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DIAS DE VINHO E ROSAS
They are not long, the days of wine and roses:
Out of a misty dream
Our path emerges for a while, then closes
Within a dream.
Ernest Dowson (1867-1900)
Principiemos pelo que ainda aqui não foi dito. Os Artistas Unidos, que durante alguns anos andaram com a casa às costas, têm agora um belo espaço, o Teatro da Politécnica, obviamente situado na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, um edifício recuperado para o efeito, à entrada de uma das alamedas que dá acesso ao Jardim Botânico. O sistemático trabalho de Jorge da Silva Melo e da sua equipa bem merecereu este reconhecimento.
Agora estrearam “Dias de Vinho e Rosas” (Days of Wine and Roses), um texto originalmente escrito para televisão pelo norte-americano J.P. Miller, que depois conheceu uma versão teatral do irlandês Owen McCafferty, e apresentado no palco do Teatro da Politécnica numa tradução de Joana Frazão.
JP Miller
James Pinckney Miller (1919-2001), que começou a escrever e publicar aos 17 anos contos do “wild west”, foi boxeur profissional, usando o nome de “Tex Frontier”, jornalista no “Houston Post”, estudante de escultura na “La Escuela de Artes Plásticas”, na cidade do México, marinheiro no Sul do Pacífico, durante a II Guerra Mundial, onde assumiu o seu nome de combate literário, JP Miller. Estudou escrita e teatro na Yale Drama School, mudou-se para Nova Iorque, onde vendeu ar condicionado para viver e passava o resto do tempo e as noites nos teatros, nos estúdios de televisão e em aulas no American Theater Wing
O primeiro telefilme que escreveu foi “The Polecat Shakedown”, 30 minutos de chantagem num restaurante que haveria de passar no programa “Man Against Crime”. Abandonou tudo o mais e dedicou-se à escrita para televisão. Em 1954 já tinha cinco trabalhos produzidos para TV, tornando-se num dos mais prestigiados autores de telefilmes da “Idade de Ouro da Televisão”. Em 1955, triunfaria com “The Rabbit Trap”, apresentado na “Goodyear Television Playhouse”. Mas o seu grande sucesso seria “Days of Wine and Roses”, realizado em televisão pelo então jovem prometedor John Frankenheimer, para “Playhouse 90” e emitido a 2 de Outubro de 1958. Recebeu três nomeações para os Emmys do ano.
A direcção era brilhante, no dizer da crítica da época, e o elenco notável, Cliff Robertson (Joe Clay), Piper Laurie (Kirsten Arnesen Clay), Charles Bickford (Ellis Arnesen), Marc Lawrence (Scarface), entre outros. Quatro anos depois, passaria a cinema pela mão de Blake Edwards, num filme memorável, que o “The New York Times” coloca na lista dos 1000 melhores filmes de sempre. Jack Lemmon, Lee Remick, Charles Bickford e Jack Klugman foram os protagonistas mas as críticas da época, apesar de reconhecerem os méritos ao filme, faziam sobressair as virtudes do telefilme, que o próprio escritor preferia: “a versão televisiva estava mais perto do meu coração, porque estava mais perto da minha imagem original”.
No filme, Joe Clay (Jack Lemmon) é um relações-públicas, jovem, que se apaixona por Kirsten (Lee Remick), uma colega de trabalho, com quem casa. Mas a pressão profissional empurra-os para momentos de rápida euforia provada pelo álcool, e daí ao descalabro das suas vidas é um passo que percorrem dramaticamente. Sem retorno, apesar das tentativas em contrário. As actuações de Jack Lemmon e Lee Remick são brilhantes e o filme teve algumas dificuldades para manter o tom desesperado com que acaba. Blake Edwards resistiu até ao fim, contra a tentativa de tornar mais macio o final e Jack Lemmon precipitou a sua viagem para a rodagem de um outro filme, a fim de não tornar possíveis as filmagens de novos planos para uma remontagem.
Em 2002, Owen McCafferty, dramaturgo irlandês, adapta a teatro o telefilme de JP Miller, aproveitando somente o esqueleto da obra e alterando-a profundamente. A América passa para a Belfast (Irlanda) e Londres (Inglaterra), mantendo apenas como protagonistas o casal Donal e Dona.
Nascido em Belfast, em 1961, Owen McCafferty é considerado actualmente um dos grandes dramaturgos e encenadores daquele país, tendo conseguido criar a reputação de um escritor capaz de desenvolver uma linguagem teatral tipicamente irlandesa, através dos seus diálogos fortes, curtos e incisivos, bem enraizados na realidade do seu país. Escreveu várias peças, entre as quais “Cenas da Grande Panorâmica” (Scenes from the Big Picture), 2003 (agora editada conjuntamente com “Dias de Vinho e Rosas”, na colecção “Livrinhos de Teatro”, uma publicação conjunta “Artistas Unidos-Livros Cotovia”), “The Waiting List”, 1994, “Freefalling”, 1996, “Shoot the Crow”, 1997, “Closing Time”, 2002, ou “Mojo Mickybo”, uma das suas obras de maior sucesso.
A estreia da versão de Owen McCafferty acontece-se em Londres, em 2002, no Donmar Warehouse, numa produção de Sam Mendes, com encenação de Peter Gill, com interpretação de Anne-Marie Duff e Peter McDonald. No ano seguinte, Rachel Wood dirige uma versão off-Broadway de “Days of Wine and Roses”, com a Boomerang Theatre Company. É esta versão que surge agora no palco dos Artistas Unidos, numa encenação de Jorge Silva Melo, com cenário e figurinos de Rita Lopes Alves. Excelente texto, excelente espectáculo, com magníficas interpretações de Maria João Falcão e Rúben Gomes.
Donal e Dona conhecem-se no aeroporto de Belfast. Ambos são jovens e partem para Londres, um em busca de um emprego prometido nas empresas de apostas de cavalos, ela à procura da novidade das luzes da grande cidade. Começam a trocar palavras e acabam trocando uma bebida. Dona nunca bebera, mas aceita um drink. Já em Londres, bebem socialmente e lentamente resvalam para o alcoolismo, a degradação pessoal. Casados e pais de um filho, procuram recuperar, mas afundam-se a cada nova tentativa. Ele frequenta os “Alcoólicos Anónimos”, ela anda de bar em bar e cai na prostituição. O facto da peça se concentrar nas duas personagens, acaba por intimizar o conflito, torná-lo menos uma consequência social e mais uma irreversibilidade pessoal. Ambos caminham para o abismo porque mais um copo ajuda-os a enfrentar a solidão, o desconforto, as asperezas da vida. Depois de um dia de trabalho, o casal troca brindes até adormecerem caídos no chão ou enrolados num sofá.
Maria João Falcão e Rúben Gomes iniciam o diálogo em Belfast, ainda a medo, mas vão ganhando fôlego à medida que a peça se desenvolve, gozando com pequenos aspectos da encenação, revertendo-os a favor das personagens, utilizando com argúcia os adereços, e os gestos mais anódinos (ela coloca um pé descalço sobre o pé descalço dele, por exemplo, numa carícia secreta que resulta magnificamente).
A encenação é quase imperceptível, o que neste caso é uma virtude, serve o texto e as situações, ergue figuras que permanecem para lá das duas horas do espectáculo. Com pequenos apontamentos que ajudam a criar o ambiente e a impor o desespero – uma porta que se abre sobre um quarto, de que se vislumbra apenas uma parte de uma cama com Dona deitada. O cenário é eficaz e sóbrio, bem servido por luz e som.
Dias de Vinho e Rosas (Days of Wine and Roses). Texto de Owen McCafferty. Tradução de Joana Frazão; Encenação: Jorge Silva Melo; Cenário e figurinos: Rita Lopes Alves; Luz: Pedro Domingos; Músico: Paulo Curado; Sonoplastia; Rui Rebelo; Imagens: Bartolomeu Cid dos Santos; Assistência: Vânia Rodrigues. No Teatro da Politécnica de 18 de Janeiro a 25 de Fevereiro de 2012.
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