A PEÇA QUE DÁ PARA O TORTO
Hoje é dia de estreia de “A
Peça Que Dá Para o Torto”, no original “The Play That Goes Wrong”. É um texto
dos ingleses Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields, que se encontra em
exibição em Londres, há mais de cinco anos, numa produção da Mischief Theatre
Company, com encenação de Hannah Sharkey. Grande sucesso de público e de
crítica, com emigração para os palcos de mais de trinta países, e muitos
prémios arrecadados, quer em Inglaterra como por outras latitudes.
A versão que vamos ver em
Lisboa é o que se chama uma "replica show". O que significa que a
UAU, empresa produtora portuguesa, adquiriu "os direitos todos da peça,
não só do texto, mas também do cenário, da luz, da música, de tudo". Uma encenadora britânica, Hannah Sharkey, tem estado em Lisboa, para
assegurar que tudo corra como acontece em palcos ingleses, mas a tradução para
português, com algumas indispensáveis adaptações, é de Nuno Markl, e, neste
contexto, surge igualmente a figura do
encenador residente, Frederico Corado, que divide responsabilidades locais com
os demais responsáveis (só para que conste, é meu filho, para assim ficar
assegurado desde já algum possível conflito de interesses).
A obra é muito divertida, bem
construída, sólida peça de carpintaria (não é um eufemismo, como veremos mais
adiante), não pactua com a estupidez tatas vezes reinante neste tipo de
produção, afirmando-se pelo contrário como obra inteligente e de humor crítico
e sensível. É realmente um vendaval de gargalhadas, mas não vazio de sentido e
inócuo.
Antes de mais, trata-se de
uma peça no interior de uma peça. Uma peça inglesa, tipicamente british,
encenada pelo núcleo de Teatro da Sociedade Recreativa e Cultural do
Sobralinho. Logo de início o encenador coloca os pontos nos ii. A Sociedade tem
tido muitas dificuldades para levar a cena algumas produções, sobretudo por
falta de meios. A versão de Os Miseráveis passou a O Miserável, a Branca de
Neve passou a ser acompanhada unicamente pelo Matulão, à falta de sete anões,
de Tennesse Williams apresentaram O Triciclo Chamado Desejo (e depois tiveram
ainda que actualizar: O Skate Chamado Desejo).
A peça que hoje levam a cena
é uma produção de estilo policial, “Crime na Mansão Haversham”, que começa logo
com o aparecimento de um cadáver estendido no meio de um cenário de um certo
mau gosto britânico, uma velha mansão, como tantas outras que surgem no teatro
e no cinema provindos daquela ilha que recentemente se afastou da EU. Não se
trata tanto de uma paródia ao estilo de Agatha Christie, mas sim às medíocres
réplicas desta escritora, que por aí proliferam.
Depois as investigações em
relação àquela morte iniciam-se. Surgem sete pessoas naquela sala de estar com
cheiro a velório: o irmão do morto, a noiva do morto, o irmão da noiva (por
sinal brasileiro), o mordomo (não podia faltar), um inspector (está lá fora o
inspector!) e ainda há mais alguns intervenientes como a contrarregra ou
aderecista e ponto, e o técnico de som, irritadíssimo porque lhe roubaram um CD
dos Duran Duran. Além disso, perdeu-se um cão, de que só sobrou a trela…
Primeiro aspecto a ressalvar
neste contexto: a peça agarra nalguns estereótipos do policial e mesmo do
romance negro e parodia-os com imensa graça. O morto, o mordomo, o inspector, a
femme fatale que não resiste a nenhum macho, os suspeitos, tudo é posto em
causa, assim como cada adereço, cada puxador de porta, cada vidro de janela,
cada quadro, cada lareira (há só uma!), cada praticável. Nada está no sítio
certo nem na hora exacta. O que potencia a hecatombe, de desgraça em desgraça
até ao terramoto final.
A peça é bastante bem
representada, por um elenco muito jovem, mas globalmente talentoso, mas esta
não é uma representação vulgar. Todos têm de apresentar alguns resquícios de
acrobatas, tal o empenhamento físico que a peça exige aos seus intervenientes.
Se a construção do cenário e a colocação dos adereços pressupõe um trabalho
minucioso, de relojoeiro, em que todos os elementos têm de estar no seu local
determinado ao segundo exigido, o facto deste cenário já vir importado de
Londres (via Espanha) ajudou em muito. Mas o elenco português teve de se
adaptar a este cenário maquiavélico que impõe um ritmo endemoniado e uma certa
destreza corporal. A Inês Castelo-Branco a ser retirada “desmaiada” por uma
janela não é para qualquer uma, nem o Miguel Thiré a equilibrar-se com três
móveis é para todos (e não digo mais, quem for ver avaliará). Mas todos os
actores passam as passas do Algarve nesta comédia de slapstick, muito na linha
de alguns grandes cómicos como Keaton, Chaplin ou Lloyd.
Segundo aspecto a sublinhar.
Não sei se conscientemente se não, esta peça assume um papel pedagógico muito
interessante. Pretende ser objectivamente uma representação realista ou
naturalista e acaba por evoluir para um simbolismo, um non sense minimalista.
Tal como Picasso que era um pintor realista notável ainda muito jovem, e depois
foi evoluindo para o cubismo e até para a abstração, o mesmo acontece nesta
peça. Um exemplo. Quando procuram retirar o cadáver da sala de estar, vão
buscar uma padiola e colocam nela o corpo. Mas o pano cede, o corpo cai, os
transportadores não se dão por vencidos e continuam a transportar a padiola,
agora só as pegas de madeira. Mais tarde já mimam o transporte do corpo só com
as mãos. A cena vai evoluindo do realismo para o simbolismo mais minimalista,
um pouco uma das vias do teatro moderno.
Mais. Existe uma femme
fatale (obviamente a Inês Castelo-Branco) que veste vermelho, como se
esperaria. As tantas ela desaparece e a contrarregra surge a substituí-la
apenas com o vestido vermelho sobre a jardineira. Buñuel realizou um filme com
duas actrizes a interpretar o mesmo papel. O público na peça teatral compreende
a substituição, assim como a entende mais tarde quando será um homem a aparecer
neste papel.
“A Peça Que Dá Para o Torto”
não só desconstrói os estereótipos do policial, como vai mais longe e deixa
perceber o mecanismo da identificação num espectáculo teatral que não necessita
do realismo para tornar evidente certas propostas. Por tudo isso um belo
espectáculo que ainda bem que, neste caso, deu para o torto.
Prémio Olivier para Melhor
Comédia Nova em Inglaterra, “The Play That Goes Wrong” tem um elenco
globalmente muito eficaz, composto por Alexandre Carvalho, Cristóvão Campos,
Igor Regalla, Telmo Mendes, Inês Castel-Branco, Joana Pais de Brito,
Miguel Thiré e Telmo Ramalho. Sem querer menosprezar ninguém, devo sublinhar o
trabalho destes quatro últimos.
Em cena a partir de hoje, no
Auditório dos Oceanos, do Casino de Lisboa, tem estadia prevista até Junho.
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