UMA
HISTÓRIA DE AMOR
“Her” é um triunfo em toda a
linha, a começar desde logo pelo clima que cria. Ao pretender-se um história de
amor num futuro próximo, a ambiência que o filme suscita é particularmente
inquietante, porque tão depressa nos parece estarmos nos nossos dias, como num
“futuro próximo”. Na verdade, estamos nos “nossos dias”. Os cenários terão sido
aqui e ali retocados, mas no essencial, nos exteriores e interiores, o que
vemos é Los Angeles e Xangai, bem enquadrados para nos oferecer alguma
estranheza, mas nada mais do que isso. O vestuário e os adereços parecem de
hoje, talvez um pouco “casual” demais. Elegantes mas desportivos. Há os
telemóveis, que são mais de imagem do que de som, mas ver as pessoas nas ruas
passarem agarradas a eles já não é surpresa. Só as funções diferem. Mas a
inquietação que transmite ao espectador, ao afirmar-se num futuro próximo e ao
nos surgir tão banal, é fortíssima. Tanto mais que o tema é inquietante.
Theodore Twombly (Joaquin
Phoenix), um escritor de cartas sentimentais, profissão de futuro (apesar de já
ter sido do passado, ainda que de outra forma), acaba de se separar da mulher,
vive sozinho, é um indivíduo solitário, que tem amigos no local de trabalho e
na vizinhança, mas não é só ele que nos oferece uma imagem de solidão. A
solidão é uma tonalidade colectiva, mas os rostos não são de infelicidade. Há
sorrisos, uma certa nostalgia nalguns olhares, anda-se só pelas ruas, mas a
qualidade de vida aparenta ser boa. Não se vê miséria, não se fala de
dificuldades, as ruas estão esmeradamente limpas, estamos longe das imagens
catastróficas de certas obras que nos imaginam futuros negros, tipo “Blade
Runner”.
O computador é o local de
trabalho de Theodore. Um dia, ouve falar num novo sistema operacional para seu
computador, o SO1, através do qual pode falar com operadoras virtuais que podem
satisfazer os seus desejos. Profissionais, de início. Emocionais logo a
seguir. Nada de muito novo para quem já
frequentou chats, blogues, facebooks e quejandos. Com a diferença de que a
Samantha (Scarlett Johansson) que responde do outro lado não é real, paira no
éter. Nos chats pode não se saber quem está do outro lado, mas em princípio é
alguém de carne e osso. Aqui essa materialidade não existe à partida.
Mas, apesar disso, Theodore
não resiste ao apelo e apaixona-se pela voz e por tudo quanto ela traz consigo.
Ela está sempre disponível, desliga-se quando não é necessária, ajuda-o no que
ele necessita, e geme languidamente de prazer nas ocasiões certas. A relação
amorosa é um facto, pelo menos do lado de Theodore, mas quem sabe o que sente
Samantha?
No mesmo andar de Theodore
vive um casal. Amy (Amy Adams) é abandonada pelo marido, e encosta a cabeça no
ombro do vizinho, para se sentir reconfortada. Poderia ser uma nova história de
amor, esta mais normal, mas o que será a normalidade num “futuro próximo”? O
que “Her” nos deixa é a sensação de que tudo será diferente e, apesar de uma
certa nostalgia que paira no ar, nada nos diz que o futuro será pior do que o
presente, o que é um aspecto muito
inquietante do filme de Spike Jonze. Com um tal argumento, o que se aguarda é
um final calamitoso, onde o homem contemporâneo se poderia ver dominado pela
tecnologia, onde a solidão tudo corrói até ao suicídio, onde o desespero
emocional fosse devastador. Nada disso se sente no filme. Há incomodidade, há
alguma ausência de comunicação, há emoções perdidas? Claro, mas sempre houve e
“Her” diz-nos que sempre haverá. Não é um filme catástrofe, mesmo que a
catástrofe seja sentimental. Muito pelo contrário. No final de “Tempos Modernos”,
de Chaplin (1935), Charlot e a companheira partem com alguma esperança, rumo ao
desconhecido, vemo-los de costas estrada fora. Aqui, Theodore e Adam, do alto
do seu terraço, olham o horizonte. Na companhia um do outro. Vemo-los
igualmente de costas e é um “end” que não sabemos se é “happy” ou não, mas é um
grande final.
Spike Jonze é um dos mais
interessantes cineastas da moderna Hollywood e um dos menos convencionais. Tem
uma extensa filmografia, com dezenas e dezenas de curtas metragens e de
documentários, muitos experimentais, e algumas longas que mostram bem o seu
desalinhamento da produção corrente: “Queres Ser John Malkovich?” (1999), “Inadaptado”
(2002), “O Sítio das Coisas Selvagens” (2009) até chegar a esta “Uma História
de Amor” (2013) que é um exercício brilhante de um cineasta que manuseia como
poucos as subtilezas das emoções e passeia a câmara com a delicadeza e o pudor
e um predestinado.
Depois o argumento, do mesmo Spike
Jonze, é de uma inteligência e originalidade invulgares, a fotografia de Hoyte
Van Hoytema ajusta-se brilhantemente à doçura meiga das tonalidades, a música
de Owen Pallett, e dos Arcade Fire, é de uma envolvência absoluta, a montagem
de Jeff Buchanan e Eric Zumbrunnen muito boa e a concepção plástica de K.K.
Barrett admirável de justeza. Começam a faltar os adjectivos para a
interpretação absolutamente extraordinária, de rigor e contenção, de Joaquin
Phoenix, muito bem acompanhado por Amy Adams (que belíssima actriz!), Rooney
Mara, Olivia Wilde, ou de Scarlett Johansson, a voz de Samantha.
Indispensável, portanto.
UMA
HISTÓRIA DE AMOR
Título
original: Her
Realização: Spike Jonze
(EUA, 2013); Argumento: Spike Jonze; Produção: Ray Angelic, Chelsea Barnard,
Megan Ellison, Natalie Farrey, Spike Jonze, Vincent Landay, Daniel Lupi;
Música: Owen Pallett, Arcade Fire;
Fotografia (cor): Hoyte Van Hoytema; Montagem: Jeff Buchanan, Eric Zumbrunnen;
Casting: Cassandra Kulukundis, Ellen Lewis; Design de produção: K.K. Barrett;
Direcção artística: Austin Gorg; Decoração: Gene Serdena; Guarda-roupa: Casey
Storm; Maquilhagem: Steve Artmont, Kristin Berge, Cydney Cornell, Bo Xian, Nani
Velez, Joy Zapata; Direcção de Produção: Randall James Bol, Daniel Lupi, James
Masi, Michael McDermott, Hameed Shaukat, Will Weiske; Assistentes de realização:
Robert E. Kay, Sylvia Liu, David K. Riebel, Rod Smith, Thomas Patrick Smith,
Cecilia Sweatman; Departamento de arte: Allen Coulter, Venessa De Anda, Jane
Fitts, Chris Forster, Sonny Gerasimowicz; Som: Ren Klyce; Efeitos especiais:
Elia P. Popov; Efeitos visuais: Janelle Croshaw, Doron Kipper, Brice Liesveld,
Fredrik Nord, Andrew Wood; Companhias de produção: Annapurna Pictures; Intérpretes: Joaquin Phoenix (Theodore
Twombly), Amy Adams (Amy), Rooney Mara (Catherine), Olivia Wilde (mulher em
encontro), Scarlett Johansson (voz de Samantha), Chris Pratt (Paul), Matt
Letscher (Charles), Sam Jaeger (Dr. Johnson), Luka Jones (Mark Lewman), Kristen
Wiig (voz sexy), Bill Hader (amigo em sala de chat), Spike Jonze (voz de
criança), Portia Doubleday, Soko, Brian Cox, Lynn Adrianna, Lisa Renee Pitts,
Gabe Gomez, Chris Pratt, Artt Butler, May Lindstrom, Rooney Mara, Matt
Letscher, David Azar, Dr. Guy Lewis, Melanie Seacat, Pramod Kumar, Evelyn
Edwards, Steve Zissis, Dane White, Nicole Grother, James Ozasky, Samantha
Sarakanti, Luka Jones, Gracie Prewitt, Claudia Choi, Laura Kai Chen, Portia
Doubleday, Wendy Leon, Charles Riley, Robert Benard, etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Audiovisuais;
Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 13 de Fevereiro
de 2014.
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