A GRANDE BELEZA
“Primeiro
estranha-se, depois entranha-se” foi um slogan inventado por Fernando Pessoa
para uma bebida e realmente ele nunca poderia ter visto “A Grande Beleza”, mas
creio que a frase se aplica bem a este belíssimo filme italiano, de Paolo
Sorrentino, com um excelente actor, Toni Servillo, que, qual flaneur, vive com
charme e um delicioso diletantismo a figura de Jep Gambardella, um escritor e
jornalista cultural romano que há muitos anos escrevera um romance de sucesso e
depois se calara criativamente. Por falta de inspiração, reconhece ele. A
realidade à sua volta é tão dolorosamente medíocre, cinzenta, mesquinha, tão sem
falta de graça e de projecto, que ele desistira de escrever fosse o que fosse.
Deambula
como um fantasma vindo de outros tempos por essas festas e jantares, recepções
e actos culturais e “artísticos”, encontros amorosos e desencontros sociais,
nessa Roma de monumental passado, que as pedras eternizam, mas que os actuais
habitantes reduzem a cenários perdulários de grotescas farsas sem sentido.
Paolo
Sorrentino tem sobretudo saudades do passado, de “A Doce Vida” de Felliini,
obviamente e de todo o feérico universo deste cineasta, mas também de outros
mestres italianos, como o aristocrático Visconti (vejam-se essas incursões
pelos palácios e os monumentos que são de tal forma de cortar a respiração, que
um oriental mais sensível acaba mesmo vítima de uma síncope ao olhar a
deslumbrante beleza que o rodeia), ou mesmo, aqui ali, de algumas pinceladas do
”frio” Antonioni, de “A Noite” ou “O Eclipse”. Mas é mesmo o mundo de Fellini
que Paolo Sorrentino repisa, as parolas festas das elites que duram até às
tantas da madrugada, as majestosas matronas de fartos seios, ou os elegantes
modelos e actrizes, com o seu encontro espectral com a vedeta, quer seja Anita
Ekberg, quer seja Fanny Ardant, as procissões de clérigos e freiras, o sarcasmo
para com a padralhada, e o toque místico de autêntica religiosidade. Neste
aspecto, o seu filme é uma homenagem directa e despudoradamente amorosa ao
grande cinema italiano da sua época de ouro. “Porque é que se há-se ter medo da
nostalgia, quando é apenas o que resta a quem não tem fé no futuro?”, pergunta
Jep Gambardella.
Surge
também uma “santa” secular, que só come raízes. Porquê? “As raízes são
importantes!”
A
realidade presente é, pois, confrangedora. Gambardella não tem nada a dizer. Ou
não lhe apetece dizer o que poderia querer escrever. Ele passeia-se, meio
fascinado pela decadência, meio horrorizado pela mediocridade, o embuste, o
vazio, a mentira, a hipocrisia destes tempos, onde não se fala de “milagre
económico”, como o poderia fazer Fellini nos anos 60, mas de “austeridade” e de
“bancarrota”, com as tróicas com os olhos colados aos mais débeis e as mãos
generosamente viradas para os mais ricos e poderosos, que nos oferecem o
espectáculo da sua opulência feérica por fora e da sua miséria intelectual e
moral.
Jep
Gambardella, tal como o Mastroianni de Fellini, passa por uma girafa e um
mágico que afirma que a pode fazer desaparecer. Gambardella pergunta ao mago se
“também consegue fazer desaparecer pessoas”, ao que este lhe responde: “Acha
que se eu pudesse fazer desaparecer pessoas eu ainda estava aqui?”
Paolo
Sorrentino é o mesmo de “Le Conseguenze dell'Amore” (2004), “Il Divo” (2008) e
de “This Must Be the Place” (2011), mas “La Grande Bellezza” é definitivamente
um filme de outra galáxia. A estrutura é a de uma viagem (iniciática?) pela
Roma de hoje, a meio caminho entre a reportagem social e o onirismo, misturando
realidade (recriada) e sonho, fantasmas e fantasias, pessoal e colectivo. O
espectador é convidado a embarcar neste passeio em que Jep Gambardella é mais personagem
contemplativo e juiz a uma certa distância cínica, do que interveniente ou
participante. Ele olha e sorri malicioso perante o espectáculo que se desenrola
à sua frente.
Toda a
obra é de uma qualidade plástica e gráfica admirável, ao nível dos cenários,
dos enquadramentos, da cor, da iluminação, banhada por essa luz fantástica do
Mediterrâneo. Toni Servillo é absolutamente fabuloso na forma como interpreta
Jep Gambardella. “A Grande Beleza” é isso mesmo. E só ela nos poderá salvar.
A
GRANDE BELEZA
Título
original: La Grande Bellezza
Realização:
Paolo Sorrentino (Itália, França, 2013); Argumento: Paolo Sorrentino, Umberto
Contarello; Produção: Francesca Cima, Nicola Giuliano, Jérôme Seydoux, Vivien
Aslanian, Carlotta Calori, Fabio Conversi, Gennaro Formisano, Romain Le Grand,
Guendalina Ponti, Viola Prestieri, Muriel Sauzay; Música: Lele Marchitelli;
Fotografia (cor): Luca Bigazzi; Montagem: Cristiano Travaglioli; Casting: Anna
Maria Sambucco; Design de produção: Stefania Cella; Guarda-roupa: Daniela Ciancio; Maquilhagem: Peter Nicastro,
Maurizio Silvi; Direcção de Produção:
Giuseppe Di Gangi, Raffaello Vignoli;
Assistentes de realização: Baladine Ardant Conversi, Andrea Armani,
Davide Bertoni, Jacopo Bonvicini, Giulio Cangiano, Domenico Emanuele de Feudis,
Serena Lupo, Piero Messina, Fabrizio Provinciali, Giorgio Servillo;
Departamento de arte: Stefano Barberi, Giorgio Barullo, Fabio Galvagno,
Fabrizio Mucci, Daniele Rossi Espagnet, Angelo Spirito; Som: Emanuele Cecere;
Efeitos especiais: Tiberio Angeloni, Franco Galiano, Massimo Giovannetti, Luca
Ricci; Efeitos visuais: Enrico Barone, Rodolfo Migliari; Companhias de
produção: Indigo Film, Medusa Film, Babe Film, Pathé, France 2 Cinéma,
Mediaset, Canal+, Ciné+, France Télévisions, Regione Lazio , Ministero per i
Beni e le Attività Culturali (MiBAC), Banca Popolare di Vicenza, Lazio Film
Commission, Fonds Eurimages du Conseil de l'Europe, Programme MEDIA de la
Communauté Européenne, Biscottificio Verona; Intérpretes: Toni Servillo (Jep
Gambardella), Carlo Verdone (Romano), Sabrina Ferilli (Ramona), Carlo
Buccirosso (Lello Cava), Iaia Forte (Trumeau), Pamela Villoresi (Viola),
Galatea Ranzi (Stefania), Franco Graziosi (Conde Colonna), Giorgio Pasotti
(Stefano), Massimo Popolizio (Alfio Bracco), Sonia Gessner (Condessa Colonna),
Anna Della Rosa (rapariga na performence), Luca Marinelli (Andrea), Serena
Grandi (Lorena), Ivan Franek (Ron Sweet), Vernon Dobtcheff (Arturo), Dario
Cantarelli, Pasquale Petrolo, Luciano Virgilio, Aldo Ralli, Giusi Merli,
Giovanna Vignola, Anita Kravos, Ludovico Caldarera, Maria Laura Rondanini,
Francesca Golia, Silvia Munguia, Massimo De Francovich, Isabella Ferrari,
Roberto Herlitzka, Fanny Ardant (não creditada), etc. Duração: 142 minutos;
Distribuição em Portugal: Zon-Lusomundo; Classificação etária: M/ 16 anos; Data
de estreia em Portugal: 20 de Fevereiro de 2014.
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