12 ANOS ESCRAVO
Arrisco-me
a escrever que “12 Anos Escravo” é o melhor filme sobre a questão da
escravatura que eu alguma vez vi. E vi muitos, e alguns muito bons. Mas esta
obra de Steve McQueen (autor anterior de filmes magníficos, como “Fome” e “A
Vergonha”) ultrapassa-os a todos. Vamos ver se consigo explicar o porquê desta
minha conclusão, e o que me terá levado a ela.
Antes
de tudo o mais, o argumento é de uma inteligência extrema, adaptando uma obra
autobiográfica, “Twelve Years a Slave”, de Solomon Northup, obra surgida em
1853. A história, muito resumidamente, relata as desventuras de Solomon Northup
(Chiwetel Ejiofor), um negro livre que vive desafogadamente em Nova Iorque,
corre o ano de 1841. Solomon é homem instruído, culto, violoncelista, casado e
pai de dois filhos. Um dia é aliciado para se juntar, durante algumas semanas,
a dois artistas circenses, e parte pensando arrecadar alguns dólares extra com
a tournée. Sem que nada o faça prever, é raptado em Washington e levado
prisoneiro para os Estados do Sul, onde a escravatura era a base da economia
rural, que tinha na apanha do algodão o seu maior tesouro e na mão-de-obra
escrava a razão principal do seu excessivo lucro. Aí vai passando de dono em
dono, até se ver instalado na propriedade de Edwin Epps (Michael Fassbender),
um latifundiário sem escrúpulos, que o trata selvaticamente, tal como a todos
os outros, incluindo a sua negra “protegida”, Patsey (Lupita Nyong'o). O
pesadelo de Solomon Northup estende-se por uns longos doze anos, até que
consegue ser resgatado por amigos do Norte que formalizam com documentos, junto
às autoridades do Sul, a sua condição de homem livre.
Há
desde logo um aspecto que torna este filme diferente da grande maioria de
outros títulos onde a escravatura é abordada. Antes de ser escravo, Solomon
Northup é um homem livre, gozando de todos os direitos e deveres de um cidadão
como qualquer outro que, em 2013, está a ver o filme. Esta identificação é
decisiva para o impacto da obra. Ela mostra o absurdo da escravatura, o
arbitrário de alguém ser livre agora e escravo no momento seguinte, por um
simples acto de pirataria, criminoso num Estado, legalizado num outro. (É
conveniente ter-se em conta que o filme se passa num período anterior à Guerra
da Secessão norte-americana, que se irá prolongar entre 1861 e 1865, opondo
precisamente os Estados do Norte industrializado aos do Sul rural). Depois,
existe um inquietante sentido de normalidade ao longo de todo o filme, a
realidade presente de uma actividade consentida e instituída, onde o Mal impera
sem necessidade de disfarces ou desculpas. Estamos no domínio do terrível
absurdo, mas de um absurdo banalizado, normalizado.
Deve
ainda sublinhar-se uma outra questão que julgo essencial na obra: Solomon
Northup é um herói na forma como consegue sobreviver à sua tragédia pessoal,
mas essa sobrevivência impõe-lhe regras e sujeições que o transformam não num
herói, mas num anti-herói. Ele tem de esconder a sua cultura e a sua condição,
não confessa aos seus “donos” que sabe ler, aceita ver açoitar uma mulher
indefesa, vê morrer companheiros de desdita, atravessa quase sempre calado um
calvário de brutalidade sem nome. Numa situação limite, ele é apenas humano:
quer viver. Sobreviver. A 12 anos de escravatura.
Este
aspecto liga-se ao que me parece o mais importante no filme de Steve McQueen,
que é a forma escolhida pelo realizador para narrar a sua história. Não há
qualquer transigência com o melodramático ou a demagogia emocional. A escrita é
dura e enxuta, sem rodriguinhos, a câmara enquadra de forma justa e directa,
num estilo seco e objectivo. A violência existe e explode mas o olhar é
distante, não por desinteresse mas por respeito. O resultado é mais grave para
o espectador que se confronta ele próprio com as imagens. Por vezes, a montagem
acelera, aqui e ali há um efeito certo e eficaz (o barco que leva os escravos,
trajecto que é visto através das rodas que fazem avançar a embarcação, por
exemplo, ou o travelling vertical que sobe da cave onde se encontram os
prisioneiro, até se descobrir o outro lado de Washington). Mas o essencial de
“12 Anos Escravo” é “mostrar” para o espectador ter a liberdade de perceber por
si próprio, tirar as conclusões sem dirigismos constrangedores.
Produzido
entre outros por Steve McQueen e Brad Pitt, tudo em “12 Years a Slave” parece
perfeito, imaginado e concretizado como não pudesse ser de outra forma. Adam
Stockhausen, David Stein, Alice Baker e Patricia Norris assinam direcção
artística, decoração e guarda-roupa com um requinte e cuidado extremos; a
fotografia de Sean Bobbitt é notável, assim como a brilhante montagem de Joe
Walker e a inspirada partitura musical de Hans Zimmer. Na interpretação, raras
vezes se encontra um elenco com tamanho talento, sobriedade e fulgor. Chiwetel
Ejiofor, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Paul Giamatti,
Lupita Nyong'o, Sarah Paulson ou Brad Pitt são simplesmente brilhantes, fazendo
de “12 Anos Escravo” uma obra-prima que certamente ira brilhar na noite nos
Oscars.
12 ANOS ESCRAVO
Título original: 12 Years a
Slave
Realização: Steve McQueen (EUA, 2013);
Argumento: John Ridley, segundo obra de Solomon Northup ("Twelve Years a
Slave"); Produção: Dede Gardner,
Anthony Katagas, Jeremy Kleiner, Steve McQueen, Arnon Milchan, Brad Pitt, Bill
Pohlad, John Ridley, Tessa Ross; Música: Hans Zimmer; Fotografia (cor): Sean
Bobbitt; Montagem: Joe Walker; Casting: Francine Maisler; Design de produção:
Adam Stockhausen; Direcção artística:
David Stein; Decoração: Alice
Baker; Guarda-roupa: Patricia Norris; Maquilhagem: Ma Kalaadevi Ananda, Nana
Fischer, Adruitha Lee; Direcção de Produção:
Alissa M. Kantrow, Alissa M. Kantrow; Assistentes de realização: Doug
Torres, Mark Carter, Nathan Parker, James Roque, Ann C. Salzer, Sherman Shelton
Jr.; Departamento de arte: Carl Counts, Matthew Gatlin, David Rotondo, Walter
Schneider, Jim Wallis; Som: Ryan Collins, Jesse Ehredt, Kirk Francis, Robert
Jackson, Robert Jackson, Tim Limer, Jordan O'Neill; Efeitos especiais: David
Nash; Efeitos visuais: Elbert Irving IV, Chris LeDoux, Katie McCall, Dottie
Starling; Companhias de produção: Regency Enterprises, River Road
Entertainment, Plan B Entertainment, New Regency Pictures, Film4, Regency
Enterprises; Intérpretes: Chiwetel Ejiofor
(Solomon Northup), Michael Fassbender (Edwin Epps), Benedict Cumberbatch
(William Ford), Paul Dano (John Tibeats), Paul Giamatti (Theophilus Freeman),
Lupita Nyong'o (Patsey), Brad Pitt (Samuel Bass), Alfre Woodard (Harriet Shaw),
Sarah Paulson (Mary Epps), Quvenzhané Wallis (Margaret Northup), Dwight Henry
(Tio Abram), Michael K. Williams (Robert), Garret Dillahunt (Armsby), Scoot
McNairy (Brown), Ruth Negga (Celeste), Adepero Oduye (Eliza), Chris Chalk
(Clemens Ray), Christopher Berry (James Burch), Taran Killam (Hamilton), Dickie
Gravois, Bryan Batt, Ashley Dyke, Kelsey Scott, Cameron Zeigler, Tony Bentley,
Bill Camp, Mister Mackey Jr., Craig Tate, Storm Reid, Tom Proctor, Marc
Macaulay, Vivian Fleming-Alvarez, Douglas M. Griffin, John McConnell, Marcus
Lyle Brown, Richard Holden, Rob Steinberg, Anwan Glover, James C. Victor, Liza
J. Bennett, Nicole Collins, J.D. Evermore, Andy Dylan, Deneen Tyler, Mustafa
Harris, Gregory Bright, Austin Purnell, Thomas Francis Murphy, Andre De'Sean
Shanks, Kelvin Harrison, Scott Michael Jefferson, Alfre Woodard, Isaiah
Jackson, Garret Dillahunt, Topsy Chapman, Devin Maurice Evans, Jay Huguley,
Devyn A. Tyler, Willo Jean-Baptiste, etc. Duração:
134 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/
16 anos; Data de estreia em Portugal: 2 de Janeiro de 2014.
2 comentários:
5 estrelas
“Não há ódios mais implacáveis que os do amor” escreveu Propércio. Essa febre deturpa e corrompe tudo o que há de bom e belo nas mulheres e homens. Tudo o que faz uma mulher ciumenta, por honesta e diligente que seja, tudo comporta algo azedo e desagradável; é presa de uma agitação colérica que indispõe os outros contra ela e produz efeito contrário ao pretendido. Veja-se o caso de um tal Otávio, em Roma. Dormia com Pôncia Postúmia. Apaixonado desde então, instava com ela sem cessar para que se casasse com ele. Não conseguindo convencê-la, possuído pelo seu extremado amor, matou-a. Os sintomas dessa doença (a ciumeira) são do mesmo tipo: cóleras intestinas, surda agitação, conjuras incessantes: “ninguém sabe onde pode chegar ódio de uma mulher” diz Virgílio, é um ódio tanto mais exasperado quanto precisa sempre invocar o benefício da vítima!” revisto por alexnietzsche - in Obra Completas de Michel de Montaigne
“Não há ódios mais implacáveis que os do amor” escreveu Propércio. Essa febre deturpa e corrompe tudo o que há de bom e belo nas mulheres e homens. Tudo o que faz uma mulher ciumenta, por honesta e diligente que seja, tudo comporta algo azedo e desagradável; é presa de uma agitação colérica que indispõe os outros contra ela e produz efeito contrário ao pretendido. Veja-se o caso de um tal Otávio, em Roma. Dormia com Pôncia Postúmia. Apaixonado desde então, instava com ela sem cessar para que se casasse com ele. Não conseguindo convencê-la, possuído pelo seu extremado amor, matou-a. Os sintomas dessa doença (a ciumeira) são do mesmo tipo: cóleras intestinas, surda agitação, conjuras incessantes: “ninguém sabe onde pode chegar ódio de uma mulher” diz Virgílio, é um ódio tanto mais exasperado quanto precisa sempre invocar o benefício da vítima!” revisto por alexnietzsche - in Obra Completas de Michel de Montaigne
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