NEBRASKA
Belíssimo filme este de Alexander Payne, que regressa ao registo da "road
movie" (o que já acontece anteriormente com “Sideways”, 2004) e retoma o
cenário da sua terra natal, ele que nasceu em Omaha, no Nebraska, e que aí já
rodou alguns filmes, como “As Confissões de Schmidt” ou o anterior “Caminhos
Mal Traçados” (Citizen Ruth, 1996). Paine é um cineasta muito particular,
procurando protagonistas pouco habituais no cinema dominante norte-americano,
misturando humor e um retrato de certa forma angustiante da sociedade actual, o
que volta a acontecer em “Nebraska”, mantendo como polo central da acção uma
família (tal como noutro sentido o fizera em “Os Descendentes”, seu título
anterior que justificou grande sucesso de público e crítica).
Desta feita, tudo roda à volta de Woody Grant (Bruce Dern),
um velho casmurro e dado à bebida, que recebe um dia um folheto publicitário a prometer-lhe
um milhão de dólares. Resolve então ir cobrar o prémio e viajar da sua cidade,
Billings, em Montana, para Lincoln, no Nebraska, caminhando pela berma da
estrada. Claro que a família é avisada, ele é forçado a voltar a casa, mas teima
em receber o prémio a que tem direito, sem se aperceber das letras mínimas do
folheto. Um dos seus filhos, David Grant (Will Forte) resolve então meter-se no
carro com o obstinado Woody e levá-lo ao Nebraska, aproveitando para passar
pela terra natal do pai, Hawthorne, onde ele é reconhecido e muito aclamado por
familiares, velhos amigos e conhecidos depois de lhes ter dito que vai receber
um milhão de dólares. Obviamente que alguns deles sonham já colher favores da
fortuna do velho.
Velhos rezinguentos, teimosos e dados à bebida, não são
casos raros no cinema. Quem não se lembra, por exemplo, do fabuloso “Uma
História Simples” (The Straight Story, 1999), de David Lynch, com um
inspiradíssimo Richard Farnsworth? O que faz o grande interesse desta nova obra
de Alexander Payne é, por um lado, a justeza do tom, mesclando sabiamente
dramatismo e humor, sem cair na pieguice nem na caricatura, antes optando por
um olhar terno e compreensivo. O que se fica a dever à sensibilidade e pudor do
trabalho do realizador, mas igualmente ao do argumentista, Bob Nelson. Por
outro lado, o rigor da interpretação de todo o elenco, com particular destaque
para Bruce Dern, que nos oferece uma personagem inesquecível, um velho rural,
meio careca, de cabelo desalinhado, arrastando persistentemente uma perna trôpega
na perseguição de um sonho, alheio a todas as vozes racionais, e não esquecendo
nunca a sua cerveja, ao longo de todos os bares por onde vai parando. Claro que
a fotografia a preto e branco de Phedon Papamichael desempenha igualmente um
papel decisivo para o excelente resultado final, criando uma patine de
documento histórico desolador que funciona muito bem, e torna desconcertante
esta história metafórica sobre os dias de hoje, na América profunda. A
partitura musical de Mark Orton também ajuda.
Mas há um aspecto adicional que é fundamental para a
importância do filme e que tem a ver com o retrato de uma sociedade em período
de depressão económica e psicológica. A América envelhecida, solitária,
reformada, imóvel diante dos aparelhos de televisão, desempregada, ávida e
rancorosa, violenta ao menor sinal que a desperte da sua letargia, é
inquietante e muito bem transmitida pela câmara atenta do cineasta, que sabe
captar esses indícios sem demagogia barata. A abordagem da velhice e de todo o
caudal de consequências que acarreta, a relação do casal Grant, e destes com os
filhos, a permeabilidade ao embuste e a inocência desta “segunda infância” são
aspectos a sublinhar.
Esta viagem de Montana ao Nebraska não acaba em total
desespero. A relação pais e filhos cimenta-se e o velho Woody Grant regressa a
casa orgulhoso, com o seu boné de milionário, conduzindo um novo jeep e
trazendo consigo o compressor com que sempre sonhara. Nem tudo são quimeras na
vida e ainda há lugar para alguma esperança. Mesmo que do milhão ambicionado reste
somente o boné.
O filme foi nomeado para Melhor Filme do Ano, Melhor
Realização, Melhor Actor, Melhor Argumento Original, Melhor Actriz Secundária (June
Squibb) e Melhor Fotografia para os Oscars de 2014. São às dezenas as nomeações para outros
prémios e Bruce Dern ganhou alguns deles, em particular o do Festival de Cannes
2013. As referências são todas elas justíssimas e, infelizmente para Alexander
Payne, a concorrência este ano é feroz e a delicada fragilidade desta obra
belíssima vai sair seguramente relegada para segundo plano. Mas cremos que este
é, indiscutivelmente, o melhor trabalho de um cineasta que se acompanha com
prazer e de quem muito se deve esperar no futuro.
NEBRASKA
Título original: Nebraska
Realização: Alexander Payne (EUA, 2013);
Argumento: Bob Nelson; Produção: Albert Berger, Doug Mankoff, George Parra,
Julie M. Thompson, Ron Yerxa; Música: Mark Orton; Fotografia (p/b): Phedon
Papamichael; Montagem: Kevin Tent; Casting: John Jackson; Design de produção:
J. Dennis Washington; Direcção artística: Sandy Veneziano; Decoração: Fontaine
Beauchamp Hebb; Guarda-roupa: Wendy Chuck; Maquilhagem: Gary Archer, Robin
Fredriksz, Waldo Sanchez, Melanie Smith; Direcção de produção: Mads Hansen,
Valerie Flueger Veras, Sheryl Benko; Assistentes de realização: Scott August,
Gregory S. Carr; Departamento de
arte: Wes Clowers, Jeff Cronin; Som:
Frank Gaeta; Efeitos visuais: Scott Dougherty, David Lingenfelser; Companhias
de produção: Blue Lake Media Fund, Bona Fide Productions, Echo Lake
Productions; Intérpretes: Bruce Dern
(Woody Grant), Will Forte (David Grant), June Squibb (Kate Grant), Bob Odenkirk
(Ross Grant), Stacy Keach (Ed Pegram), Mary Louise Wilson (Tia Martha), Rance
Howard (Tio Ray), Tim Driscoll (Bart), Devin Ratray (Cole), Angela McEwan (Peg
Nagy), Glendora Stitt (Tia Betty), Elizabeth Moore, Kevin Kunkel, Dennis
McCoig, Ronald Vosta, Missy Doty, John Reynolds, Jeffrey Yosten, Neal
Freudenburg, Eula Freudenburg, Ray Stevens, Lois Nemec, Francisco Mendez, Jose
Munoz, Catherine Rae Schutz, Terry Lotrous, Dennis McCave, Rachel Lynn Liester,
etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal:; Classificação etária: M/
12 anos; Data de estreia em Portugal: 27 de Fevereiro de 2014.
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