontecem a cada segundo. Os melhores costumam ser discretos. Os maiores são secretos.” Absolutamente a não perder.


Descobri há poucos anos Sandor Márai, húngaro que se exilou nos EUA e se suicidou em finais dos anos 80, ignorado do grande público, depois ter sido proscrito e censurado na sua terra natal, pela ditadura comunista que assim procurava calar um dos mais importantes escritores do século XX da Europa Central. Descobri-o com “A Herança de Eszter”, apaixonei-me com “As Velas Ardem até ao Fim”, fiquei empolgado com “A Mulher Certa”, depois continuei com “Os Rebeldes”, e agora manteve-se todo o encanto com “Divórcio em Buda”, uma sensível e discreta descrição da vida quotidiana em Budapeste, decorrem os anos 30 do século passado, e o protagonista, um recto e respeitável juiz de contenciosos familiares, se sente dividido entre passado e presente, entre a Peste da margem esquerda do Danúbio e a Buda que se abre ao futuro na outra margem. Entre a aristocracia em decadência e a burguesia em ascensão, entre duas guerras, entre a tradição e a modernidade, entre o amor e a morte. Excelente no seu desenho miniaturista, atento ao pormenor e ao mais secreto. (ed. D. Quixote).


Já aqui falei da releitura de “Mistérios de Lisboa”, de Camilo Castelo Branco (é sempre saudável regressar aos clássicos!). A nova edição da “Relógio d’Água” é boa e vem enriquecida com um magnífico prefácio de Raoul Ruiz. Vale a pena.


O “policial” é um género que não perco de vista. Não considero um “policial” literatura menor, muito pelo contrário. Alguns dos maiores passaram por lá e presentemente parece que não há romance que não tenho um crime pelo meio. Mas o “policial” assumidamente “policial”, que descende de Poe e Conan Doyle, por vezes revela-nos autores muito interessantes. Quando descubro um bom romance que traz uma autoria que até aí desconhecia, é um prazer enorme devorar toda a restante obra. Foi o que aconteceu com Donna Leon, americana por nascimento (Montclair, New Jersey, 28 de Setembro de 1942), mas que vive em Itália há mais de 20 anos, e que escreveu já uma série de policiais que têm como protagonista o inspector Guido Brunetti e a cidade de Veneza como cenário privilegiado. Os romances são muito interessantes, “familiares”, Brunetti sonha com os cozinhados da mulher, apoquenta-se com o que possa acontecer aos filhos, não suporta o superior hierárquico, vive obcecado pela honradez, numa sociedade de corruptos que praticam crimes mesquinhos, e nem sempre os culpados acabam punidos. A sensação é que “não vale sequer a pena”.

Dela li “Morte no Teatro La Fenice”, “Assassínio na Academia”, “Morte num Pais Estranho” (todos ed. Planeta) e ainda “Acqua Alta” e “Amigos Influentes” (ed. Presença). Todos a valerem a pena. Quanto mais se penetra na intimidade deste universo, mais vontade temos de o acompanhar. Soube que há uma série televisiva, alemã, que já conta com 17 telefilmes, desde 2000 até 2010. Chama-se "Donna Leon" (2000), começou por ser realizada por Christian von Castelberg (2 episódios, em 2000) e tem sido continuada por Sigi Rothemund (15 episódios, entre 2002 e 2010). Os romances são muito mediterrânicos, vêm na tradição de um George Simenon ou de uma Agatha Christie, mais dedutivos que truculentos, não sei se um olhar alemão capta o espírito, mas estou curioso.

Muito diferente é o estilo de Craig Russell, mais vigoroso e impetuoso. Escocês, foi polícia e publicitário antes de se dedicar à escrita, criando um detective afeito à investigação de crimes de uma violência invulgar. O cenário é sempre a nocturna cidade alemã de Hamburgo, povoada por “serial killers” e neo-nazis, cruzados com o submundo da droga e da prostituição. “Águia de Sangue”, “Irmão Grimm” e “Eterno” são os volumes traduzidos para português e editados pela Betrand. Lêem-se de um fôlego e são exemplarmente conduzidos em termos de “suspense”, o que levou o “The Times” a considerar o autor “o mestre do thriller”. Já existe igualmente um teledramático retirado de uma obra sua, “Wolfsfährte”, com direcção de Urs Egger (2010). As referências não são as melhores, infelizmente, pois creio que cada um destes romances daria um excelente “thriller” cinematográfico. Os ingredientes estão todos lá. A saga Jason Bourne seria um bom exemplo.

















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