FUGA
Jeff Nichols realizou até hoje três
longas metragens e pode dizer-se que cada uma delas foi um tiro no
porta-aviões, de tão certeiras, o que não deixa de ser surpreendente para um
autor ainda jovem (nasceu a 7 de Dezembro de 1978, em Little Rock, Arkansas,
nos EUA). Na verdade, “Histórias de Caçadeiras” (2007), “Procurem Abrigo” (2011)
e agora este “Fuga” (no original “Mud”), de 2012, mostram-nos, desde início, um
autor na plena posse das suas faculdades e senhor de um universo muito pessoal,
que passa de filme para filme com uma coerência e uma qualidade plástica e
narrativa evidente. Arkansas, Ohio, de novo Arkansas, estes foram os cenários naturais
escolhidos por Jeff Nichols para os seus três filmes. Todos eles longe das
grandes metrópoles, próximos do seu Arkansas natal, este último tendo o rio
Mississippi como referência maior e Mark Twain como inspiração óbvia.
Esta é a história de dois adolescentes
amigos, que vivem em casas lacustres nas margens do Mississippi e que resolvem
viajar pelo rio até uma ilha perdida, onde descobrem um barco pousado no cimo
de uma árvore. Estranha descoberta que logo é superada pelo facto de o barco
estar habitado: alguém ali vive, esse alguém é Mud, uma personagem misteriosa,
daquelas de quem se ignora o passado e pouco se sabe do presente. Mas
percebe-se que anda fugido, que tenta recuperar o barco para nele se escapar, e
que para tanto precisa da ajuda de Ellis e Neckbone, os dois jovens idealistas,
a meio caminho entre a meninice e a idade adulta, presos por imagens de amor
perdido (os pais que se separam, a namorada que se julga ser e não é, o grande
amor que se persegue, por quem se mata e, todavia, não irá concretizar o happy
end idealizado) e por aspirações a uma pureza de intenções e de emoções que não
se afigura tão fácil de alcançar como os seus sonhos o prediziam.
Um hesita, o outro confia, vê em Mud o
grande herói das aventuras não vividas, mas ambos acabam por ajudar o acossado
a perseguir o seu desejo de amor e de liberdade.
História de amizade e cumplicidade,
aprendizagem da vida, das ilusões às decepções, da ternura à violência, “Mud” é
um retrato de uma ternura modelar de dois jovens e um foragido aprisionados pela
carcaça de um barco voador que um dia poderá sulcar as águas do rio.
Metáfora das contingências da vida? Um
barco preso nos ramos de uma árvore é apenas imagem idealizada de um desejo, é
preciso pô-lo a navegar nas habituais águas do rio, para o que se necessita do
pragmatismo das ferramentas necessárias. Sem o sonho não se foge da dura
realidade, é bem verdade, mas sem a adaptação às necessidades da existência não
se sobrevive. Filme iniciático, portanto, escrito com uma tocante delicadeza,
um pudor indesmentível, que nem as explosões de violência conseguem toldar.
Violência que é física, violência que é também psicológica, em ambos os casos
brutais, como diria Jeff Nichols algures “um conto de Mark Twain adaptado por
Sam Peckinpah”.
Num universo em que se acredita na
beleza da paisagem circundante e na harmonia dos homens, Ellis e Neckbone vão
descobrir as asperezas que se escondem por detrás do retrato da falsa
felicidade no lar, na sociedade, nas relações humanas, nas cobras venenosas que
circulam nos charcos. O mundo de Jeff Nichols está povoado de irmãos desavindos,
de neuróticos que se sentem ameaçados pelo fim do mundo, e por adolescentes em
confronto com terríveis realidades que vão descobrindo subitamente. Há neste
universo rural uma visceral verdade que torna cada um dos seus filmes uma
espécie de docudrama, todo ele ficcionado, mas de uma tal plausibilidade que arrebata.
Os seus protagonistas são personagens psicologicamente torturadas, envoltas num
clima de uma intensidade traumatizante. Essa violência entranhada na paisagem
não está, porém, isenta de um intenso lirismo que redime e transfigura. Não
temos dúvidas ao afirmar que Jeff Nichols é uma das grandes certezas do actual
cinema norte-americano, na esteira de um cineasta maior como Terrence Malick.
Em “Mud”, há ainda que sublinhar o extraordinário
trabalhos dos dois actores jovens, Tye Sheridan (Ellis), e
particularmente Jacob Lofland (Neckbone), que tudo indica vir a tornar-se uma
nova coqueluche, ao lado de um notável Matthew McConaughey, na figura de Mud, bem
acompanhados por Reese Witherspoon (Juniper), Sam Shepard (Tom), Ray McKinnon
(Senior), Sarah Paulson (Mary Lee), Michael Shannon (Galen) e do velho Joe Don
Baker, a recordar as suas antigas criações de gangster desapiedado.
FUGA
Título original: Mud
Título original: Mud
Realização: Jeff Nichols
(EUA, 2012); Argumento: Jeff Nichols; Produção: Glen Basner, Lisa Maria
Falcone, Michael Flynn, Dan Glass, Sarah Green, Tom Heller, Morgan Pollitt,
Aaron Ryder, Gareth Smith; Música: David Wingo; Fotografia (cor): Adam Stone;
Montagem: Julie Monroe; Casting: Francine Maisler; Design bdeprodução: Richard
A. Wright; Direcção artística: Elliott Glick; Decoração: Fontaine Beauchamp
Hebb; Guarda-roupa: Kari Perkins; Maquilhagem: Carla Brenholtz, Matthew W.
Mungle, Kelly Nelson, Clinton Wayne; Direcção de produção: Michael Flynn, Sarah
Green, Nancy Kirhoffer, Christopher H. Warner; Assistentes de realização: Cas
Donovan, Hope Garrison, Phil Hardage; Departamento de arte: Lizzy Faulkner
Chandler, Daniel Coe, Mark Moore; Som: Will Files; Efeitos especiais: Everett
Byrom III; Efeitos visuais: Method Studios; Companhias de produção: Brace Cove
Productions, FilmNation Entertainment; Intérpretes:
Matthew McConaughey (Mud), Reese Witherspoon (Juniper), Tye Sheridan (Ellis), Jacob
Lofland (Neckbone), Sam Shepard (Tom), Ray McKinnon (Senior), Sarah Paulson (Mary
Lee), Michael Shannon (Galen), Joe Don Baker (King), Paul Sparks (Carver), Bonnie
Sturdivant (May Pearl), Stuart Greer (Miller), John Ward Jr., Kristy Barrington,
Johnny Cheek, Kenneth Hill, Michael Abbott Jr., Earnest McCoy, Allie Wade, Douglas
Ligon, Matt Newcomb, Mary Alice Jones, Tate Smalley, Jimmy Dinwiddie, Ryan
Jacks, etc. Duração: 130 minutos; Classificação
etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: ZON Audiovisuais; Data de estreia
em Portugal: 24 de Outubro de 2013.
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