quarta-feira, maio 01, 2013

CINEMA: UM CASO REAL



UM CASO REAL
 


 
“A Royal Affair” esteve no Festival de Berlim de 2012, onde ganhou dois prémios, o de melhor argumento e o de melhor actor, e foi o candidato dinamarquês ao Oscar de Melhor Filme em língua não inglesa. Não teve sorte no ano que lhe coube a nomeação, pois tinha como concorrente o belíssimo e consensual “Amor”, de Michael Haneke, que viria a arrebatar o Oscar sem nenhuma discussão. Não fora este concorrente de peso, e “Um Caso Real” teria certamente melhor sorte, pois trata-se de uma obra cheia de qualidades e de muito interesse, tanto cinematográfico, como político e sociológico.
Obviamente que a crítica não tem sido, neste caso, consensual, ora discutindo o aparecimento de Lars Von Trier como produtor executivo, ele que fora um dos iniciadores do movimento “Dogma” que preconizava um tipo de cinema muito diferente deste que Nikolaj Arcel, o realizador de “A Royal Affair”, nos oferece, ora acusando o filme de não ser mais do que uma réplica do típico e dito bem comportado cinema inglês, mais ou menos clássico. A histeria contra o clássico no seu ponto mais bacoco, como se só o cinema de vanguarda, ou de pseudo vanguarda, tivesse asas para voar.


 
Pois bem, por mim, o filme é muito curioso cinematograficamente, sem ser uma obra-prima, mas suficientemente estimulante como ponto de partida para uma conversa sobre absolutismo e iluminismo, e sobre a importância do século XVIII na construção da sociedade moderna.
De resto, a história é duplamente real, porque se baseia em factos reais e porque se trata de uma narrativa que tem por base a realeza dinamarquesa, em meados do século XVIII. Depois o filme cruza com invejável habilidade um caso individual, o da rainha Carolina que veio de Inglaterra para casar com o rei Cristiano VII da Dinamarca, e se apaixonou pelo médico de sua majestade, o alemão Johann Struensee, e um caso colectivo, as lutas entre a nobreza absolutista, despótica e ultra conservadora, e o movimento dos iluministas que eclodia em França, com os escritos de Rousseau e Voltaire na linha da frente da contestação.
O rei Cristiano VII não tinha obviamente cabeça para governar, acusavam-no com razão de ser louco, os médicos que o rodeiam acham que ele é vítima de masturbação compulsiva, e na verdade não passa de um mero joguete nas mãos do Conselho de Estado, que o faz assinar todos os decretos que acha por bem promulgar. O rei assina de cruz, como se costuma dizer, apesar de saber ler e escrever e até recitar de cor várias passagens de peças de Shakespeare. Autor que idolatra, excepto naquela citação muito conhecida, de que “algo está podre no reino da Dinamarca”, que ele não gosta de ouvir. Mas é o amor ao teatro e ao dramaturgo inglês que o leva a contratar o médico Johann Struensee, igualmente entusiasta de Shakespeare, o qual vai lentamente manipulando a régia criatura, até assumir ele as rédeas do poder, juntamente com a rainha Carolina, de que se tornara amante, ambos irmanados pelas ideias da revolução social, da restrição de privilégios da nobreza e do clero, em favor do povo e da burguesia emergente. Enfim, os ideias da Revolução Francesa a marcarem caminho na sociedade dinamarquesa, uma das mais arcaicas até essa altura.
 


 
Como se compreende, clero e nobreza não gostaram de ser atingidos e prepararam uma reacção, um golpe palaciano, com o apoio da rainha-mãe, servindo-se para tanto da divulgação do adultério da rainha que, entretanto, tinha tido um filho do médico protector. O final não é um final feliz no imediato, muito embora uma legenda final nos assegure que, na geração seguinte, as palavras dos iluministas iriam triunfar na Dinamarca, trazendo este país para um dos lugares cimeiros da civilização europeia.
Outro aspecto muito inteligente desta obra é o facto de desdobrar a política em representação e o teatro em acto político. A determinada altura, por exemplo, o rei confessa que não consegue opor-se aos seus adversários no Conselho de Estado e Johann Struensee explica-lhe que ele deve decorar as réplicas e depois reproduzi-las como se estivesse a representar. O rei passa a ser a voz de Struensee, a voz dos iluministas, por muito que nem sequer perceba o que diz. Continua, portanto, a assinar de cruz, mas agora oralmente. 
A reconstituição de época é convincente e criteriosa, apesar do filme ter sido em grande parte rodado na Republica Checa, a fotografia é deslumbrante, o ritmo bem doseado, e os intérpretes bastante bons, globalmente, com especial destaque para Mikkel Boe Følsgaard, na composição do conturbado rei Cristiano VII, Mads Mikkelsen, o médico alemão, e Alicia Vikander, na figura da rainha Caroline Mathilde.
 
UM CASO REAL
Título origina : En kongelig affære ou A Royal Affair (inglês)
Realização: Nikolaj Arcel (Dinamarca, Suécia, República Checa, 2012); Argumento: Rasmus Heisterberg, Nikolaj Arcel, segundo romance de Bodil Steensen-Leth ("Prinsesse af blodet"); Produção: Meta Louise Foldager, Sisse Graum Jørgensen, Louise Vesth, Jessica Ask, Karen Bentzon, Gillian Berrie, Anna Duffield, Madeleine Ekman, Peter Garde, Peter Aalbæk Jensen, Kristina Kornum, Maria Köpf, Elin Lennartsson, Pavel Muller, Charlotte Pedersen, Martin Persson, Lars von Trier; Música: Cyrille Aufort, Gabriel Yared; Fotografia (cor): Rasmus Videbæk; Montagem: Kasper Leick, Mikkel E.G. Nielsen; Casting: Leo Davis; Design de produção: Niels Sejer; Guarda-roupa: Manon Rasmussen; Maquilhagem: Linda Eisenhamerova, Ivo Strangmüller; Direcção de produção:  Dorissa Berninger, Søren Frimodt-Møller; Assistentes de realização: Kathleen Hänisch, Matej Les, Martin Pavlacky, Tomas Pavlacky; Departamento artístico: Anders Huulgaard, Veronika Skorepova; Som: Hans Christian Arnt Torp, Katharina Bormann, Hans Christian Kock, Claus Lynge, Roman Rigo; Efeitos visuais: Jeppe N. Christensen, Tinko Dimov, Esben Syberg, Jonas Ussing, Mikael Widegren, Claus Toksvig Kjaer; Companhias de produção: Zentropa Entertainments, DR TV, Trollhättan Film AB, Film i Väst, Sveriges Television (SVT), Sirena Film; Intérpretes: Alicia Vikander (Caroline Mathilde), Mads Mikkelsen (Johann Friedrich Struensee), Mikkel Boe Følsgaard (Christian VII), Trine Dyrholm (Juliane Marie), David Dencik (Ove Høegh-Guldberg), Thomas W. Gabrielsson (Schack Carl Rantzau), Cyron Melville (Enevold Brandt), Bent Mejding (J. H. E. Bernstoff), Harriet Walter (Augusta – Princesa de gales), Laura Bro (Louise von Plessen), Søren Malling, Jakob Ulrik Lohmann, Søren Spanning, Frederik Christian Johansen, John Martinus, Rosalinde Mynster, Nikol Kouklová, Egob Nielsen, Michaela Horká, Alzbeta Jenická, Anna Stiborová, William Jøhnk Nielsen, Julia Wentzel Olsen, Frank Rubæk, Klaus Tange, Petr Janis, Karin Rørbeck, Josefine Højbjerg Bitsch, Zinnini Elkington, Morten Holst, Karel Polisenský, etc. Duração: 137 minutos; Classificação etária: M / 12 anos; Distribuição em Portugal: Data de estreia em Portugal: 21 de Março de 2013.

Sem comentários: