Autobiografia imaginária / Valter
Hugo Mãe
Manhã Submersa
Sou a favor de cadeias para
crimes de desperdício de maravilha. Quem tem acesso à maravilha e a despreza
não pode reclamar da falta de amores, da falta de felicidade.
Volto sempre ao Manhã
Submersa. Passei um tempo em estadias breves num seminário de Famalicão, nunca
fui forçado a nada, mas tive muito da tentação inexplicável de me sacrificar,
abdicar de mim para cumprir uma função exclusivamente dedicada aos outros. Não
era uma ideia burra, era apenas uma ideia exagerada. Achava que estar vivo
efetivamente me obrigava, e achava que podei pensar e sentir acerca da miséria
alheia me condenava à necessidade de intervir. Não poderia ser outra coisa
senão um missionário.
Ainda vivi naquele Portugal de
casas frias, as poucas cores, os adultos tristes, cansados, pobres, a esperança
inteira e tão mal fundada na graça divina. Lembro-me bem da beatitude em meu
redor, a senhoria tão religiosa, as tias, a família muito grande, a minha
ingenuidade. Eu era um rapaz perfeito para a virtude. Tantas vezes me disseram
que haveria de crescer para padre, com a fé toda e a vida resolvida de
trabalho, teto e comida. Tinha um medo profundo do que pudesse ser o futuro.
Sentia que crescer era ir ao contrário da vontade ou das coisas
naturais.
Hoje estive a rever o filme do
Lauro António e poucos filmes me fascinam e magoam tanto quanto este. A sua
plasticidade austera, o severo das personagens, a música desoladora e bela,
tudo me impressiona.
Compadeço-me com ver o rapaz, sempre a honra da família nas mãos, completamente
encurralado pela candura, esforçando-se para aceitar um destino avesso.
Lembro- me de ler pela
primeira vez o livro do Vergílio Ferreira e de tentar não dar um rosto ao
miúdo, nem que fosse o meu. Tinha-Ihe muita compaixão e sentia-me intimidado.
De algum modo, não arranjava coragem para o conhecer ou nunca teria coragem
para pensar que poderia ser eu. Compreendia tão bem porque cada coisa lhe
acontecia, eram-me tão inteligíveis as suas razões e a sua tristeza que não
podia chegar demasiado perto, para não tomar a ficção por realidade.
O Lauro António deu um rosto
ao miúdo e podia ser que me salvasse definitivamente de me confundir com ele. Mas
há qualquer coisa na maneira como a memória fica que se vai apoderando das
diferenças e dizendo que elas são apenas aparentes. Com a idade, sobretudo no
que diz respeito à infância, as coisas revelam -se- nos e quase. sempre correspondem
às nossas mais estranhas e inconfessáveis ideias. Eu sei que parte de mim
deveria andar missionária em África. Isso nunca ninguém me apagará da
consciência. Por outro lado, o ser um bocado lingrinhas e dado a dores de
cabeça e todo ocupado com livros e histórias não promete muito um missionário.
Provavelmente, ao fim de um mês, estaria com os paludismos todos e o calor
demasiado esmaga-me o cérebro, e ia faltar-me a mordomia das casas que temos, o
café, a roupa da Zara, a estreia de outro filme, os livros.
O que queria dizer era que o
Lauro António também devia ser acusado de crime contra o desperdício da
maravilha. Isto porque ficou grandemente pelo Manhã Submersa e O Vestido
Cor de Fogo. Um homem que faz
destes filmes não pode esquecer-se. Havia de haver escolas verdadeiras.
Daquelas públicas que pudessem continuar a ser públicas, para toda a gente,
integradoras, generosas, onde se ensinassem as pessoas exatamente para a
maravilha. E, depois, havia toda a gente se pôr a ler o livro e a ver o filme.
A tirar notas, fazer testes sobre
isso como quem gosta de fazer
testes, porque estudar ia ser perfeito. Era fundamental que pensássemos acerca
daquela realidade e que pensássemos acerca de como um livro e um filme podem
ser tão intensos e guardar dentro partes de gente como para sempre vivas,
vigentes, com sentido.
O Vergílio Ferreira não estou
a ver quem ressuscite. Resta ler. O Lauro António, desnecessitado de
ressurreições, há que consciencializar-se das suas obrigações. Que isto de
filmar como filma não lhe dá o direito de recusar-se a voltar ao grande cinema.
Depois de Ferreira e Sena, José Cardoso Pires ou Urbano Tavares Rodrigues
ficariam muito lindos.
In “Jornal de Letras”, 4 de
Setembro de 2013
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