sexta-feira, janeiro 30, 2015

OS FILMES PARA OS OSCARS (5)


EM PARTE INCERTA

De Gillian Flynn li dois romances magníficos, primeiramente “Lugares Escuros” (Dark Places), depois “Em Parte Incerta” (Gone Girl), e ainda se encontra traduzida para português uma terceira obra, “Objectos Cortantes” (Sharp Objects), que, apesar das buscas, não encontrei disponível. Gillian Flynn é efectivamente uma excelente romancista, cujos trabalhos se podem aproximar do policial ou do thriller, mas que são sobretudo muito “dark”, entrando de muito boa vontade no universo do “roman noir”. Outro aspecto curioso deste “Gone Girl”, tanto no romance como no filme que dele foi adaptado, diz respeito à personagem central feminina, o que leva muito boa gente a levantar a suspeita de se tratarem de obras misóginas, o que não deixa de ser divertido. Vêem-se milhares de filmes com homens perversos, criminosos sem escrúpulos, serial killers empedernidos, mas nada a opor. Quando uma mulher é apresentada sob aspectos menos consentâneos com os de boa esposa e boa mãe, vêm logo os epítetos de misogenia. “Gone Girl” não é nada disso, é apenas um fabuloso retrato de mulher, que no cinema tem o rosto (e o talento invulgar) da magnífica Rosamund Pike.


“Em Parte Incerta” foi adaptado a cinema pela própria Gillian Flynn, e diga-se que de forma extremamente inteligente. O romance intercala excertos de um diário que a desaparecida deixou para trás com as peripécias da busca da mulher, pelas autoridades e pelo marido. Aparentemente a adaptação julgar-se-ia difícil, mas Gillian Flynn tornou simples a árdua tarefa. A história parece banal: Nick Dunne (Ben Affleck) e Amy Dunne (Rosamund Pike) são casados há cinco anos, mas no dia em que celebram a efeméride, ela desaparece, deixando a casa de pernas para o ar. A polícia inicia as investigações, dado o aparato, mas lentamente vão-se instalando suspeitas de que Nick foi o autor do que já se julga ter sido um assassinato, com posterior ocultação de cadáver. Mas nem tudo o que parece é.
A realização de David Fincher é, como sempre, bastante eficaz e talentosa, num registo que lhe é particularmente caro. Sobretudo desde 1995, com o celebrado “Seven - 7 Pecados Mortais”, passando por “O Jogo” (1997), “Clube de Combate” (1999), “Sala de Pânico” (2002), “Zodiac” (2007), “O Estranho Caso de Benjamin Button” (20008), “A Rede Social” (2010), “Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres” (2011), até chegar a este “Em Parte Incerta” (e passando ainda por algumas incursões como realizador e produtor de trabalhos televisivos, como “House of Cards”), Fincher tem-se especializado em relatos de uma extrema violência física e psicológica que nos devolvem retratos inquietantes da sociedade contemporânea. Ele é, indiscutivelmente, um dos autores mais interessantes do actual cinema norte-americano, sendo seguramente um dos que melhor interpreta e corporiza os pesadelos mais íntimos de uma sociedade em crise de valores.


Utilizando uma linguagem muito realista, mas com propósitos eminentemente metafóricos, Fincher mostra-nos alguns dos pesadelos dantescos que o espírito humano pode conceber, expressos em crimes dos mais horríveis que a mente humana pode idealizar. “Seven” e “Clube de Combate” perfilam-se mesmo como fortes candidatos a constituírem dois dos mais poderosos retratos da América de final do século XX (mas não só!), jogando com alguns dos temas mais preocupantes deste nosso tempo – desde a violência desregrada e sem motivo aparente até ao puritanismo fanatizado. O caso de “Em Parte Incerta” inscreve-se bem nesta trajectória extremamente coerente, quer temática, quer estilística. Aqui temos igualmente um quotidiano realista que tende para uma metáfora óbvia. O casamento é o ponto de partida, desde a idílica preparação até ao desenlace mais cínico, atravessando zonas de uma violência extrema. Não será por acaso que se fala em “conquista” quando alguém assume uma paixão por outra pessoa, não é certamente por acaso que marido e mulher se apresentam como a “minha” mulher, o “meu” marido. Este sentimento de conquista e posse, que por vezes resulta bem e harmonizam-se os contrários, noutros casos resvala para uma violência doméstica insuportável. “O casamento não é coisa fácil”, diz-se mais ou menos no filme, por estas ou outras palavras, o que é uma verdade lapaliceana. O encerrar desta aventura que roça o cinismo e a ironia acaba por revelar as complexas e traumatizantes personalidades de Amy e Nick, dois retratos magníficos que o engenho e a arte de Gillian Flynn e David Fincher idealizaram e Rosamund Pike e Ben Affleck preenchem a rigor em magníficas composições. Rosamund Pike é, como já referimos, absolutamente admirável na sua interpretação, desdobrando-se em estados de espírito contrastantes, mas sempre fascinantes.
De resto, o filme invade outros territórios, como a própria comunicação social, oferecendo uma perspectiva igualmente preocupante da relação estabelecida com o espectador que por ela é condicionado. A forma como uma entrevista bem ensaiada pode mudar radicalmente a opinião de milhões é um dado a merecer reflexão.
Um belo filme negro à maneira do século XXI. Entretanto, David Fincher anuncia já uma nova adaptação que promete: “The Girl Who Played with Fire”.


EM PARTE INCERTA
Título original: Gone Girl

Realização: David Fincher (EUA, 2014); Argumento: Gillian Flynn, segundo romance de sua autoria; Produção: Ceán Chaffin, Jim Davidson, Leslie Dixon, Joshua Donen, Arnon Milchan, Bruna Papandrea, Reese Witherspoo; Música: Trent Reznor, Atticus Ross; Fotografia (cor): Jeff Cronenweth; Montagem: Kirk Baxter; Casting: Laray Mayfield; Design de produção: Donald Graham Burt; Direcção artística: Sue Chan, Dawn Swiderski; Decoração: Douglas A. Mowat, Gena Vazquez; Guarda-roupa:  Trish Summerville; Maquilhagem: Kate Biscoe, Sheryl Blum, Kim Santantonio; Direcção de Produção: Peter Mavromates, David Witz; Assistentes de realização: Yarden Levo, Courtenay Miles, Derek Peterson, Paul Schneider, Mollie Stallman, Robert Teten, Katey Wheelhouse; Departamento de arte: Richard Brunton, Andrew Campbell, Robert J. Carlyle, Tim Croshaw, Monica Fedrick, Adam Khalid, Michael LaCorte, Barbara Mesney, Michael Mikita Jr., Brent Regan, Molly Reinhardt, Darlene Salinas, Jane Wuu; Som: Ren Klyce; Efeitos especiais: Jared Baker, Ron Bolanowski, Dean Hathaway; Efeitos visuais: Eric Barba, Gabriela Hickman, Brice Liesveld, Ken Locsmandi, James Pastorius, Steve Preeg, Kim Quiroz, Chris Yi, Wei Zheng; Companhias de produção: Twentieth Century Fox Film Corporation, Regency Enterprises, TSG Entertainment, Artemple – Hollywood, New Regency Pictures, Pacific Standard; Intérpretes: Ben Affleck (Nick Dunne), Rosamund Pike (Amy Dunne), Neil Patrick Harris (Desi), Tyler Perry (Tanner Bolt), Carrie Coon (Margo Dunne), Kim Dickens (detective Rhonda Boney), Patrick Fugit (detective James Gilpin), Emily Ratajkowski (Andie), Missi Pyle (Ellen), Casey Wilson (Noelle), David Clennon, Lisa Banes, Lola Kirke, Boyd Holbrook, Sela Ward, Lee Norris, Jamie McShane, Leonard Kelly-Young, Kathleen Rose Perkins, Pete Housman, Lynn Adrianna, Mark Atteberry, Darin Cooper, Kate Campbell, Brett Leigh, etc. Duração: 149 minutos; Distribuição em Portugal: Big Picture 2 Films; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 2 de Outubro de 2014.

1 comentário:

Luis Eme disse...

passo por aqui, leio e não digo nada, quase sempre.

grato pelas palavras, Lauro António.