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JOGO LIMPO
"Fair Game" volta a abordar o tema das armas de destruição maciça que supostamente existiriam no Iraque e que motivaram a invasão deste país do Médio Oriente pela administração de George W. Bush em 2003. O argumento baseia-se em factos e personagens reais, e em duas obras, ambas escritas pelos próprios protagonistas, Valerie Plame, a agente da CIA, e o seu marido, Joseph Wilson, senador e diplomata norte-americano. “Fair Game" e "The Politics of Truth" o que contam e discutem são acontecimentos hoje em dia do domínio público: teria o Iraque de Saddam Hussein verdadeiramente armas de destruição maciça? A CIA sabia se existiam ou não essas armas? O que era realmente do conhecimento da Casa Branca e do governo de George W. Bush? Dizia-se que a Nigéria tinha vendido ao Iraque urânio enriquecido? Era verdade? Joe Wilson foi convidado pela CIA a informar-se sobre a verdade ou mentira dessa informação, relatou-a à CIA, esta reportou à White House. Tudo indicava que a operação nunca se efectivara. Se assim foi, por que razão o governo dos EUA invadiu o Iraque?
Por isso, quando George W. Bush reafirmou a presença de armas de destruição maciça no Iraque como justificação para a invasão, Joe Wilson escreveu um artigo no “New York Times” relatando o que sabia de concreto, como observador no local, e que se opunha radicalmente à “verdade” revelada pela Casa Branca.
Pouco depois deste artigo, e para desacreditar o senador, é revelada a profissão da mulher de Joe Wilson, Valerie Plame, agente da CIA, num artigo do jornalista Robert Novak. A “encomenda” teve o seu impacto certo. Valerie foi afastada da CIA. Esta “inocente” denúncia provocou o caos na família de Joe e Valerie que, pela defesa das suas posições, foram insultados e agredidos, ostracizados por todas as formas e feitios. Os contactos de Valerie no Iraque foram igualmente dizimados, depois de deixados à sua sorte no terreno, quando antes lhes havia sido prometido apoio na sua retirada.
Tanto Joe Wilson como Valerie não se calaram, defenderam-se, foram a programas de televisão, escreveram artigos, deram conferências de imprensa, foram às universidades, “pediram a palavra”. Acabaram por fazer triunfar a verdade (ou, pelo menos, contrariar as mentiras difundidas pelo poder estabelecido), repor a integridade das suas condutas e colocar a descoberto as hipocrisias e as golpadas governamentais. E a criminosa actividade desencadeada por uma guerra que tinha intuitos diversos daqueles por que era publicamente desencadeada.
Será apenas esta a intenção primeira de “Jogo Limpo”? Não me parece que seja tanto repisar um conjunto de factos já conhecidos de quase todo o cidadão mais ou menos informado (o artificialismo das causas que conduziram à guerra do Iraque), mas, sobretudo, mostrar como um cidadão se deve comportar numa sociedade democrática em que a sua palavra tem de ter peso e ser ouvida. Numa democracia não se aceitam as injustiças e as inverdades. Luta-se com as armas que essas democracias colocam nas mãos dos cidadãos. Muito na linha do cinema, algo ingénuo e edificante, de um Frank Capra (com filmes como “Uma Noite Aconteceu”, “Doido com Juízo”, “Não o Levarás Contigo”, “Peço a Palavra”, “Um João Ninguém”, “O Mundo é Um Manicómio” e “Do Céu Caiu uma Estrela”), nos anos 30 e 40, quando a América procurava recuperar do grande desastre de 1929 e da enorme depressão económica e social que sobre ela se abatera.
Numa época em Roosevelt tentou galvanizar os cidadãos norte-americanos para um combate colectivo e solidário, com o programa do “New Deal”, o cinema acompanhou essa luta em obras de Frank Capra, John Ford, Preston Sturges, William Wyller, e tantos outros. Parece ser esse o caminho, oitenta anos depois, de algum cinema norte-americano que tem sido estreado recentemente. Apontar erros, e mostrar como o cidadão se pode revoltar perante enganos e mentiras, injustiças e prepotências. Fazendo ainda por cima “Jogo Limpo”.
Doug Liman, que já assinara o primeiro capítulo da gesta de Jason Bourne, o agente secreto imortalizado por Matt Damon e criado pelo escritor Robert Ludlum, em “The Bourne Identity” (2002), a que se seguiram “Mr. & Mrs. Smith” (2005) e “Jumper” (2008), não parece ser um realizador particularmente inspirado. Eficaz em cenas de acção, escorreito a contar uma história, não trará novidades de maior à história do cinema, mas encarrega-se com dignidade das encomendas que recebe. "Fair Game" é exemplo disso, movimentadas sequências, um bom clima de “suspense” psicológico, uma narrativa que acompanha um intrincado inquérito. Um olhar critico sobre a política norte-americana, numa projecção reformista, aceitando que o sistema se pode e deve reformar a si próprio, ao corrigir as perversidades que a própria engrenagem permite, o que acaba por ser um sintomático voto de confiança nas virtudes da democracia representativa, mas onde o cidadão nunca deve perder a voz. Neste particular o filme é não só curioso, como sintomático de uma nova era na história dos EUA. Era Obama, obviamente. Também no cinema. Não deixa de ser invulgar ver um filme onde personalidades relevantes da política actual são nomeadas pelo próprio nome, sem tibiezas ou disfarces.
Tecnicamente escorreito, com interpretações seguras de Naomi Watts (Valerie Plame) e Sean Penn (Joe Wilson), e sequências de arquivo onde se colhem imagens bem seleccionadas do cinismo governamental (pela obra passam George W. Bush, Dick Cheney, Colin Powell, Condoleezza Rice, Bill Walters e a própria Valerie Plame), “Jogo Limpo” não terá o brilhantismo de “Os Homens do Presidente” ou de “Nixon”, mas é um bom testemunho que valerá a pena não desperdiçar.
JOGO LIMPO
Título original: Fair Game
Realização: Doug Liman (EUA, Emiratos Árabes Unidos, 2010); Argumento: Jez Butterworth, John-Henry Butterworth, segundo obras de Joseph Wilson ("The Politics of Truth") e Valerie Plame ("Fair Game"); Produção: Mohamed Khalaf Al-Mazrouei, Dave Bartis, Jez Butterworth, Gerry Robert Byrne, Kerry Foster, Sean Gesell, Akiva Goldsman, Anadil Hossain, Doug Liman, Bill Pohlad, David Sigal, Mari-Jo Winkler, Kim H. Winther, Janet Zucker, Jerry Zucker; Música: John Powell; Fotografia (cor): Doug Liman; Montagem: Christopher Tellefsen; Casting: Joseph Middleton; Design de produção: Jess Gonchor; Direcção artística: Kevin Bird; Decoração: Ibrahim Khorma, Sara Parks; Guarda-roupa: Cindy Evans; Maquilhagem: Amanda Miller; Direcção de Produção: David Bausch, Driss Benyaklef, Brian Buckland, Gerry Robert Byrne, Frank Hildebrand, Issam M. Husseini; Assistentes de realização: Yanal Kassay, Kim H. Winther; Departamento de arte: Kelly Solomon, Jae Pak; Som: Paul Urmson, Steven Visscher; Efeitos especiais: Ken Goodstein; Efeitos visuais: Joseph DiValerio, Christina Mitrotti; Companhias de produção: River Road Entertainment, Participant Media, Imagenation Abu Dhabi FZ, Zucker Productions, Weed Road Pictures, Hypnotic, Fair Game Productions; Intérpretes: Naomi Watts (Valerie Plame), Sean Penn (Joe Wilson), Noah Emmerich (Bill Johnson), Liraz Charhi (Dr. Zahraa), Nicholas Sadler, Sam Shepard (Sam Plame), Bruce McGill (Jim Pavitt), Sonya Davison, Vanessa Chong, Anand Tiwari (Hafiz), Michael Kelly (Jack), Ty Burrell, Stephanie Chai, Jessica Hecht, Norbert Leo Butz, Rebecca Rigg, Brooke Smith, Thomas McCarthy, Ashley Gerasimovich, Quinn Broggy, Iris Bahr, Ghazil, Kristoffer, Ryan Winters, Louis Ozawa Changchien, Sean Mahon, Mohamed Abdel Fatah, Rashmi Rao, David Andrews, David Denman, Remy Auberjonois, Tim Griffin, Sunil Malhotra, Kevin Makely, Mousa Al Satari, Khaled Nabawy, Rafat Basel, Maysa Abdel Sattar, Judith A. Resnik, Ben Mac Brown, Satya Bhabha, Nabil Koni, Mohammad Al Sawalqa, Jenny Maguire, David Warshofsky, Geoffrey Cantor, David Iklu, Deidre Goodwin, Donna Placido, Adam LeFevre, Brian McCormack, James Rutledge, Tricia Munford, Michael Goodwin, Nasser, Chet Grissom, James Joseph O'Neil, Danni Lang, Jane Lee, James Moye, Judy Maier, Polly Holliday, Kola Ogundiran, Byron Utley, Anastasia Barzee, Sanousi Sesay, Harry L. Seddon, e ainda em imagens de arquivo George W. Bush, Dick Cheney, Valerie Plame, Colin Powell, Condoleezza Rice, Bill Walters, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: Zon-Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 1 de Dezembro de 2010.
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