BOYHOOD:
MOMENTOS DE UMA VIDA
O projecto é
original, senão inédito: acompanhar durante doze anos a vida de uma pequena
família. Mason (Ellar Coltrane), o miúdo, figura central, aparece com seis anos
no início do filme e deixa-o com dezoito, depois da câmara de Richard Linklater
o ter escoltado durante esse lapso de tempo. Não o segue sempre, há lapsos,
elipses de anos, mas de tanto em tanto tempo (cremos que de dois em dois anos),
Linklater volta ao seu pequeno herói que vai crescendo. Vive com a mãe
(Patricia Arquette), e com uma irmã ligeiramente mais velha, Samanta (Lorelei Linklater, filha do realizador, como
parece óbvio pelo nome). O pai (Ethan Hawke) está separado da mãe, mas vai
buscar os filhos para fins de semana e férias. “Boyhood” assemelha-se muito a
um filme de registo de memórias familiares. Não há grandes cenas dramáticas,
nada de muito especial, apenas o dia a dia, mais ou menos banal, de uma família
de classe média norte-americana. Dir-se-ia que o argumento do próprio Richard Linklater mostra como fazer um filme
sem recorrer às receitas da “escrita criativa” ou de “como escrever um guião
para cinema”. Linklater parece ter escolhido demonstrar o contrário. E sair por
cima, vitorioso. O seu filme conhece um êxito de crítica e de público
considerável.
O que há de
extraordinário neste filme é que não há realmente nada de extraordinário, a não
ser ver crescer uma criança até ela se tornar um adulto, e ir recordando com
ela as pequenas (e grandes) transformações da sociedade e do mundo. A família
passa por tudo aquilo que se tornou habitual numa família, os casamentos, os
divórcios, uma ou outra cena entre os casais, as dificuldades da mãe para criar
duas crianças, o pai que as leva no fim de semana a jogar bowling ou a
comezainas de fast food, as viagens para férias em acampamentos, as festas de
família, as idas para a escola, as mudanças de cidade, os primeiros namoros,
tudo isto envolvido em apontamentos que revelam as mudanças tecnológicas, os telemóveis,
os jogos de computador, as séries na televisão, as campanhas dos políticos, de
Bush a Obama, o vestuário, as músicas, os gadgets. O realizador não precisa de
sublinhar nada, tudo corre com a habituação do quotidiano. Na verdade, cada
segmento foi filmado no ano a que diz respeito, portanto tudo o que aparece
está inscrito na realidade desse momento. Não há reconstituição “histórica”. Há
segmentos do quotidiano que se colam uns aos outros para dar a medida do tempo
a deslizar.
Rodado no
Texas, grande parte em Houston, terra natal de Richard Linklater, este é um
filme com aparência de mais vivido do que interpretado. Por isso os actores
(Ellar Coltrane, Lorelei Linklater, Patricia Arquette e Ethan Hawke, sobretudo
estes) nos surgem numa desconcertante espontaneidade, donde resultam
impressionantes retratos. Mas é de sublinhar a elegância, a serenidade
expositiva, o rigor narrativo, a sensibilidade e o pudor de Richard Linklater que
é um cineasta dos mais interessantes de entre os revelados nos anos 90 na
América. O tempo e as relações pessoais parecem ser as suas grandes obsessões.
Uma das suas experiências anteriores, foram três filmes, todos eles
interpretados por Ethan Hawke e Julie Delpy, que vão acompanhando a evolução de
um casal, desde o seu encontro, em “Antes do Amanhecer” (1995), o seu
reencontro, em “Antes do Anoitecer” (2004), até ao seu casamento em “Antes da
Meia-Noite” (2013). Esta viagem pelo tempo, durante quase duas décadas,
passando por Viena de Áustria, Paris e os EUA, acompanhando o desenrolar das
personalidades e das emoções parece ser o prato forte deste autor de
indiscutível qualidade e originalidade que, seguramente em função desta
proposta inicial, dá uma grande importância ao trabalho dos actores e à
densidade das personagens, o que resulta particularmente bem-vindo numa altura
em que grande parte do cinema norte-americano (e internacional) se preocupa
mais com efeitos especiais e imagens virtuais, desdenhado quase por completo a
espessura psicológica e a presença humana das pessoas.
Um excelente
filme que irá seguramente provocar ondas de choque na noite da entrega dos
Oscars. As nomeações são seis (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor
Secundário, Ethan Hawke, Melhor Actriz Secundária, Patricia Arquette, Melhor
Argumento Original, e Melhor Montagem). Nos Globos de Ouro, já conquistou três
dos prémios mais apetecíveis (Melhor Filme, Melhor Realizador, e Melhor Actriz
Secundária, Patricia Arquette), e nesta altura ostenta um impressionante
palmarés: 119 prémios nacionais e
internacionais e 115 nomeações. Para um filme de estrutura independente é
brilhante.
BOYHOOD: MOMENTOS DE UMA VIDA
Título original: Boyhood
Realização: Richard Linklater (EUA, 2014);
Argumento: Richard Linklater; Produção: Sandra Adair, Caroline Kaplan, Richard
Linklater, Kirsten McMurray, Vincent Palmo Jr., Jonathan Sehring, John Sloss,
Cathleen Sutherland, Anne Walker-McBay; Fotografia (cor): Lee Daniel, Shane F.
Kelly; Supervisão musical: Meghan Currier, Randall Poster; Montagem: Sandra
Adair; Casting: Beth Sepko; Design de produção: Rodney Becker, Gay Studebaker;
Decoração: Melanie Ferguson; Guarda-roupa: Kari Perkins; Maquilhagem: Darylin
Nagy; Direcção de Produção: Cathleen Sutherland; Departamento de arte: Stanford
Gilbert, Ellen Lampl, Aaron Statler; Som: Ethan Andrus, Wayne Bell, Thadd Day,
Evan Dunivan, Tom Hammond, Justin Hennard; Efeitos visuais: Parke Gregg, Nick
Smith; Companhias de produção: IFC Productions, Detour Filmproduction; Intérpretes: Ellar Coltrane (Mason),
Patricia Arquette (mãe), Elijah Smith (Tommy), Lorelei Linklater (Samantha),
Steven Chester Prince (Ted), Bonnie Cross (professor), Sydney Orta (rapariga da
escola), Libby Villari (avó), Ethan Hawke (pai), Marco Perella (Professor Bill
Welbrock), Jamie Howard (Mindy), Andrew Villarreal (Randy), Shane Graham, Tess
Allen, Ryan Power, Sharee Fowler, Mark Finn, Charlie Sexton, Byron Jenkins,
Holly Moore,David Blackwell, Barbara Chisholm, Matthew Martinez-Arndt, etc.
Duração: 165 minutos; Distribuição em Portugal: NOS Audiovisuais; Classificação
etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 27 de Novembro de 2014.
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