sexta-feira, novembro 29, 2013

TEATRO: EM DIRECÇÃO AOS CÉUS


EM DIRECÇÃO AOS CÉUS
“Em Direcção aos Céus”, escrita por Ödön von Horváth (1901–1938), é, no entender do autor, “uma comédia sem truques de magia: dado o momento que vivemos, creio que este tipo de teatro pode ser bastante útil, uma vez que nos permite abordar temas de que não nos seria possível falar de outra forma”. Datada de 1934, a peça ressente-se já do ambiente vivido na Alemanha (e na Áustria, onde seria estreada). Edmund Josef von Horváth nascera em Sušak, Rijeka, no então Império Austro-húngaro (hoje Croácia) e viria a falecer novo, com 37 anos, em Paris. Para assinar os seus trabalhos teatrais e literários assumiu o seu nome húngaro, Ödön von Horváth, dado que habitou Budapeste durante alguns anos da sua juventude. Com um pai diplomata, viajou muito, passando por Belgrado (1902-1908), Budapeste (1908–1913), Munique (1913-1916), Bratislava (1916-1918), Viena (1919) e de novo Munique, onde começou os estudos literários na Universidade. Começou a escrever cedo, raros romances e um número avultado de peças de teatro, que os seus estudiosos dividem em duas fases: uma até 1933, altura em que foge da Alemanha em crescente nazificação, outra a partir dai, com obras escritas quer em Viena de Áustria, quer em Paris. Inicialmente, dir-se-ia um autor mais directamente politizado e crítico, depois seria lido como um dramaturgo metafórico e algo metafísico. Terá sido a forma por si encontrada para “abordar temas de que não nos seria possível falar de outra forma”. Mas permanece popular e crítico, efabulador e satírico.
Da primeira fase são as obras mais conhecidas do público português: "Casimiro e Carolina", encenada por Luís Miguel Cintra, Cristina Reis e Jorge Silva Melo, na Cornucópia, em 1977, "A Noite Italiana", dirigida por Mário Barradas, em Évora, em 1995, ou "Histórias do Bosque de Viena", prémio Kleist, da República de Weimar, em 1931, encenada pelo colectivo Truta.
“Em Direcção aos Céus” fala de teatro, de uma jovem cantora que permanece várias semanas à porta de um teatro, à espera de uma audição, quando a mãe morre e vai para o Céu, e o pai morre e vai para o Inferno. O palco divide-se em três zonas, no centro o teatro (exterior), na direita a entrada do Céu, na esquerda a descida ao Inferno. De um lado, São Pedro, do outro, o Diabo, ambos transaccionando almas. Para ser uma grande diva, Luísa Steinthaler aceita vender a alma ao director da companhia, que por sua vez a revende ao Diabo, para ter uma vida de sucesso. O resto decorre daqui, é divertido e instrutivo, tendo as canções da época e as áreas das óperas cantadas por Luísa como banda sonora.
A escolha da peça para o reportório do Teatro Municipal Joaquim Benite, de Almada, parece-me feliz, por ser uma obra simultaneamente popular e exigente, e conta com uma encenação segura, sóbria e inventiva de Rodrigo Francisco. A cenografia de Jean-Guy Lecat é particularmente feliz, e os figurinos de Ana Paula Rocha muito sugestivos. Globalmente, a representação é toda ela muito homogénea, mas há que sublinhar o trabalho de Ana Cris, André Alves, André Gomes, Joana Francampos, Luís Vicente, Marques d'Arede ou Teresa Gafeira.



EM DIRECÇÃO AOS CÉUS

Texto de Ödön von Horváth; Tradução Maria Gabriela Fragoso; Encenação: Rodrigo Francisco; Cenografia Jean-Guy Lecat; Figurinos Ana Paula Rocha; Luz Guilherme Frazão; Voz e elocução Luís Madureira; Som Miguel Laureano; Movimento Catarina Câmara; Intérpretes Ana Cris, André Alves, André Gomes, Carlos Pereira, Catarina Reis, Celestino Silva, Duarte Guimarães, Joana Francampos, João Farraia, Luís Vicente, Manuel Mendonça, Marques D’Arede, Miguel Martins, Paulo Guerreiro, Pedro Walter e Teresa Gafeira e os estagiários Alexandre Silva, Ana Rita Trino e Rute Guerreiro; Sala Principal, de 2 a 30 de Novembro; de quarta a sábado, às 21H30, domingo, às 16H00; Duração: 2H00 com Intervalo; M/12 anos. 

quarta-feira, novembro 06, 2013

POLÍTICA E FOME


UM ANO SEM COMER PARA PAGAR A DÍVIDA
No “Público” de ontem podia ler-se:  - O ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, que na noite desta segunda-feira esteve em Ovar numa sessão de esclarecimento sobre o Orçamento do Estado para 2014, garante que não é através da injecção de dinheiro na economia que o país cresce. "A pura injecção de dinheiro na economia provoca distorção no sistema produtivo. A economia recupera quando há trabalho bem orientado e quando se consegue ser competitivo".
E continuava: - Para Nuno Crato, os sinais "ténues" de crescimento não podem ser ignorados. "Portugal entrou numa espiral responsável", refere. Mas antes, o governante lembrou que, neste momento, os portugueses teriam de "trabalhar mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes só para pagar a dívida". "Estamos no sistema monetário do euro, não temos uma máquina de imprimir dinheiro", avisa o ministro, que faz questão de lembrar os sinais positivos.
Muito bem. Devo dizer que tinha a maior consideração por Nuno Crato, antes dele assumir a pasta de Ministro. Devo acrescentar que compreendo a frase e o significado da metáfora "trabalhar mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes só para pagar a dívida". Mas também acho que se poderiam criar outras comparações, de belo recorte literário, para se chegar ao mesmo efeito dramático: “quantos lucros de grandes empresas seria necessário reduzir para pagar a dívida?” ou, numa outra direcção: “quantos portugueses reformados seria necessário exterminar para se pagar a dívida?”. Estilo “solução final” para endireitar as finanças. Ou então “quantos políticos, empresários, gerentes e equivalentes, corruptos, incompetentes, desnecessários, tapa buracos seria necessário despachar para pagar a dívida?” Reparem que só estou  a falar em “corruptos, incompetentes, desnecessários, tapa buracos”, porque acho que há muito boa gente que se salvava em todos esses cargos e a generalização só agrada a quem pretende desacreditar a democracia, para a substituir por algo da sua maior simpatia.
Voltado à metáfora do Senhor Ministro. Eu até não a levaria a mal. Mas a verdade é que  os portugueses que trabalham (ou querem trabalhar e estão no desemprego!), alguns já estão há mais de um ano sem comer e sem utilizar transportes, outros já só comem metade e viajam muito menos do que deviam e a dívida continua a crescer. O que quer dizer que ou o governo é incompetente, ou então há alguns portugueses, quer trabalhem ou não, que estão a “comer” muito mais do que deviam. Porque, na verdade, a fome de alguns milhares não tem pesado na balança de todos.
Mas já percebi onde nos querem fazer chegar: “um ano sem comer para pagar a dívida”. “Coragem, portugueses!, mais um esforço e os nossos esqueletos chegarão lá!”.