segunda-feira, janeiro 03, 2011

CINEMA: O MÁGICO

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O MÁGICO, 
 UMA NOSTÁLGIA SERÔDIA 
Final da década de 50 em França: um ilusionista de teatro e cabaret começa a ter algumas dificuldades em assegurar o posto de trabalho. Os tempos mudam, o público prefere os cabelos compridos de Juliette Greco ou, mais a norte, na Grã-Bretanha, os sons do rock e da irrequietude dos Baetles, aos magos que retiram coelhos brancos das cartolas. Nem os incondicionais da ópera o compreendem. O mágico vai andando de cidade em cidade e de fiasco em fiasco, apesar de, na Escócia, num pequeno pub de uma cidadezinha da província, tocar o coração de Alice, a jovem empregada que faz as limpezas e arruma os quartos. Quanto ele parte para Edimburgo, ela persegue-o. Coabitam num quarto de pensão, mas as dificuldades aumentam, o mágico tenta outros empregos, sem se fixar em nenhum. Compra vestidos a Alice, mas não lhe toca, olha-a de longe. Dir-se-ia um delicado e sensível cavalheiro a quem o mundo trocou as voltas e o fez viver num universo que já não é o seu. História de nostalgia e tristeza. Não é só o mágico que perde o comboio do tempo, apesar de muito andar de comboio. Ventríloquos, palhaços ou malabaristas estão no mesmo comboio, uns suicidam-se, outros acabam a pedir esmola pelas esquinas da vida. Triste. Sim, muito triste.
Sylvain Chomet, o mesmo que nos dera "Belleville Rendez-vous", o mesmo que não abandona a animação clássica, e que não adere ao digital (ainda que aqui e ali se sinta a cumplicidade disfarçada), foi buscar ao espólio de Jacques Tati um argumento que este nunca havia rodado, “L'illusionniste”, e transforma-o em animação com a intenção óbvia de ser ao mesmo tempo uma homenagem ao fabuloso cineasta que nos deu meia dúzia de obras-primas que para sempre ficarão na nossa memória (e mais forte ainda, no nosso coração): “Há Festa na Aldeia”, “As Férias do Senhor Hulot”, “O Meu Tio”, “Vida Moderna”, “Sim, Senhor Hulot” ou “Parade”. Jacques Tati era francês, mas de ascendência russa, o seu verdadeiro nome era Jacques Tatischeff. Sylvain Chomet constrói uma belíssima personagem que se chama precisamente Tatischeff, e que tem a aparência da mais célebre criação de Tati, o senhor Hulot. Por vezes chegamos a ter a sensação de que Hulot voltou, está ali à nossa frente e a homenagem é bonita.
Como muito bonita é a animação desta obra de cores nostálgicas e suaves, que nos restitui um pouco do universo de Tati. Mas aqui entronca então a questão essencial. O espírito deste “O Mágico” tem algo a ver com Tati, mas deturpa-o escandalosamente. Tati era crítico e mordaz, mas era terno e sensível. A mudança de tom não seria algo de profundamente errado, pois o realizador é outro, e imprime-lhe o seu próprio pensamento e sentir. Acontece que estes pensamento e sentir é que são, no mínimo, muito discutíveis.
O que ressalta desta obra? Que a marcha do tempo é inexorável e que há quem vá ficando pelo caminho, mesmo que de forma injusta? Essa seria talvez a visão equilibrada do problema, mas “O Mágico” opta por uma outra vereda: o mágico assume-se como o homem certo no lugar errado, rodeado de burgessos sem alma, todos vendidos ao dinheiro, à facilidade, à “monstruosidade” grotesca que são Greco, Beatles, Montserrat Caballé e etc., todos eles apresentados de forma caricatural, bem como o seu público. Depois há os patrões sem coração. O garagista que o despede por incompetente ou o dono da loja que o põe a fazer publicidade a produtos na montra do seu estabelecimento. Sylvain Chomet despreza o primeiro, não se percebendo bem porquê, dado que Tatischeff pode ser um bom mágico, mas revela-se um incompetente técnico, e mostra a indignidade dos segundos que colocam a arte ao serviço da venda dos produtos (o que também não é muito coerente com a sua própria actividade de animador que assinou diversas obras de publicidade, nomeadamente para a Renault, Swissair, Swinton, entre outras).
O fim de um tempo é sempre traumático para as suas vítimas, e pode ser um momento excelente para olhar para trás e elogiar esses homens e mulheres engolidos pela mudança. Sobre um tema semelhante, há um filme magnífico de Tony Richardson, "The Entertainer" (1960), que nos fala de um actor de vaudeville que vê a sua arte ser ultrapassada, ou uma outra obra de dolorosa nostalgia, “The Dresser” (1983), de Peter Yates, igualmente sobre um actor em fim de carreira.
Mesmo no plano emocional, Sylvain Chomet se mostra injusto para a personagem Alice (a que gosta de passar para o outro lado do espelho, atrás de um coelho branco que aqui sai da cartola de Tatischeff), quando a acusa de ser interesseira, aproveitando-se da bondade do mágico, mas trocando-o pelo primeiro duplo de Jack Palance que lhe aparece na janela da frente. Mas que se poderia esperar daquela relação compartimentada entre sala e quarto senão um tal desfecho?
Por estes motivos todos parece-me que com “L'illusionniste” se perdeu um bom momento para o elogio da animação tradicional, que pode e deve coabitar com as novas tecnologias. Não com este arzinho enraivecido que Sylvain Chomet destila, pessimista, derrotista, serôdio. Mas mostrando que sempre há e sempre houve lugar para todos. “Toys Story” pode muito bem conviver com "Belleville Rendez-vous".
No final, Tatischeff parte de comboio, depois de deixar um bilhete a dizer a “Alice” que a magia não existe. O que Alice não deve compreender muito bem, numa altura em que encontrou o seu “príncipe encantado”. Mas Tatischeff parece ter finalmente aprendido a lição. No comboio, uma miúda deixa cair um pequeno lápis com que desenha. Tatischeff encontra-o e compara-o com o seu: o da criança está gasto, e seu está novo. Por um gesto de prestidigitação vai trocá-los? Não, apenas fazer o que é justo: dar à miúda o lápis dela. Tatischeff perdeu a magia. Outros a encontrarão. Acho muito irritante aqueles que julgam ter a verdade consigo, e que todos os outros estão errados. “O Mágico” entra abertamente por esses caminhos e o que de bom e muito bom há no filme acaba por sucumbir a este espírito que roça o mesquinho.

O MÁGICO
Título original: L'illusionniste ou The Illusionist
Realização: Sylvain Chomet (França, Inglaterra, 2010) ; Argumento: Sylvain Chomet, segundo argumento original de Jacques Tati; Produção: Philippe Carcassonne, Sally Chomet, Jake Eberts, Jinko Gotoh, Bob Last; Música: Sylvain Chomet; Direcção artística: Bjarne Hansen; Direcção de Produção: Fiona Hall, Michael Solinger, Pierre Tissot; Assistentes de realização: Paul Dutton; Departamento de arte: Pierre-Henri Laporterie, Emma McCann, Rhiannon Tate, Evgeni Tomov; Som: Carl Goetgheluck; Efeitos visuais: Jean Pierre Bouchet; Animação: Paul Dutton, Victor Ens, Toby Schwarz, Mike Swofford, Yann Tremblay; Companhias de produção: Django Films Illusionist, Ciné B, France 3 Cinéma, Canal+, CinéCinéma, France 3; Intérpretes (vozes): Jean-Claude Donda (Tatischeff, o mágico), Eilidh Rankin (Alice), Duncan MacNeil, Raymond Mearns, James T. Muir, Tom Urie, Paul Bandey, etc. Duração: 80 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 23 de Dezembro de 2010. 

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