quarta-feira, fevereiro 26, 2014

CINEMA: NEBRASKA

NEBRASKA

Belíssimo filme este de Alexander Payne, que regressa ao registo da "road movie" (o que já acontece anteriormente com “Sideways”, 2004) e retoma o cenário da sua terra natal, ele que nasceu em Omaha, no Nebraska, e que aí já rodou alguns filmes, como “As Confissões de Schmidt” ou o anterior “Caminhos Mal Traçados” (Citizen Ruth, 1996). Paine é um cineasta muito particular, procurando protagonistas pouco habituais no cinema dominante norte-americano, misturando humor e um retrato de certa forma angustiante da sociedade actual, o que volta a acontecer em “Nebraska”, mantendo como polo central da acção uma família (tal como noutro sentido o fizera em “Os Descendentes”, seu título anterior que justificou grande sucesso de público e crítica).

Desta feita, tudo roda à volta de Woody Grant (Bruce Dern), um velho casmurro e dado à bebida, que recebe um dia um folheto publicitário a prometer-lhe um milhão de dólares. Resolve então ir cobrar o prémio e viajar da sua cidade, Billings, em Montana, para Lincoln, no Nebraska, caminhando pela berma da estrada. Claro que a família é avisada, ele é forçado a voltar a casa, mas teima em receber o prémio a que tem direito, sem se aperceber das letras mínimas do folheto. Um dos seus filhos, David Grant (Will Forte) resolve então meter-se no carro com o obstinado Woody e levá-lo ao Nebraska, aproveitando para passar pela terra natal do pai, Hawthorne, onde ele é reconhecido e muito aclamado por familiares, velhos amigos e conhecidos depois de lhes ter dito que vai receber um milhão de dólares. Obviamente que alguns deles sonham já colher favores da fortuna do velho.


Velhos rezinguentos, teimosos e dados à bebida, não são casos raros no cinema. Quem não se lembra, por exemplo, do fabuloso “Uma História Simples” (The Straight Story, 1999), de David Lynch, com um inspiradíssimo Richard Farnsworth? O que faz o grande interesse desta nova obra de Alexander Payne é, por um lado, a justeza do tom, mesclando sabiamente dramatismo e humor, sem cair na pieguice nem na caricatura, antes optando por um olhar terno e compreensivo. O que se fica a dever à sensibilidade e pudor do trabalho do realizador, mas igualmente ao do argumentista, Bob Nelson. Por outro lado, o rigor da interpretação de todo o elenco, com particular destaque para Bruce Dern, que nos oferece uma personagem inesquecível, um velho rural, meio careca, de cabelo desalinhado, arrastando persistentemente uma perna trôpega na perseguição de um sonho, alheio a todas as vozes racionais, e não esquecendo nunca a sua cerveja, ao longo de todos os bares por onde vai parando. Claro que a fotografia a preto e branco de Phedon Papamichael desempenha igualmente um papel decisivo para o excelente resultado final, criando uma patine de documento histórico desolador que funciona muito bem, e torna desconcertante esta história metafórica sobre os dias de hoje, na América profunda. A partitura musical de Mark Orton também ajuda.
Mas há um aspecto adicional que é fundamental para a importância do filme e que tem a ver com o retrato de uma sociedade em período de depressão económica e psicológica. A América envelhecida, solitária, reformada, imóvel diante dos aparelhos de televisão, desempregada, ávida e rancorosa, violenta ao menor sinal que a desperte da sua letargia, é inquietante e muito bem transmitida pela câmara atenta do cineasta, que sabe captar esses indícios sem demagogia barata. A abordagem da velhice e de todo o caudal de consequências que acarreta, a relação do casal Grant, e destes com os filhos, a permeabilidade ao embuste e a inocência desta “segunda infância” são aspectos a sublinhar.


Esta viagem de Montana ao Nebraska não acaba em total desespero. A relação pais e filhos cimenta-se e o velho Woody Grant regressa a casa orgulhoso, com o seu boné de milionário, conduzindo um novo jeep e trazendo consigo o compressor com que sempre sonhara. Nem tudo são quimeras na vida e ainda há lugar para alguma esperança. Mesmo que do milhão ambicionado reste somente o boné.
O filme foi nomeado para Melhor Filme do Ano, Melhor Realização, Melhor Actor, Melhor Argumento Original, Melhor Actriz Secundária (June Squibb) e Melhor Fotografia para os Oscars de 2014.  São às dezenas as nomeações para outros prémios e Bruce Dern ganhou alguns deles, em particular o do Festival de Cannes 2013. As referências são todas elas justíssimas e, infelizmente para Alexander Payne, a concorrência este ano é feroz e a delicada fragilidade desta obra belíssima vai sair seguramente relegada para segundo plano. Mas cremos que este é, indiscutivelmente, o melhor trabalho de um cineasta que se acompanha com prazer e de quem muito se deve esperar no futuro.


NEBRASKA
Título original: Nebraska

Realização: Alexander Payne (EUA, 2013); Argumento: Bob Nelson; Produção: Albert Berger, Doug Mankoff, George Parra, Julie M. Thompson, Ron Yerxa; Música: Mark Orton; Fotografia (p/b): Phedon Papamichael; Montagem: Kevin Tent; Casting: John Jackson; Design de produção: J. Dennis Washington; Direcção artística: Sandy Veneziano; Decoração: Fontaine Beauchamp Hebb; Guarda-roupa: Wendy Chuck; Maquilhagem: Gary Archer, Robin Fredriksz, Waldo Sanchez, Melanie Smith; Direcção de produção: Mads Hansen, Valerie Flueger Veras, Sheryl Benko; Assistentes de realização: Scott August, Gregory S. Carr;  Departamento de arte:  Wes Clowers, Jeff Cronin; Som: Frank Gaeta; Efeitos visuais: Scott Dougherty, David Lingenfelser; Companhias de produção: Blue Lake Media Fund, Bona Fide Productions, Echo Lake Productions; Intérpretes: Bruce Dern (Woody Grant), Will Forte (David Grant), June Squibb (Kate Grant), Bob Odenkirk (Ross Grant), Stacy Keach (Ed Pegram), Mary Louise Wilson (Tia Martha), Rance Howard (Tio Ray), Tim Driscoll (Bart), Devin Ratray (Cole), Angela McEwan (Peg Nagy), Glendora Stitt (Tia Betty), Elizabeth Moore, Kevin Kunkel, Dennis McCoig, Ronald Vosta, Missy Doty, John Reynolds, Jeffrey Yosten, Neal Freudenburg, Eula Freudenburg, Ray Stevens, Lois Nemec, Francisco Mendez, Jose Munoz, Catherine Rae Schutz, Terry Lotrous, Dennis McCave, Rachel Lynn Liester, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal:; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 27 de Fevereiro de 2014.

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