A
ESTALAJADEIRA
“A Estalajadeira”, de Carlo Goldoni,
na sua versão encenada por Jorge Silva Melo (que só agora vi, no Luísa Todi, em
Setúbal), coloca curiosas questões que sabe bem discutir. Diga-se desde já que
a encenação é sóbria, enxuta, movimentando-se com agilidade num cenário frugal,
discreto, dispondo apenas dos elementos indispensáveis para o essencial da acção.
Escolheu-se um tempo neutro, fala-se de cavaleiros e condes, de estalajadeiras
e de outras miudezas do século XVIII, mas bem se podia estar na actualidade.
Essa intemporalidade é intencional, e tem a graça de poder também ser obra do
século XVIII, como é. Jorge Silva Melo está numa fase da sua vida e da sua arte
em que parece que fundamental para si são as palavras dos autores e o corpo e
as vozes dos actores. Gosta do clássico que é ainda novo, e do actual que já se
apresta a ser clássico. Ainda bem. Assim ninguém se engana com piruetas
desnecessárias e vamos ali para ver o que é bom. Os últimos espectáculos dos
Artistas Unidos são garantia de que na casa ninguém vende gato por lebre,
quando gatos há por aí tantos, anunciados como pitéus de uma iguaria vanguardista
que disso só tem o nome.
Posto isto, e prolongando a lógica do
que atrás ficou dito, acrescente-se que o trabalho dos actores é globalmente
muito bom. Os Artistas Unidos fazem escola, a começar desde logo pela escola de
bem dizer. Tudo se ouve e bem, o que não será de somenos quando por aí existe
tanta excelência que mal se ouve, que entaramela as sílabas e come as vogais. É
norma nalgumas plateias ouvirem-se os espectadores segredarem entre si: o que é
que ele/ela disse? Claro que pode ser a estética do “indizível”, porque há
justificações para tudo, mas acredito que uma boa dicção ajuda muito, sobretudo
se há talento por detrás. Noutras ocasiões, junta-se a falta de talento à
deficiente dicção e dormir será mesmo o melhor remédio para ajudar a passar a
soirée. No caso dos Artistas Unidos os elencos são preparados com cuidado
extremo, e apesar de jovens portam-se muito bem. No caso de “A Estalajadeira”,
Américo Silva, António Simão, Catarina Wallenstein, Elmano Sancho, Rúben Gomes,
Maria João Falcão, Maria João Pinho, João Delgado e Tiago Nogueira não só estão
à altura como nos dão uma lição de representar modernamente. Representam com a
voz, mas também com todo o corpo. Vê-los evoluir no palco é algo de
reconfortante. Catarina Wallenstein e Elmano Sancho são excepcionais.
Dito o que me parecia importante sobre
o espectáculo, resta-me abordar um tema que julgo muito curioso e que se prende
com a forma como se adaptam clássicos à actualidade. Há quem diga que os
clássicos estão velhos e caducos e que ninguém tem paciência para eles.
Portanto, Bach ou Mozart só se aproveitam tocados em punk, Vitor Hugo e Dickens
o melhor mesmo é reescrevê-los sob a forma de manifestos vanguardistas, ou
então em versão light, e Ibsen ou Tchekov não se vêem se não disserem
precisamente o contrário do que diziam, ou vice-versa. O que vale é que há
tantos génios a pulular por aí que qualquer deles agarra num clássico e o
transforma num ápice numa brilhante peça de desconstrução contemporânea.
Goldoni escreveu “A Estalajadeira” em
meados do século XVIII e preparou uma introdução sobre o significado da peça.
Texto magnífico, que não precisa de actualização para se perceber e que,
através dele, se entender igualmente a mentalidade da época. A sua comédia
amável mas corrosiva destinava-se a criticar alguns usos e abusos do tempo,
desde os aristocratas falidos que tentam comprar o amor de belas estalajadeiras
através do dinheiro ou das honrarias, até às estalajadeiras que descobrem
certas fraquezas dos homens e os lisonjeiam e manipulam até os terem a seus pés
estendidos (também pode ser ao contrário: elas estenderem-se desmaiadas aos pés
dos homens que desejam conquistar, para alcançarem o fim pretendido).
Goldoni cria uma personagem soberba,
Mirandolina, cobiçada por condes, barões, marqueses, cavaleiros e criados, que
ela vai pondo e dispondo à distância. Um deles, porém, Ripafratta, acha que
mulheres só à distância, não querendo nada com esse sexo dito fraco, que aqui faz das
fraquezas forças e mostra que, afinal, quem desdenha quer comprar. Esta a
lógica da peça que, no entender de Goldoni, é um severo aviso às mulheres. Com
alguma ironia discreta escreve: “Não sabia o que havia de fazer ao terceiro
acto, mas, vindo-me à mente que costumam estas aduladoras mulheres, quando os
vêem caídos nos seus laços, tratar asperamente os amantes, quis dar um exemplo
desta bárbara crueldade, deste injurioso desprezo com que se riem dos
desgraçados que venceram, para mostrar o horror da escravidão que esses
infelizes procuram e tornar odioso o carácter das encantadoras sereias. (…)
Basta que alguém me fique grato pela lição que lhe ofereço. As mulheres que são
honradas rejubilarão também por se desmascararem estas simuladoras que desonram
o seu sexo, e essas mulheres aduladoras corarão ao encontrarem-me e não me
importa que me digam: maldito sejas tu!”
Percebe-se, portanto, que ao escrever “A Estalajadeira”
Goldoni, entre outras, pretendia criticar a personalidade da estalajadeira,
essa “aduladora sereia”, de “práticas bárbaras”. Estávamos no século XVIII a
crítica seria pertinente nesse contexto. Hoje, a personagem da estalajadeira
adquire um outro significado, que a encenação de Jorge Silva Melo e a
interpretação de Catarina Wallenstein acentuam subtilmente: hoje essa mulher é
vista como uma personalidade forte que sabe o que quer, que não se deixa levar
pelas lisonjas, que escolhe com quem casa e que se atreve a demonstrar pelo
absurdo a falácia do extravagante Ripafratta. A peça adquire um outro
significado não por terem desvirtuado o seu teor, mas simplesmente porque os
tempos mudaram e o que poderia ser criticável há três seculos é hoje elogiável.
Fazer sobressair essas nuances é dever de uma encenação inteligente e atenta
aos ares dos tempos.
Pelo que julgo não ser necessário atraiçoar os clássicos para
os tornar actuais. Basta apenas ser-se inteligente e retirar deles o que de
actual todos conservam.
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