LUÍS FILIPE SARMENTO:
“COMO UM MAU FILME AMERICANO”
No passado dia 17, fui um dos convidados de Luís Filipe Sarmento para apresentar o seu novo romance "Como um Mau Filme Americano". Infelizmente, nessa noite, ataques de tosse contínuos, quase me impediram de fazer chegar ao público presente as palavras que tinha escrito. Coisas das febres do feno e do tabaco, claro.
Aqui fica o texto, para quem tiver interesse de o conhecer.
Por que razão apareço eu a apresentar um livro de Luís
Filipe Sarmento? Eis uma boa pergunta que merece uma resposta. Não sei se
cabal. Se calhar o melhor seria explicar muito prosaicamente, “os gajos são
amigos” e calhou. Também é verdade. Mas já agora vou começar por tentar explicar
como nasceu a amizade.
Em 1974, para lá de ter acontecido o que todos sabemos e
alguns se calhar nos querem fazer esquecer, eu fiz o meu primeiro filme, uma
curta-metragem de 18 minutos, chamada “Vamos ao Nimas”. Eu tivera a ideia,
planificara, realizara, montara, um filme que procurava mostrar como e porquê
desapareciam os cinemas populares na capital. O texto, depois dito pela Lia
Gama e o José Nuno Martins, fora escrito pela Maria Eduarda Reis Colares, a
fotografia, a preto e branco era do Moedas Miguel, e o meu assistente
estagiário era o Lipinho, como então tratávamos carinhosamente o puto Luís
Filipe Sarmento. De alguma forma também me sinto responsável pela presente
obra. Se calhar fui eu que o levei a ver os maus filmes americanos. Mas se
assim foi, ainda bem.
Mas eu conhecera e convivera bastante com o Lipinho, que
devia ser puto na altura para os seus dezoito, dezanove anos, no café Vavá,
poiso habitual, meu e dele, e de muitos outros amigos com quem diariamente
confraternizávamos. Alguns do cinema, como o Manuel Guimarães, outros da
música, da pintura, do jornalismo, das associações estudantis, quase todos do
chamado reviralho, do antes do 25 de Abril.
Quando tive oportunidade de cumprir a minha iniciação no
cinema, numa obra de “autoria” individual, precisava de um assistente que me
acompanhasse, e o Lipinho foi quem escolhi e quem se ofereceu. Nessa altura já
gostava muito de cinema e de escrever. Era irrequieto e queria saber tudo sobre
tudo. Percebi logo que não iria ficar por ali. Havia inquietação bastante para
se prolongar pelo futuro. Acompanhou-me interessado durante o tempo de
preparação das filmagens, de procura dos locais para a rodagem dos planos, as
chamadas repérages, e durante a própria filmagem e montagem. Continuámos a
ver-nos com assiduidade durante uns tempos, depois os contactos tornaram-se
mais esporádicos, fui sabendo da sua vida literária, de algumas experiências
videográficas, do trabalho como professor, descobri que tinha emigrado para
Badajoz, Já não tinha coragem para o tratar por Lipinho, era o Luís Filipe
Sarmento. Foi este que há una tempos me telefonou a perguntar se apresentava um
novo livro dele, que tinha como título “Como um Mau Filme Americano”.
Luís Filipe Sarmento não me achava certamente um expert
em crítica literária, mas deve supor que sou um razoável conhecedor de “maus
filmes americanos”. Aceitei logo, sem ler a obra antecipadamente, por dois
motivos. O título parecia-me interessante, calculava o romance divertido e não
acreditava muito que Luís Filipe Sarmento escrevesse e publicasse um mau livro.
Depois havia a recordação de uma amizade, que é sempre bom reavivar.
Pronto, aqui estou eu depois de ler o original no
computador, amavelmente enviado em pdf pelo seu autor. Que dizer?
Antes de mais, e apesar da amizade, não sou pessoa para
fazer fretes. Já tenho idade para dizer o que penso, sem rodeios. Alias, não é
cousa de idade. Sempre assim fui. So que agora tenho menos vergonha. Quando não
gosto de um livro, seja de veterano encartado ou de iniciado prometedor, ponho
de lado, passado 50 páginas. Já lá vai o tempo do sacrifício para entender as
razões últimas dos criadores. Li o livro do Luís Filipe Sarmento com interesse
e sem sacrifício. É interessante, divertido, algo iconoclasta, provocador. É
criativo e suficientemente original na sua construção, um dos aspectos a
salientar devidamente na obra.
Arthur Brown Silva é pintor, americano de origem
portuguesa, vive sozinho perto de Boston, e um dia descobre, ao regressar a
casa, nua, no seu apartamento, uma jovem de nome Ivette Marie, “vizinha do
lado, com cerca de 22 anos, filha de emigrantes franceses, estabelecidos na
cidade há cerca de vinte anos com uma empresa enigmática de Import/Export”. A
coisa começa bem e promete, promessas que se cumprem. A novela é tórrida com a
jovem Ivette e vai ocupar grande parte da obra que se centra em meia dúzia de
cenários e funciona como concerto literário de câmara.
Mas uma das originalidades de Luís Filipe Sarmento é o
aparecimento de um narrador, omnipresente, que vai comentando o que escreve. Lá
mais para o meio, aparece ainda o autor, o que lança a confusão na narrativa.
Dir-se-ia que existe o autor que pensa, o narrador que escreve, as personagens
que se afirmam independentes e agem sem darem grande cavaco a um ou outro, tudo
isto não é novo, claro, por aqui passou pelo menos Pirandello, mas resulta
estimulante e divertido, sobretudo por que ninguém se leva muito a sério. Aliás
o narrador é apresentado nestes termos: “O
narrador, que não queria ter muito trabalho na escrita desta novela, porque é
um preguiçoso inveterado, vai ter de se socorrer das obras de estética, do
Benedetto Croce ao Townsend, do Focillon ao Huisman, ler e reler o Munari, o
Deleuze, o Lipovetsky, viajar a Nietzsche, a Freud, a Sartre, redescobrir
Roland Barthes, ir e voltar a muitos outros filósofos, historiadores de arte,
escritores, provavelmente aos clássicos, reler Platão e Aristóteles e tentar,
agora, compreendê-los, ir em busca de Heidegger, redescobrir os mitos e rever
os filmes de Woody Allen, exactamente, Woody Allen, como o artista que melhor
falou do corpo da cidade, da mulher enquanto metrópole misteriosa, do conflito
de prazeres, estudar atentamente a luz de Vermeer, perceber Kurosawa ou penetrar
no enredo temporal de Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf. Olha-me a camisa de onze
varas em que este gajo se meteu. Mas o narrador, cuja demência lhe é
reconhecida por toda a gente que com ele convive, vai deixar-se levar pela
torrente automática das ideias, das palavras e das imagens, sem sequer se
importar com leituras e releituras episódicas. Ele sabe que, com isto, não vai
provar nada a ninguém, não vai querer provar nada a ninguém nem a si próprio,
mas sim desfrutar deste prazer de contar uma história sem qualquer fio condutor
ou, se olharmos por outro prisma, desfrutar do prazer de estar dentro de uma
não-história. Assim seja, como diria o outro e também os maçons quando não têm
mais nada para dizer”.
Mas esta questão do narrador e do autor torna-se ainda
mais complexa, pois por detrás destes existe ainda um outro autor, e, antes
deste, o próprio Luís Filipe Sarmento. Esta estrutura de espelhos que se
reproduzem uns aos outros, ou de matrioskas que continuamente vão saindo umas
do ventre das outras, é desconcertante, e permite reflexões que, aqui e ali,
invadem os terrenos da filosofia, da estética, e sobretudo da poética do corpo
e do prazer. Esta é essencialmente uma novela que fala do amor físico e do
prazer, este a estender-se entre os terrenos da libido e da arte. As
meditações, que por vezes julgo demasiado referenciadas a autores de
credenciais firmadas, como se a obra necessitasse dessa creditação autoral,
dessa legitimação cultural, são bastante interessantes de seguir, bem assim
como o contínuo vaivém entre o narrador e as personagens que possibilita
inclusive que se estabeleçam laços emocionais e relações físicas. De todas as
formas, esta construção é muito cinematográfica, utilizando uma montagem
intercortada que coloca e paralelo narrador, autor e situações descritas. Personagens
à procura de autor, ou autores em busca de personagens que lhes parecem fugir?
As descrições eróticas são abundantes e quase sempre se
expressam numa linguagem luxuriante mas ligeiramente irónica. Algo distanciada
até. Um exemplo, que se pretende não muito chocante para a amável assistência: “Ivette Marie, durante a mamada, tem
comportamentos estranhos, recriando-se como uma pornostar, manipulando o sexo
irado de Arthur com movimentos circulares da mão direita enquanto a sua língua
espetada e dobrada na ponta vibra na base da glande. Arthur só vira uma coisa
assim nos sites pornográficos da Net onde as profissionais fazem sexo em
posições circenses e os grandes planos dão todos os pormenores técnicos, como
um manual de instruções, de como se deve fazer um requintado blowjob”.
O sexo é pois uma constante, mas não é algo que apareça
de forma arbitrária ou gratuita. O que se procura é, sem grandes eloquências
balofas, retractar uma sociedade em transformação:
“Se no ciberespaço o sexo se exprime cada vez mais de forma excessiva já a
vida quotidiana, doméstica, é pouco ousada no comportamento entre os seus
protagonistas. Então, o que mudou? A grande alteração dá-se com a ecranização
da sociedade moderna que levou sobretudo uma população jovem a uma produção
individual de prazer erótico muito para além da masturbação. A possibilidade em
cenários virtuais de ter mais do que um parceiro no jogo erótico, sem que com
isso se ponha em risco a saúde, veio estimular populações jovens em busca de
novas fronteiras. Os afectos poderão ficar para depois onde pouco se altera em
relação a um passado recente. O ser em si está além do seu organismo que se
relaciona socialmente com outros. E esta nova sociedade, a sociedade do
hiperconsumo, a sociedade hipermoderna, nos seus distintos universos codifica
desejos que se ampliam numa constante desterritorialização. E esta sociedade
hipermoderna estabelece novos protocolos de experiência e que se diferencia de
outras através dos seus códigos hipereróticos. A área de acção da cultura hiper
é estabelecida nos limites, na descoberta de novas sensações que provocam novos
desejos que, por sua vez, produzem um novo real e um novo social. E tudo é para
ser consumido através da imagem-excesso. Trata-se de um novo território do
capitalismo. Onde tudo se tritura. Onde tudo passa vorazmente ao território do
que passou. E quando se pronuncia a palavra futuro, como escreveu a poetisa
polaca Zimborska, já a primeira sílaba pertence ao passado, assim o
hiperconsumo da sociedade hipermoderna. Temos uma orgia de representações
versus uma ordem mais ou menos disciplinada dos costumes. O prazer ilimitado da
second life ocultado no socialmente aceitável da first life. O mergulho
incondicional no ecrã, ou seja, num outro território, desterritorializando-se
do comensurável quotidiano. A sociedade hipermoderna manifesta uma atracção, um
gosto pelo novo. As sensações do imaginário, desejadas, ultrapassam limites, o
dia a dia dos seus protagonistas está normalmente muito afastado desse mundo.
Há dois tempos, há dois relógios, há dois espaços aparentemente paralelos.
Paradoxalmente, os protagonistas destas novas experiências não querem relegar,
como observa Lipovetsky, para um plano secundário o ideal de se ser sujeito ao
olhar do outro, querendo manter o estatuto de ser insubstituível. Isto quer
dizer que a sociedade hiperindividualista da second life esgota facilmente as
ideias imagéticas do hipererotismo para que o ser se torne amado, desejado,
sobrevalorizado aos olhos do parceiro? Apesar dos apelos e chamamentos
contínuos ao prazer, o regresso de Narciso aniquila o mito dionisíaco. E o
desejo? O desejo, do ponto de vista de Deleuze e Guattari, não suportará ficar
enclausurado nas celas e células familiares. O desejo é revolucionário e
criador e como tal só poderá criar na desterritorialização dos limites aceites.
E, neste caso, Dionísio poderá vencer Narciso, ou antes, associar-se a ele,
como se tem verificado na exacerbação do beautiful people como uma união
erótica hipermoderna. O corpo será, assim, uma poética a descobrir, fruindo-se
num mundo que aparentemente não tem lugar para velhos. Não o ser de uma idade
avançada, mas aquele que não aceita ou não quer ver que a sociedade
hipermoderna assenta no novo”.
Como se pode ver, “Como um Mau Filme Americano” não é
apenas uma novela ou um romance divertido e criativo na sua escrita. É,
igualmente, uma elaborada racionalização do nosso tempo, da sociedade onde
vivemos e de aspectos tão importantes como o papel da arte, do prazer, do
desejo, do amor, do comércio da arte e do corpo, da liberdade individual
perante uma sociedade opressiva, mesmo quando, ou sobretudo quando, se
apresenta como libertadora e libertária. Sem que o seja. Ou sendo-o, com
segundas intenções. Afinal, “como num mau filme americano”.
Lauro António
Lisboa, 17 de Maio de 2013
Lisboa, 17 de Maio de 2013
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