O GRANDE MESTRE
“O
Grande Mestre”, de Wong Kar-Wai, é um filme plasticamente por vezes
deslumbrante, o que não será surpresa para quem conhece um pouco da obra deste
cineasta. Revelado em Portugal em meados dos anos 90, com um surpreendente
“Chungking Express”, não deixou de nos entusiasmar de então para cá com títulos
como “As Cinzas do Tempo”, “Anjos
Caídos”, “Felizes Juntos”, “Disponível Para Amar”, “2046”, “Eros” (episódio
"A Mão"), “My Blueberry Nights - O Sabor do Amor”, este último de
2007, rodado nos EUA. “Disponível Para Amar”,
“2046” e fabulosa curta que integra “Eros” são os meus preferidos, mas
não há nenhum Wong Kar-Wai de que eu não goste.
“Yi dai
zong shi” (O Grande Mestre) assinala assim o regresso de Wong Kar-Wai ao filme
de fundo, seis anos depois da sua última longa-metragem, e refere ainda o
regresso ao Oriente natal, à China e a Hong Kong, às artes marciais, numa incursão que tem uma
base biográfica (a vida de Ip Man, mestre de artes marciais, professor, entre
muitos outros, de Bruce Lee), através da qual se estabelece igualmente um
retrato da China, entre os anos 30 e o final da sua vida (Ip Man viveu entre 1893 e 1972). Ip Man já
justificara dois filmes de Wilson Yip, “Yip Man” e “Yip Man 2”, em 2008 e 2010,
com Donnie Yen no protagonista, e ainda uma outra abordagem, em 2010, “Yip Man
chinchyun”, de Herman Yau, com Yu-Hang To no papel principal. Desconhecemos
qualquer destas obras, que sabemos bem cotadas pela crítica oriental, mas o
súbito interesse por esta personagem deverá ter as suas razões profundas.
A dar
crédito ao que o filme evoca, este mestre de artes marciais terá tido a sua
importância na tentativa de unificação da China do Sul e do Norte, que, inclusive
do ponto de vista das artes marciais, apresentava forte rivalidade e escolas
diferentes e que Ip Man terá ajudado a reunir. Possuía uma filosofia da arte e
da prática do kung fu muito própria, que resumia em duas palavras: “horizontal
e vertical” e que definiam essencialmente estados de combate: na vertical
ataca-se e defende-se, na horizontal está-se quase sempre à mercê do
adversário. Para exemplificar esta e outras questões, o filme abre logo com um
prodigioso combate, todo ele filmado à chuva, e que desde logo nos oferece o
melhor que esta obra nos dá: a qualidade plástica da fotografia, os
enquadramentos estudados, as cores utilizadas, o ritmo imposto, a coreografia
do espectáculo, uma certa poética do choque e do entrelaçar dos corpos.
Depois
Wong Kar-Wai vai mesclando a história pessoal de Ip Man com a história da China
no século XX, passando pela guerra entre a China e o Japão, a ascensão ao poder
de Mao Tse Tung e dos comunistas, o exílio em Hong Kong. Wong Kar-Wai não
pretende, todavia, um filme “histórico”, mas antes oferecer uma visão da
História, que perpassa em pano de fundo, filtrada através da vida de um homem.
Para conseguir estes propósitos, o cineasta organiza o filme como um puzzle de
flashbacks, interligando tempos e espaços diferentes. O resultado neste aspecto
nem sempre funciona, tornando algo confuso e cansativo para o espectador. De
resto, parecem surgir outros tipos de equívocos. Sendo aparentemente um filme
de kung fu, nunca o é, mas também nunca se afirma como um legítimo herdeiro de
outras obras deste cineasta. Quem vai à procura do intimista e sensual autor de
“Disponível Para Amar”, de “2046”, do episódio de “Eros” ou de “My Blueberry
Nights - O Sabor do Amor”, só nalguns momentos, sobretudo aqueles onde surge
Gong Er (Zhang Ziyi), o vai encontrar; quem vai no engodo de um filme de kung
fu arrisca-se a sair frustrado, muito embora surjam sequências admiráveis desta
prática.
Tony
Leung, Zhang Ziyi e Chang Chen, actores que vêm de Hong Kong, da China
Continental e de Taiwan, são os protagonistas desta obra, e confirmam as já
celebradas aptidões. A qualidade técnica desta mega produção chinesa que
procura competir com o Ocidente é inquestionável. Mas falta muito do Wong
Kar-Wai que conhecemos para nos convencer em definitivo. Um projecto que levou
dez anos a concretizar, seis dos quais a rodar e pós-produzir, perdeu certamente
frescura e ganhou um certo tom majestático que não se coaduna bem com a
trajectória anterior deste cineasta. Não deslustra, mas desilude.
O GRANDE MESTRE
Título original: Yi dai zong ou Yi dai zong shi ou The
Grandmaster
Realização: Wong Kar Wai (Hong Kong,
China,2013); Argumento: Wong Kar Wai, Jingzhi Zou, Haofeng Xu; Produção: Kar Wai Wong, Jacky Pang Yee Wah, Ye-cheng
Chan, Hong Tat Cheung, Megan Ellison, See-Yuen Ng, Yue Ren, Dai Song, Michael
J. Werner, Wai-Chung Chan; Música: Nathaniel Méchaly, Shigeru Umebayashi; Fotografia (cor): Philippe Le Sourd; Montagem: William Chang; Design de produção: William Chang, Wai Ming Alfred Yau; Direcção
artística: Tony Au, William Chang, Alfred
Yau; Guarda-roupa: William Chang;
Maquilhagem: Lee-na Kwan, Qi Wang, Kewei
Xiao; Direcção de Produção: Wendy Chan, Kai Sui Hung; Assistentes de
realização: Janice Ho, Ronald Zee; Som:
Robert Mackenzie; Efeitos visuais: Lerouge Alexandre, Serge Martin, Isabelle
Perin-Leduc; Companhias de produção: Block 2 Pictures, Jet Tone Films,
Sil-Metropole Organisation, Bona International Film Group; Intérpretes: Tony Leung Chiu Wai (Ip Man), Tony Leung Chiu-Wai as
Ip Man (Ye Wen), Zhang Ziyi (Gong Er), Song Hye-kyo (Cheung Wing-sing), Chang
Chen ("The Razor" Yixiantian), Zhao Benshan (Ding Lianshan), Wang
Qingxiang (Gong Yutian), Zhang Jin (Ma San), Yuen Woo-ping (Chan Wah-shun),
Xiaoshenyang (Sanjiangshui), Cung Le (Tiexieqi), Shang Tielong (Jiang), Lo
Hoi-pang, Chin Shih-chieh, Wang Jue, Lau Ga-yung, Lau Shun, Zhou Xiaofei, Bruce
Leung, Julian Cheung, Lo Mang, Berg Ng, etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes;
Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 12 de Dezembro
de 2013.
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