LINCOLN
Quem espere um filme sobre a Guerra da Secessão nos EUA,
apenas irá encontrar uma ou outra cena de batalha, que localiza historicamente
o período, que enuncia os adversários e a questão em discussão (a abolição da escravatura
nos EUA) e que coloca o problema visto dos dois lados dos contendores. Na
verdade, o que interessa essencialmente a Spielberg é um outro aspecto,
complexo e pouco conhecido, e que se debate em gabinetes e no Congresso. Ao
mesmo tempo que a guerra se aproxima do seu fim, com os estados do sul próximos
da rendição, no Congresso irá votar-se a 13ª Emenda que proclama o fim da
escravatura. Para Lincoln este é o propósito primordial. Para fazer passar no
Congresso este diploma, mostra-se capaz de tudo. Quer que todos os Republicanos
(o partido que na altura defende a abolição) assumam esse voto e necessita de
pelo menos mais vinte senadores Democratas (que recusam o fim da escravatura),
para atingir a percentagem necessária. Portanto, no segredo dos gabinetes, há
que fazer mudar o sentido de voto de uns quantos, prometendo-lhes o que for
preciso, empregos, promoções, possivelmente benesses. Trata-se de corrupção ao
mais alto nível. Tony Kushner, o argumentista desta obra e de “Munique” e “Anjos
na América”, baseia-se parcialmente na obra de Doris Kearns Goodwin, "Team
of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln", onde tudo isto estará
documentado.
O filme começa por uma rápida cena de batalha, nocturna e
lamacenta, violenta e feroz, que relembra a brutalidade de iguais cenas de “O
Resgate do Soldado Ryan” ou “Cavalo de Guerra”. Mas rapidamente se passa para a
intimidade de uma conversa entre Lincoln e alguns soldados negros que
reivindicam direitos e igualdades. Lincoln ouve e está de acordo. Esse será o
seu caminho. Obstinadamente irá cruzá-lo até à votação final, derrubando todos
os obstáculos que encontra no acidentado percurso. Mas a questão é mais
complexa. A guerra tem de ser a pressão necessária para impor a Emenda. Se a
paz chegar, se as tropas sulistas se renderem antes do dia da votação, é muito
possível que a votação lhe seja contrária. Não pôr fim à guerra é um argumento
poderoso para levar avante os seus intentos. Por isso, não pode aceitar a
rendição do exército confederado antes da hora certa.
Talvez seja oportuno relembrar um pouco da história: a
guerra civil norte-americana começou em 1861, depois de Abraham Lincoln ter
sido eleito Presidente da República no ano anterior, com um programa
abolicionista, e só terminaria em 1865. Em consequência desta eleição, dez
estados do Sul, que se baseavam numa economia latifundiária, estribada no
trabalho escravo e na produção de algodão, revoltaram-se, pois viam a sua
sobrevivência ameaçada. Criaram em Richmond uma confederação, à frente da qual
se encontrava Jefferson Davis. Por outro lado, o Norte, que defendia a abolição
da escravatura, tinha interesses igualmente comerciais e lucrativos: a sua
economia era sobretudo industrial e tornava-se mais rentável com operários
livres do que com o trabalho escravo. Este conflito de interesses
desencontrados conduziu à guerra. Morreram mais de 600 mil pessoas. Os
confederados sulistas, comandados pelo general Lee, venceram batalhas
importantes, como Richmond ou Fredericksburg, mas perderam em Gettysburg ou Petersburg.
Os federados nortistas tiveram no general Grant o seu chefe máximo, que mais
tarde viria a ser também Presidente da República. Quanto a Abraham Lincoln, dias depois da rendição de Robert Lee a Ulisses Grant, ocorrida no
Palácio da Justiça, em Appomatox, na Virgínia, foi assassinado num camarote do
Teatro Ford, em Washington, no dia 15 de Abril de 1865. Seria o primeiro
Presidente dos EUA a ser assassinado.
No plano das ideias e da reconstituição histórica, o
principal interesse do filme de Steven Spielberg é precisamente desenvolver
esta teia de interesses que se desenhava durante a guerra e perante o debate no
Congresso. Pondo a claro os processos corruptos que levaram um congressista,
precisamente o chefe da ala radical dos Republicanos, a afirmar que “a lei mais
importante do século XIX tinha sido aprovada com base em corrupção.”
Desenvolvendo-se numa escrita clássica, sóbria, rigorosa,
“Lincoln” traça um retrato da época, nos cuidados ambientes, nos cenários
plasticamente de grande beleza, nos adereços e guarda-roupa, na direcção de actores,
servida por um magnífico elenco, onde avultam dois soberbos intérpretes, Daniel
Day-Lewis, um Lincoln de antologia, sereno, confiante, discreto, impositor, e
Tommy Lee Jones, um radical Thaddeus Stevens absolutamente deslumbrante. O
filme está nomeado para 12 Oscars e trará para casa certamente alguns deles,
tanto mais que a obra se encontra imbuída de um espírito americano que faz
apelo a algumas das suas mais celebradas virtudes democráticas, a esperança no
potencial humano, a crença nos valores da liberdade e da democracia, os ideais
de igualdade e, neste caso, a perseverança de um presidente ciente da justeza
de uma luta, o que de certa forma pode ser extrapolado para a actualidade, e
ver ali reflectir-se Obama e as suas lutas pelo serviço de saúde. Não se trata
tanto de um filme de acção, mas mais de um ensaio cinematográfico sobre os
meandros da política, com uma ou outra incursão pela vida privada de certas
figuras preponderantes, o que funciona quer para explicitar certos traços
psicológicos quer para sublinhar simbolicamente algumas situações. Curioso é
ver como a política mantinha uma certa transparência ingénua, onde tudo, ou
quase tudo, era permitido dentro dos quadros institucionais. Já falámos da
corrupção por uma boa causa, mas haverá ainda que citar um episódio magnífico e
para nós hoje verdadeiramente estranho. Mal acaba a votação no Congresso da 13ª
emenda, o chefe da ala radical dirige-se à mesa, pede emprestado papel onde esta
está redigida (“amanhã trago-o, apenas com um vinco a mais”) e leva-o para
casa, para o mostrar a uma senhora negra que o lê. Plano seguinte: ambos se
encontram na mesma cama. Afinal o congressista tinha mesmo motivos ponderosos
para ser tão radical.
A morte de Lincoln não nos é evitada no final da obra,
mas Spielberg opta por uma solução extremamente engenhosa, colocando a sua
câmara num outro teatro, onde a notícia é dada aos espectadores, entre os quais
se encontra o filho mais novo do Presidente. Spielberg continua igual a si
próprio, mestre no entretenimento inteligente, agarrado a ideias e valores que
não descura, senhor de um estilo importado dos maiores e que ele cuida de forma
devotada. Belo filme sobre um grande homem e uma excelente ideia, mesmo que
argamassada sobre vícios e maus costumes. Mas essa é, igualmente, uma das
características do cinema norte-americano: repensar erros e dá-los a conhecer,
sobretudo se do seu espectáculo puder retirar dividendos económicos.
LINCOLN
Título
original: Lincoln
Realização: Steven Spielberg (EUA, 2012); Argumento: Tony Kushner,
segundo obra de Doris Kearns Goodwin ("Team of Rivals: The Political
Genius of Abraham Lincoln"); Produção: Kathleen Kennedy, Steven Spielberg,
Jonathan King, Daniel Lupi, Kristie Macosko, Jeff Skoll, Adam Somner; Música:
John Williams; Fotografia (cor): Janusz Kaminski; Montagem: Michael Kahn;
Casting: Avy Kaufman; Design de produção: Rick Carter; Direcção artística: Curt
Beech, David Crank, Leslie McDonald; Decoração: Jim Erickson, Peter T. Frank;
Guarda-roupa: Joanna Johnston; Maquilhagem: Leo Corey Castellano, Kay Georgiou,
Dean Jones, Mo Stemen, Mo Stemen;
Direcção de produção: Robert Bella, Susan McNamara, Corey Sklov, John
Burton West; Assistentes de realização: Adam Somner, Ian Stone, Eliot John
Hagen; Departamento de arte: Richard Blankenship, Alex Brandenburg, Jimmy L.
Carmickle, Christina Garnett, Steven Harris, Jim Hewitt, Keith S. Jackson, Tina
Allen Pleasants, Josh Sheppard, Karen Teneyck; Som: Ben Burtt; Efeitos especiais:
Steve Cremin; Efeitos visuais: Ben Morris, Lee Chan Popo, Sara Trezzi;
Companhias de produção: DreamWorks Pictures, Twentieth Century Fox Film
Corporation, Reliance Entertainment, Participant Media, Amblin Entertainment,
The Kennedy/Marshall Company, Imagine Entertainment, Office Seekers
Productions, Parkes/MacDonald Productions; Intérpretes:
Daniel Day-Lewis (Abraham Lincoln), Sally Field (Mary Todd Lincoln), David
Strathairn (William Seward), Joseph Gordon-Levitt (Robert Lincoln), James
Spader (W.N. Bilbo), Hal Holbrook (Preston Blair), Tommy Lee Jones (Thaddeus
Stevens), John Hawkes (Robert Latham), Jackie Earle Haley (Alexander Stephens),
Bruce McGill (Edwin Stanton), Tim Blake Nelson, Joseph Cross, Jared Harris
(Ulysses S. Grant), Lee Pace, Peter McRobbie, Gulliver McGrath, Gloria Reuben,
Jeremy Strong, Michael Stuhlbarg, Boris McGiver, David Costabile, Stephen
Spinella, Walton Goggins, David Warshofsky, Colman Domingo, David Oyelowo,
Lukas Haas, Dane DeHaan, Carlos Thompson, Bill Camp, Elizabeth Marvel, Byron
Jennings, Julie White, Charmaine White, Ralph D. Edlow, Grainger Hines, Richard
Topol, Walt Smith, Dakin Matthews, James 'Ike' Eichling, Wayne Duvall, Bill
Raymond, Michael Stanton Kennedy, Ford Flannagan, Robert Ayers, Robert Peters,
John Moon, Kevin Lawrence O'Donnell, etc. Duração:
150 minutos, classificação etária: M7 12 anos; Distribuição em Portugal: Big
Picture; Estreia em Portugal: 31 de Janeiro de 2013.
1 comentário:
Gostei de saber da forma como Spielberg tratou o final do filme - uma forma engenhosa, sim! Ainda não vi este filme!
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