quarta-feira, setembro 04, 2013

Valter Hugo Mãe fala de "Manhã Submersa"


Autobiografia imaginária / Valter Hugo Mãe
Manhã Submersa


Vergílio Ferreira precisava de ser ressuscitado. Mesmo que muitos me digam que ele nem era simpático, andava de cara fechada, reagia pouco bem aos leitores, era severo, um daqueles cidadãos de antigamente cheios de infernos para se culpar e culpar os outros. O Vergílio Ferreira, ainda que difícil de aturar, precisava de ficar vivo e escrever sempre mais para traduzir o intraduzível de que tantas vezes dependemos. Essas máquinas todas sofisticadas que o mundo já tem são muito tolas se não servem para eternizar a vida de alguém. E não me venham dizer que os escritores são eternos, porque os livros do Vergílio Ferreira nunca estiveram tão bonitos [Quetzal] e não me parece que muita gente lhes esteja a pegar. Deve andar tudo maluco. Também urge ir pelas ruas mandar para a cadeia todos quantos não leem Vergílio Ferreira.
Sou a favor de cadeias para crimes de desperdício de maravilha. Quem tem acesso à maravilha e a despreza não pode reclamar da falta de amores, da falta de felicidade.
Volto sempre ao Manhã Submersa. Passei um tempo em estadias breves num seminário de Famalicão, nunca fui forçado a nada, mas tive muito da tentação inexplicável de me sacrificar, abdicar de mim para cumprir uma função exclusivamente dedicada aos outros. Não era uma ideia burra, era apenas uma ideia exagerada. Achava que estar vivo efetivamente me obrigava, e achava que podei pensar e sentir acerca da miséria alheia me condenava à necessidade de intervir. Não poderia ser outra coisa senão um missionário.
Ainda vivi naquele Portugal de casas frias, as poucas cores, os adultos tristes, cansados, pobres, a esperança inteira e tão mal fundada na graça divina. Lembro-me bem da beatitude em meu redor, a senhoria tão religiosa, as tias, a família muito grande, a minha ingenuidade. Eu era um rapaz perfeito para a virtude. Tantas vezes me disseram que haveria de crescer para padre, com a fé toda e a vida resolvida de trabalho, teto e comida. Tinha um medo profundo do que pudesse ser o futuro. Sentia que crescer era ir ao contrário da vontade ou das coisas
naturais.
Hoje estive a rever o filme do Lauro António e poucos filmes me fascinam e magoam tanto quanto este. A sua plasticidade austera, o severo das personagens, a música desoladora e bela,
tudo me impressiona. Compadeço-me com ver o rapaz, sempre a honra da família nas mãos, completamente encurralado pela candura, esforçando-se para aceitar um destino avesso.
Lembro- me de ler pela primeira vez o livro do Vergílio Ferreira e de tentar não dar um rosto ao miúdo, nem que fosse o meu. Tinha-Ihe muita compaixão e sentia-me intimidado. De algum modo, não arranjava coragem para o conhecer ou nunca teria coragem para pensar que poderia ser eu. Compreendia tão bem porque cada coisa lhe acontecia, eram-me tão inteligíveis as suas razões e a sua tristeza que não podia chegar demasiado perto, para não tomar a ficção por realidade.
O Lauro António deu um rosto ao miúdo e podia ser que me salvasse definitivamente de me confundir com ele. Mas há qualquer coisa na maneira como a memória fica que se vai apoderando das diferenças e dizendo que elas são apenas aparentes. Com a idade, sobretudo no que diz respeito à infância, as coisas revelam -se- nos e quase. sempre correspondem às nossas mais estranhas e inconfessáveis ideias. Eu sei que parte de mim deveria andar missionária em África. Isso nunca ninguém me apagará da consciência. Por outro lado, o ser um bocado lingrinhas e dado a dores de cabeça e todo ocupado com livros e histórias não promete muito um missionário. Provavelmente, ao fim de um mês, estaria com os paludismos todos e o calor demasiado esmaga-me o cérebro, e ia faltar-me a mordomia das casas que temos, o café, a roupa da Zara, a estreia de outro filme, os livros.
O que queria dizer era que o Lauro António também devia ser acusado de crime contra o desperdício da maravilha. Isto porque ficou grandemente pelo Manhã Submersa e O Vestido
Cor de Fogo. Um homem que faz destes filmes não pode esquecer-se. Havia de haver escolas verdadeiras. Daquelas públicas que pudessem continuar a ser públicas, para toda a gente, integradoras, generosas, onde se ensinassem as pessoas exatamente para a maravilha. E, depois, havia toda a gente se pôr a ler o livro e a ver o filme. A tirar notas, fazer testes sobre
isso como quem gosta de fazer testes, porque estudar ia ser perfeito. Era fundamental que pensássemos acerca daquela realidade e que pensássemos acerca de como um livro e um filme podem ser tão intensos e guardar dentro partes de gente como para sempre vivas, vigentes, com sentido.
O Vergílio Ferreira não estou a ver quem ressuscite. Resta ler. O Lauro António, desnecessitado de ressurreições, há que consciencializar-se das suas obrigações. Que isto de filmar como filma não lhe dá o direito de recusar-se a voltar ao grande cinema. Depois de Ferreira e Sena, José Cardoso Pires ou Urbano Tavares Rodrigues ficariam muito lindos.


In “Jornal de Letras”, 4 de Setembro de 2013

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