NÃO
Os factos: em 1973, Allende foi deposto
da Presidência da República do Chile, por um golpe militar chefiado por Augusto
Pinochet que, a partir daí, e durante quinze anos, chefia uma brutal ditadura
militar.
Em 1988, em virtude da crescente
pressão internacional, inclusive por parte dos Estados Unidos, que
anteriormente tinham ajudado Pinochet a triunfar, o regime militar aceitou
realizar um referendo para decidir se Augusto Pinochet continuaria no poder por
mais oito anos, até 1997, ou não. O que se perguntava aos eleitores era, pois,
se sim ou não a essa intenção do ditador. A ida às urnas ocorreu a 5 de Outubro
de 1988. Do lado do “Si” estavam os partidos, se assim se lhes poderia chamar,
que apoiavam a ditadura, os únicos legais. Do lado do “No”, que se chamava
“Concertação Nacional”, estavam 17 partidos sem existência legal, a que foi
permitida voz pública durante uma campanha de um mês, para apresentarem na
televisão estatal um espaço de propaganda de quinze minutos diários, igual ao
oferecido aos apoiantes do “Si”.
Depois de discussões várias, a oposição
resolveu aceitar o repto e concorrer sob o símbolo do arco iris, a união de
várias cores em redor da ideia de um futuro melhor em liberdade, com uma canção
tema que haveria de resultar em pleno, a “Marcha da Alegria”. Tornou-se o que
hoje se chamaria um fenómeno viral, o que parece ter tido influência decisiva
no resultado final.
Esta campanha política acabaria por se
transformar, em grande parte, numa luta entre duas concepções de publicidade.
Uma mais moderna e manipuladora de emoções (a do “No”), outra mais conservadora
e igualmente manipuladora de sentimentos e de factos (a do “Si”). À frente da
primeira campanha, encontrava-se, segundo o filme de Pablo Larraín, René
Saavedra (Gael García Bernal), e a dirigir o “Sim” Lucho Guzmán (Alfredo
Castro), curiosamente patrão de Saavedra na agência de publicidade onde ambos
trabalhavam. Saavedra, porém, operava a favor do “No” como free lancer. Depois
de um mês de grandes dúvidas, e de algumas peripécias dramáticas, com o regime
militar a tentar intimidar as hostes do “Não”, chegou a noite determinante e o
“Não” haveria de ganhar largamente: 54,71% contra 43,01%. Assim se punha termo
a um dos regimes mais sangrentos das últimas décadas na América Latina,
entrando-se num período de transição para a democracia. Segundo a Constituição
Chilena, a vitória do “Não” implicava eleições livres no prazo de um ano,
durante o qual Pinochet se manteve na presidência, findo o qual cedeu o seu
lugar ao vencedor da eleição que elegia conjuntamente Presidente e Parlamento.
Em Dezembro de 1989, realizaram-se essas novas eleições, do resultado das quais
Patricio Aylwin foi eleito
Presidente da República. O Chile iria entrar num período democrático que se
estenderia até hoje.
O filme: Pablo Larraín, chileno,
nascido a 19 de Agosto de 1976, era já autor de dois filmes particularmente
interessantes sobre a vida no Chile durante a ditadura militar: “Tony Manero” e
“Post Mortem”. “No” é o terceiro momento desta trilogia que nos fornece uma
visão, em momentos distintos, início, durante e fim, do domínio de Pinochet.
“No” é especialmente interessante por vários motivos. Como retrato da agonia de
uma ditadura, como relato de uma transição pacífica da ditadura para a
democracia, mas sobretudo como sintoma de um tempo novo onde a importância do
marketing e da publicidade e dos métodos de manipulação de massas a eles
associados são absolutamente decisivos, não só na venda de produtos, como
também na política.
O filme recorre com frequência a
material de arquivo das televisões, desde os programas de propaganda política
do “Si” e do “No”, como igualmente de actualidades, entrevistas, etc. Para
conseguir uma certa unidade estilística no seu filme, Pablo Larraín resolveu
rodar a sua obra com a mesma câmara de vídeo que havia gravado essas
actualidades, uma Sony U-Matic que, entretanto, já caíra em desuso. O resultado
é realmente de uma grande unidade, com a câmara ao ombro quase sempre, uma
imagem demasiado esbatida e granulada por vezes, mas que consegue esse tom de
grande plausibilidade e credibilidade. Quase todo o filme passa como se de uma
actualidade de fim da década de 80 se tratasse. Depois, há que referir a
excelente qualidade dos intérpretes, sobretudo de Gael García Bernal e de
Alfredo Castro, dois nomes consagrados que aqui confirmam pergaminhos antigos.
Resumindo: um excelente filme político,
recuperando com eficácia um momento da História do Chile, que, no entanto, não
deixa de ser inquietante. Não fora o esmerado trabalho de marketing e
publicidade da campanha do “No” e o Chile continuaria sob a ditadura de
Pinochet? Será que nós, eleitores, estamos à mercê de lavagens de cérebro pelas
eficientes máquinas das agências de publicidade? Já nos tinham dito, mesmo aqui
em Portugal, que se poderia vender presidentes como sabonetes. Temos agora uma
aula teórica e prática de como funciona o sistema. Obviamente que nos podem
sempre dizer – e garantir - que sem uma boa qualidade do produto a vender, este
dificilmente será vendável. Mas já temos provas do contrário.
Será que o eleitor está cada vez menos
interessado em discutir opções políticas e ideias, e cada vez mais se deixa
guiar pelos apelos irracionais? Eu julgo que neste caso do Chile ganhou a
razão, mas nada nos garante que uma boa campanha publicitária e uma excelente
estratégia de marketing não nos impinjam quem quiserem. Não sei mesmo se,
consciente ou inconscientemente, Pablo Larraín não nos ofereceu um filme que
mostra como morrem certas velhas ditaduras e como nascem outras.
NÃO
Título original: No
Realização: Pablo Larraín
(Chile, França, EUA, 2012); Argumento: Pedro Peirano, segundo peça teatral de Antonio Skármeta;
Produção: Daniel Marc Dreifuss, Jonathan King, Juan de Dios Larraín, Pablo
Larraín; Música: Carlos Cabezas; Fotografia (cor): Sergio Armstrong; Montagem:
Andrea Chignoli; Direcção artística: Estefania Larrain; Decoração: María
Eugenia Hederra; Direcção de Produção: Eduardo Castro; Assistentes de
realização: Gabriel Díaz; Departamento de arte: María Eugenia Hederra; Som:
Sebastian Marin, Ivo Moraga, Isaac Moreno, Roberto Zuñiga; Efeitos visuais:
Ismael Cabrera, Rodrigo Rojas Echaiz; Companhias de produção: Fabula,
Participant Media, Funny Balloons, Canana Films; Intérpretes: Gael García Bernal (René Saavedra), Alfredo Castro
(Lucho Guzmán), Luis Gnecco (José Tomás Urrutia), Néstor Cantillana (Fernando),
Antonia Zegers (Verónica Carvajal), Marcial Tagle (Alberto Arancibia), Pascal
Montero (Simón Saavedra), Jaime Vadell (Ministro Fernández), Elsa Poblete
(Carmen), Diego Muñoz (Carlos), Roberto Farías (Marcelo), Sergio Hernández,
Manuela Oyarzún, Paloma Moreno, César Caillet, Pablo Krögh, Patricio Achurra,
Amparo Noguera, Alejandro Goic, Carlos Cabezas, Claudia Cabezas, Paulo
Brunetti, Iñigo Urrutia, Pedro Peirano, Patricio Aylwin, Eugenio Tironi, Juan
Forch, Eugenio García, Juan Gabriel Valdés, Jaime de Aguirre, Florcita Motuda,
Patricio Bañados, Osvaldo Silva, Carmen María Pascal, María Teresa Bacigalupe,
Cecilia Echeñique, Tati Pena, Javiera Parra, Isabel Parra, Cristina Parra,
Milena Rojas, Carlos Caszely, Gabriela Medina, Malucha Pinto, Maitén
Montenegro, Jorge Yáñez, Claudio Narea, Marco Antonio de la Parra, Ana María
Gazmuri, Marcela Medel, Reinaldo Vallejo, Claudio Guzmán, Consuelo Holzapfel, Maricarmen
Arrigorriaga, Shlomit Baytelman, Delfina Guzmán, María Elena Duvauchelle, Julio
Jung, Richard Dreyfuss, Jane Fonda, Luz Jiménez, Augusto Pinochet, Christopher
Reeve, César Arredondo (alguns em imagens de arquivo), etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em
Portugal: Alambique Destilaria de Ideias Unipessoal; Classificação etária: M7
12 anos; Data da Estreia em Portugal: 25 de Abril de 2013.
1 comentário:
Totalmente de acordo com esta
crítica.É um filme que eu considero um dos melhores que
ultimamente passaram nas salas
de cinema. Devia até ser obrigatório ver este filme.
Aprende-se muito com esta história
real!
M.Júlia
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