“Driving Miss Daisy”, em português apenas “Miss Daisy”, começou por ser uma peça de Alfred Uhry, que a adaptou depois ao cinema, em 1989, para Bruce Beresford, um australiano a trabalhar em Hollywood, dirigir, com três excelentes actores nos principais papeis: Jessica Tandy, em Daisy Werthan, Morgan Freeman, no seu motorista particular, Hoke Colburn, e Dan Aykroyd, no filho de Daisy, Boolie Werthan:
A peça, que ganhou o Prémio Pulitzer, fala de uma velha senhora judia, que depois de um acidente aparatoso, quando conduzia o seu belo Packard de estimação, é obrigada pelo filho a responder a um dilema de difícil resolução para si: ou aceita um motorista para a conduzir nas suas viagens pela cidade, compras, ida à sinagoga, visita a familiares, ou deixa de sair de carro. Com os seus 72 anos, Miss Daisy não quer admitir o inevitável, protesta, barafusta, recusa, mas acaba por aceitar os préstimos de Hoke Colburn, um negro, igualmente já de certa idade, que o filho contrata. É conveniente acrescentar que estamos nos Estados Unidos da América, em fim da década de 40, no Sul tradicionalmente racista, e que a senhora não é o cúmulo de boa vontade nem de amabilidade. As relações entre ambos são, a princípio, obviamente, conflituosas, mas vão evoluindo gradualmente para uma aproximação, ao longo de duas décadas (a peça decorre entre 1948 e 1972), acabando mesmo no reconhecimento de uma amizade de todo em todo previsível de início. A amizade entre Daisy e Hoke não resulta apenas de um mero choradinho sentimental, tipo velha resmungona ultrapassa preconceitos raciais e acaba amiga de velho chauffer, mas há algo mais a unir estas duas personagens: o preconceito racista é vivido por ambos, ela como judia, ainda que rica (apesar de nunca o aceitar), ele como negro, e pobre (apesar de saber negociar muito bem os seus honorários, conseguir comprar um velho automóvel, e ter a neta, nas cenas finais da peça, já como professora universitária). Ao longo de duas décadas, vão burilando diferenças e aconchegando proximidades. Ao longo de duas décadas, com delicadeza e sensibilidade, sem demagogias mas com uma austeridade de processos de realçar, a peça (e o filme) foi oferendo o desenrolar de uma evolução no interior dos EUA, com alguns factos políticos a pontuar a acção (por exemplo: o célebre discurso de Martin Luther King “Eu tive um Sonho” e a ressonância dos tiros que o tentaram calar para sempre).
A peça é uma obra interessante, bem construída, permitindo bons trabalhos de actores. No filme, Jessica Tandy era notável (ganhando o Óscar de Melhor Actriz), mas também Morgan Freeman, Dan Aykroyd, nomeados, e Patti LuPone (para quem o dramaturgo arranjou de propósito um papel, Florine Werthan), merecem todos os encómios.
Pois foi esta peça que agora se estreou (dia 29 de Junho e vai estar em cena só até 15 de Julho) no Auditório Eunice Munoz, em Oeiras, com Eunice Munoz, ao lado de Thiago Justino e Guilherme Filipe, numa encenação de Celso Cleto, com cenários e figurinos de José Costa Reis. O resultado é globalmente muito bom, nem outra coisa seria de esperar de tal equipa, ainda que uma ou outra aresta possa vir a ser limada com o decorrer da rodagem. Na triunfal noite de estreia, a peça arrastou-se um pouco no seu ritmo, e há um aspecto de que não gostei mesmo nada (a sonoplastia, com uma banda sonora demasiado repetitiva, e um tratamento técnico onde faltam fade in e fade out). De resto, o cenário e figurinos de José Costa Reis são eficazes e de bom gosto (o carro funciona bem) e a encenação de Celso Cleto discreta e atenta sobretudo ao trabalho dos actores, que aqui era o essencial, e funciona muito bem. Este quase apagamento da encenação é uma virtude de quem sabe o que fazer e não pretende colocar-se em bicos de pés, para ser notado.
Quanto aos actores, Eunice é como sempre brilhante, agora (e finalmente!) na casa que tem o seu nome. Não tenta copiar Jessica Tandy, constrói uma Miss Daisy sua e acertou por completo no registo. Mesmo quando tem uma “branca” (o que é normal, sobretudo numa noite de estreia), Eunice dá a volta por cima, cria uma pausa, saboreia uma palavra, inventa um gesto ou uma expressão, e continua como um verdadeiro animal de palco, alguém que nunca perde os espectadores do seu comando, que os leva habilmente onde os quer bem dominados. A invenção e a tarimba, mas sobretudo o talento nato e a experiência de palco fazem desta mulher uma diva que dá gosto ver e rever. Que saudades Eunice, do nosso trabalho na “Manhã Submersa”!
Thiago Justino tinha um belo desafio pela frente. Morgan Freeman é um actor fabuloso, e Thiago não lhe fica atrás. O seu motorista é brilhante. Também Guilherme Filipe vai muito bem, discreto, sóbrio, mas necessariamente presente quando é necessário.
Resumindo: um bom espectáculo, numa sala de teatro recuperada para os grandes acontecimentos, com Isaltino Morais a regressar aos bons velhos tempos da sua Oeiras a dar cartas, desta feita numa estreia com cheirinho a grande gala. Uma bela noite de teatro, e já agora, entrando na coluna VIP, com um público a condizer: agradecido a Eunice, rendido ao que se passava no palco, e bonito na plateia.
sexta-feira, junho 30, 2006
EUNICE MUÑOZ:
“MISS DAISY” EM OEIRAS
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