ALMA, de GIL VICENTE
Estreou no Teatro São João do Porto, passou pelo Teatro
D. Maria II em Lisboa há pouco tempo. Na altura não me apeteceu escrever.
Trata-se de um trabalho de encenação de Nuno Carinhas, com soluções cénicas
plasticamente muito bonitas, e curiosas nalguns significados, mas creio que o
auto de Gil Vicente tinha, na época, uma interpretação e hoje assume-se de
forma diversa e algo ambígua, senão mesmo perigosa.
O texto é muito curto e de grande qualidade
literária. Não discuto. A ideia é mostrar como a “alma” de cada um de nós é continuamente
assediada pelos anjos e pelos demónios, o que não deixa de ser verdade. Mas os
anjos apregoam o despojamento, a libertação total dos bens terrenos, e o diabo oferece
opulência, poder e riqueza. Bem-estar em suma. Na altura em que foi escrito,
era uma crítica directa aos poderosos, hoje em dia pode ser visto como o elogio
do conformismo e da pobreza resignada. Por alguma razão este auto da Alma era
encenado em todas as escolas do País nos tempos de Salazar. Era rigorosamente o
seu pensamento. Com a agravante de os pobres poderem ser manipulados pelas
ideias nela contidas e os poderosos se estarem nas tintas para os castigos
divinos.
Mas o espectáculo é realmente muito bonito na sua
simplicidade, a Alma esfalfa-se a correr num estrado que o mundo e a sua vida, enquanto,
de um lado e do outro, anjos e demónios a cobrem de riquezas ou a despem da
ostentação. A interpretação é globalmente boa e bem dirigida (uma só mulher, Leonor
Salgueiro, muito bem, para um elenco essencialmente masculino, escorreito e por
vezes inspirado: Alberto Magassela, Fernando Moreira, Fernando Soares, João
Castro, Jorge Mota, Miguel Loureiro, Paulo Freixinho, Paulo Moura Lopes), numa
sóbria e eficaz cenografia de Pedro Tudela, com belos figurinos de Nuno
Carinhas. Desenhos de luz e de som de Nuno Meira e Francisco Leal igualmente
eficientes e de bom gosto. Fica a sensação de um texto fora do contexto. O que
na situação actual…
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