quarta-feira, janeiro 01, 2014

CINEMA: O GRANDE MESTRE


O GRANDE MESTRE

“O Grande Mestre”, de Wong Kar-Wai, é um filme plasticamente por vezes deslumbrante, o que não será surpresa para quem conhece um pouco da obra deste cineasta. Revelado em Portugal em meados dos anos 90, com um surpreendente “Chungking Express”, não deixou de nos entusiasmar de então para cá com títulos como “As Cinzas do Tempo”,  “Anjos Caídos”, “Felizes Juntos”, “Disponível Para Amar”, “2046”, “Eros” (episódio "A Mão"), “My Blueberry Nights - O Sabor do Amor”, este último de 2007, rodado nos EUA. “Disponível Para Amar”,  “2046” e fabulosa curta que integra “Eros” são os meus preferidos, mas não há nenhum Wong Kar-Wai de que eu não goste.
“Yi dai zong shi” (O Grande Mestre) assinala assim o regresso de Wong Kar-Wai ao filme de fundo, seis anos depois da sua última longa-metragem, e refere ainda o regresso ao Oriente natal, à China e a Hong Kong,  às artes marciais, numa incursão que tem uma base biográfica (a vida de Ip Man, mestre de artes marciais, professor, entre muitos outros, de Bruce Lee), através da qual se estabelece igualmente um retrato da China, entre os anos 30 e o final da sua vida (Ip Man  viveu entre 1893 e 1972). Ip Man já justificara dois filmes de Wilson Yip, “Yip Man” e “Yip Man 2”, em 2008 e 2010, com Donnie Yen no protagonista, e ainda uma outra abordagem, em 2010, “Yip Man chinchyun”, de Herman Yau, com Yu-Hang To no papel principal. Desconhecemos qualquer destas obras, que sabemos bem cotadas pela crítica oriental, mas o súbito interesse por esta personagem deverá ter as suas razões profundas.

A dar crédito ao que o filme evoca, este mestre de artes marciais terá tido a sua importância na tentativa de unificação da China do Sul e do Norte, que, inclusive do ponto de vista das artes marciais, apresentava forte rivalidade e escolas diferentes e que Ip Man terá ajudado a reunir. Possuía uma filosofia da arte e da prática do kung fu muito própria, que resumia em duas palavras: “horizontal e vertical” e que definiam essencialmente estados de combate: na vertical ataca-se e defende-se, na horizontal está-se quase sempre à mercê do adversário. Para exemplificar esta e outras questões, o filme abre logo com um prodigioso combate, todo ele filmado à chuva, e que desde logo nos oferece o melhor que esta obra nos dá: a qualidade plástica da fotografia, os enquadramentos estudados, as cores utilizadas, o ritmo imposto, a coreografia do espectáculo, uma certa poética do choque e do entrelaçar dos corpos.
Depois Wong Kar-Wai vai mesclando a história pessoal de Ip Man com a história da China no século XX, passando pela guerra entre a China e o Japão, a ascensão ao poder de Mao Tse Tung e dos comunistas, o exílio em Hong Kong. Wong Kar-Wai não pretende, todavia, um filme “histórico”, mas antes oferecer uma visão da História, que perpassa em pano de fundo, filtrada através da vida de um homem. Para conseguir estes propósitos, o cineasta organiza o filme como um puzzle de flashbacks, interligando tempos e espaços diferentes. O resultado neste aspecto nem sempre funciona, tornando algo confuso e cansativo para o espectador. De resto, parecem surgir outros tipos de equívocos. Sendo aparentemente um filme de kung fu, nunca o é, mas também nunca se afirma como um legítimo herdeiro de outras obras deste cineasta. Quem vai à procura do intimista e sensual autor de “Disponível Para Amar”, de “2046”, do episódio de “Eros” ou de “My Blueberry Nights - O Sabor do Amor”, só nalguns momentos, sobretudo aqueles onde surge Gong Er (Zhang Ziyi), o vai encontrar; quem vai no engodo de um filme de kung fu arrisca-se a sair frustrado, muito embora surjam sequências admiráveis desta prática.

Tony Leung, Zhang Ziyi e Chang Chen, actores que vêm de Hong Kong, da China Continental e de Taiwan, são os protagonistas desta obra, e confirmam as já celebradas aptidões. A qualidade técnica desta mega produção chinesa que procura competir com o Ocidente é inquestionável. Mas falta muito do Wong Kar-Wai que conhecemos para nos convencer em definitivo. Um projecto que levou dez anos a concretizar, seis dos quais a rodar e pós-produzir, perdeu certamente frescura e ganhou um certo tom majestático que não se coaduna bem com a trajectória anterior deste cineasta. Não deslustra, mas desilude.

O GRANDE MESTRE
Título original: Yi dai zong ou Yi dai zong shi ou The Grandmaster
Realização: Wong Kar Wai (Hong Kong, China,2013); Argumento: Wong Kar Wai, Jingzhi Zou, Haofeng Xu; Produção:  Kar Wai Wong, Jacky Pang Yee Wah, Ye-cheng Chan, Hong Tat Cheung, Megan Ellison, See-Yuen Ng, Yue Ren, Dai Song, Michael J. Werner, Wai-Chung Chan; Música: Nathaniel Méchaly, Shigeru Umebayashi;  Fotografia (cor):  Philippe Le Sourd; Montagem:  William Chang; Design de produção:  William Chang, Wai Ming Alfred Yau; Direcção artística:  Tony Au, William Chang, Alfred Yau; Guarda-roupa:  William Chang; Maquilhagem:  Lee-na Kwan, Qi Wang, Kewei Xiao;  Direcção de Produção:  Wendy Chan, Kai Sui Hung; Assistentes de realização:  Janice Ho, Ronald Zee; Som: Robert Mackenzie; Efeitos visuais: Lerouge Alexandre, Serge Martin, Isabelle Perin-Leduc; Companhias de produção: Block 2 Pictures, Jet Tone Films, Sil-Metropole Organisation, Bona International Film Group; Intérpretes: Tony Leung Chiu Wai (Ip Man), Tony Leung Chiu-Wai as Ip Man (Ye Wen), Zhang Ziyi (Gong Er), Song Hye-kyo (Cheung Wing-sing), Chang Chen ("The Razor" Yixiantian), Zhao Benshan (Ding Lianshan), Wang Qingxiang (Gong Yutian), Zhang Jin (Ma San), Yuen Woo-ping (Chan Wah-shun), Xiaoshenyang (Sanjiangshui), Cung Le (Tiexieqi), Shang Tielong (Jiang), Lo Hoi-pang, Chin Shih-chieh, Wang Jue, Lau Ga-yung, Lau Shun, Zhou Xiaofei, Bruce Leung, Julian Cheung, Lo Mang, Berg Ng, etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 12 de Dezembro de 2013.


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