domingo, maio 19, 2013

COMO UM MAU FILME AMERICANO

 
 
LUÍS FILIPE SARMENTO:
“COMO UM MAU FILME AMERICANO”

No passado dia 17, fui um dos convidados de Luís Filipe Sarmento para apresentar o seu novo romance "Como um Mau Filme Americano". Infelizmente, nessa noite, ataques de tosse contínuos, quase me impediram de fazer chegar ao público presente as palavras que tinha escrito. Coisas das febres do feno e do tabaco, claro.
Aqui fica o texto, para quem tiver interesse de o conhecer.
 
 
Por que razão apareço eu a apresentar um livro de Luís Filipe Sarmento? Eis uma boa pergunta que merece uma resposta. Não sei se cabal. Se calhar o melhor seria explicar muito prosaicamente, “os gajos são amigos” e calhou. Também é verdade. Mas já agora vou começar por tentar explicar como nasceu a amizade.

Em 1974, para lá de ter acontecido o que todos sabemos e alguns se calhar nos querem fazer esquecer, eu fiz o meu primeiro filme, uma curta-metragem de 18 minutos, chamada “Vamos ao Nimas”. Eu tivera a ideia, planificara, realizara, montara, um filme que procurava mostrar como e porquê desapareciam os cinemas populares na capital. O texto, depois dito pela Lia Gama e o José Nuno Martins, fora escrito pela Maria Eduarda Reis Colares, a fotografia, a preto e branco era do Moedas Miguel, e o meu assistente estagiário era o Lipinho, como então tratávamos carinhosamente o puto Luís Filipe Sarmento. De alguma forma também me sinto responsável pela presente obra. Se calhar fui eu que o levei a ver os maus filmes americanos. Mas se assim foi, ainda bem.

Mas eu conhecera e convivera bastante com o Lipinho, que devia ser puto na altura para os seus dezoito, dezanove anos, no café Vavá, poiso habitual, meu e dele, e de muitos outros amigos com quem diariamente confraternizávamos. Alguns do cinema, como o Manuel Guimarães, outros da música, da pintura, do jornalismo, das associações estudantis, quase todos do chamado reviralho, do antes do 25 de Abril.

Quando tive oportunidade de cumprir a minha iniciação no cinema, numa obra de “autoria” individual, precisava de um assistente que me acompanhasse, e o Lipinho foi quem escolhi e quem se ofereceu. Nessa altura já gostava muito de cinema e de escrever. Era irrequieto e queria saber tudo sobre tudo. Percebi logo que não iria ficar por ali. Havia inquietação bastante para se prolongar pelo futuro. Acompanhou-me interessado durante o tempo de preparação das filmagens, de procura dos locais para a rodagem dos planos, as chamadas repérages, e durante a própria filmagem e montagem. Continuámos a ver-nos com assiduidade durante uns tempos, depois os contactos tornaram-se mais esporádicos, fui sabendo da sua vida literária, de algumas experiências videográficas, do trabalho como professor, descobri que tinha emigrado para Badajoz, Já não tinha coragem para o tratar por Lipinho, era o Luís Filipe Sarmento. Foi este que há una tempos me telefonou a perguntar se apresentava um novo livro dele, que tinha como título “Como um Mau Filme Americano”.

Luís Filipe Sarmento não me achava certamente um expert em crítica literária, mas deve supor que sou um razoável conhecedor de “maus filmes americanos”. Aceitei logo, sem ler a obra antecipadamente, por dois motivos. O título parecia-me interessante, calculava o romance divertido e não acreditava muito que Luís Filipe Sarmento escrevesse e publicasse um mau livro. Depois havia a recordação de uma amizade, que é sempre bom reavivar.

Pronto, aqui estou eu depois de ler o original no computador, amavelmente enviado em pdf pelo seu autor. Que dizer?

Antes de mais, e apesar da amizade, não sou pessoa para fazer fretes. Já tenho idade para dizer o que penso, sem rodeios. Alias, não é cousa de idade. Sempre assim fui. So que agora tenho menos vergonha. Quando não gosto de um livro, seja de veterano encartado ou de iniciado prometedor, ponho de lado, passado 50 páginas. Já lá vai o tempo do sacrifício para entender as razões últimas dos criadores. Li o livro do Luís Filipe Sarmento com interesse e sem sacrifício. É interessante, divertido, algo iconoclasta, provocador. É criativo e suficientemente original na sua construção, um dos aspectos a salientar devidamente na obra.

Arthur Brown Silva é pintor, americano de origem portuguesa, vive sozinho perto de Boston, e um dia descobre, ao regressar a casa, nua, no seu apartamento, uma jovem de nome Ivette Marie, “vizinha do lado, com cerca de 22 anos, filha de emigrantes franceses, estabelecidos na cidade há cerca de vinte anos com uma empresa enigmática de Import/Export”. A coisa começa bem e promete, promessas que se cumprem. A novela é tórrida com a jovem Ivette e vai ocupar grande parte da obra que se centra em meia dúzia de cenários e funciona como concerto literário de câmara.

Mas uma das originalidades de Luís Filipe Sarmento é o aparecimento de um narrador, omnipresente, que vai comentando o que escreve. Lá mais para o meio, aparece ainda o autor, o que lança a confusão na narrativa. Dir-se-ia que existe o autor que pensa, o narrador que escreve, as personagens que se afirmam independentes e agem sem darem grande cavaco a um ou outro, tudo isto não é novo, claro, por aqui passou pelo menos Pirandello, mas resulta estimulante e divertido, sobretudo por que ninguém se leva muito a sério. Aliás o narrador é apresentado nestes termos: “O narrador, que não queria ter muito trabalho na escrita desta novela, porque é um preguiçoso inveterado, vai ter de se socorrer das obras de estética, do Benedetto Croce ao Townsend, do Focillon ao Huisman, ler e reler o Munari, o Deleuze, o Lipovetsky, viajar a Nietzsche, a Freud, a Sartre, redescobrir Roland Barthes, ir e voltar a muitos outros filósofos, historiadores de arte, escritores, provavelmente aos clássicos, reler Platão e Aristóteles e tentar, agora, compreendê-los, ir em busca de Heidegger, redescobrir os mitos e rever os filmes de Woody Allen, exactamente, Woody Allen, como o artista que melhor falou do corpo da cidade, da mulher enquanto metrópole misteriosa, do conflito de prazeres, estudar atentamente a luz de Vermeer, perceber Kurosawa ou penetrar no enredo temporal de Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf. Olha-me a camisa de onze varas em que este gajo se meteu. Mas o narrador, cuja demência lhe é reconhecida por toda a gente que com ele convive, vai deixar-se levar pela torrente automática das ideias, das palavras e das imagens, sem sequer se importar com leituras e releituras episódicas. Ele sabe que, com isto, não vai provar nada a ninguém, não vai querer provar nada a ninguém nem a si próprio, mas sim desfrutar deste prazer de contar uma história sem qualquer fio condutor ou, se olharmos por outro prisma, desfrutar do prazer de estar dentro de uma não-história. Assim seja, como diria o outro e também os maçons quando não têm mais nada para dizer”.

Mas esta questão do narrador e do autor torna-se ainda mais complexa, pois por detrás destes existe ainda um outro autor, e, antes deste, o próprio Luís Filipe Sarmento. Esta estrutura de espelhos que se reproduzem uns aos outros, ou de matrioskas que continuamente vão saindo umas do ventre das outras, é desconcertante, e permite reflexões que, aqui e ali, invadem os terrenos da filosofia, da estética, e sobretudo da poética do corpo e do prazer. Esta é essencialmente uma novela que fala do amor físico e do prazer, este a estender-se entre os terrenos da libido e da arte. As meditações, que por vezes julgo demasiado referenciadas a autores de credenciais firmadas, como se a obra necessitasse dessa creditação autoral, dessa legitimação cultural, são bastante interessantes de seguir, bem assim como o contínuo vaivém entre o narrador e as personagens que possibilita inclusive que se estabeleçam laços emocionais e relações físicas. De todas as formas, esta construção é muito cinematográfica, utilizando uma montagem intercortada que coloca e paralelo narrador, autor e situações descritas. Personagens à procura de autor, ou autores em busca de personagens que lhes parecem fugir?

As descrições eróticas são abundantes e quase sempre se expressam numa linguagem luxuriante mas ligeiramente irónica. Algo distanciada até. Um exemplo, que se pretende não muito chocante para a amável assistência: “Ivette Marie, durante a mamada, tem comportamentos estranhos, recriando-se como uma pornostar, manipulando o sexo irado de Arthur com movimentos circulares da mão direita enquanto a sua língua espetada e dobrada na ponta vibra na base da glande. Arthur só vira uma coisa assim nos sites pornográficos da Net onde as profissionais fazem sexo em posições circenses e os grandes planos dão todos os pormenores técnicos, como um manual de instruções, de como se deve fazer um requintado blowjob”.

O sexo é pois uma constante, mas não é algo que apareça de forma arbitrária ou gratuita. O que se procura é, sem grandes eloquências balofas, retractar uma sociedade em transformação:

“Se no ciberespaço o sexo se exprime cada vez mais de forma excessiva já a vida quotidiana, doméstica, é pouco ousada no comportamento entre os seus protagonistas. Então, o que mudou? A grande alteração dá-se com a ecranização da sociedade moderna que levou sobretudo uma população jovem a uma produção individual de prazer erótico muito para além da masturbação. A possibilidade em cenários virtuais de ter mais do que um parceiro no jogo erótico, sem que com isso se ponha em risco a saúde, veio estimular populações jovens em busca de novas fronteiras. Os afectos poderão ficar para depois onde pouco se altera em relação a um passado recente. O ser em si está além do seu organismo que se relaciona socialmente com outros. E esta nova sociedade, a sociedade do hiperconsumo, a sociedade hipermoderna, nos seus distintos universos codifica desejos que se ampliam numa constante desterritorialização. E esta sociedade hipermoderna estabelece novos protocolos de experiência e que se diferencia de outras através dos seus códigos hipereróticos. A área de acção da cultura hiper é estabelecida nos limites, na descoberta de novas sensações que provocam novos desejos que, por sua vez, produzem um novo real e um novo social. E tudo é para ser consumido através da imagem-excesso. Trata-se de um novo território do capitalismo. Onde tudo se tritura. Onde tudo passa vorazmente ao território do que passou. E quando se pronuncia a palavra futuro, como escreveu a poetisa polaca Zimborska, já a primeira sílaba pertence ao passado, assim o hiperconsumo da sociedade hipermoderna. Temos uma orgia de representações versus uma ordem mais ou menos disciplinada dos costumes. O prazer ilimitado da second life ocultado no socialmente aceitável da first life. O mergulho incondicional no ecrã, ou seja, num outro território, desterritorializando-se do comensurável quotidiano. A sociedade hipermoderna manifesta uma atracção, um gosto pelo novo. As sensações do imaginário, desejadas, ultrapassam limites, o dia a dia dos seus protagonistas está normalmente muito afastado desse mundo. Há dois tempos, há dois relógios, há dois espaços aparentemente paralelos. Paradoxalmente, os protagonistas destas novas experiências não querem relegar, como observa Lipovetsky, para um plano secundário o ideal de se ser sujeito ao olhar do outro, querendo manter o estatuto de ser insubstituível. Isto quer dizer que a sociedade hiperindividualista da second life esgota facilmente as ideias imagéticas do hipererotismo para que o ser se torne amado, desejado, sobrevalorizado aos olhos do parceiro? Apesar dos apelos e chamamentos contínuos ao prazer, o regresso de Narciso aniquila o mito dionisíaco. E o desejo? O desejo, do ponto de vista de Deleuze e Guattari, não suportará ficar enclausurado nas celas e células familiares. O desejo é revolucionário e criador e como tal só poderá criar na desterritorialização dos limites aceites. E, neste caso, Dionísio poderá vencer Narciso, ou antes, associar-se a ele, como se tem verificado na exacerbação do beautiful people como uma união erótica hipermoderna. O corpo será, assim, uma poética a descobrir, fruindo-se num mundo que aparentemente não tem lugar para velhos. Não o ser de uma idade avançada, mas aquele que não aceita ou não quer ver que a sociedade hipermoderna assenta no novo”.

Como se pode ver, “Como um Mau Filme Americano” não é apenas uma novela ou um romance divertido e criativo na sua escrita. É, igualmente, uma elaborada racionalização do nosso tempo, da sociedade onde vivemos e de aspectos tão importantes como o papel da arte, do prazer, do desejo, do amor, do comércio da arte e do corpo, da liberdade individual perante uma sociedade opressiva, mesmo quando, ou sobretudo quando, se apresenta como libertadora e libertária. Sem que o seja. Ou sendo-o, com segundas intenções. Afinal, “como num mau filme americano”.

Lauro António
Lisboa, 17 de Maio de 2013

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