sexta-feira, junho 02, 2006

MARIA MADALENA


Num momento da história do homem em que o que não é representado (mesmo se documentário) parece não existir, o mundo do espectáculo no epicentro de “Mary” oferece visibilidade ao tema: um realizador, Tony Childress (Matthew Modine, cuja composição recorda em muito o próprio Abel Ferrara), acaba de rodar "This Is My Blood", um filme com uma nova leitura da vida de Cristo e das suas relações com Maria Madalena; uma actriz europeia, Marie Palesi (Juliette Binoche), que interpreta a figura de Maria Madalena e se deixa impregnar de tal forma pela personagem que abandona a carreira e segue para Jerusalém em busca de um caminho e um sentido para a sua vida; o apresentador de um programa de televisão, Tedodore Younger (Forrest Withaker) que procura também ele, através de várias entrevistas com teólogos e ensaístas reais (Jean-Yves Leloup, Amos Luzzatto, Elaine Pagels, entre outros) respostas para as dúvidas que o assaltam, a ele e a milhões de espectadores, sobre alguns aspectos da vida de Cristo, que os testamentos gnósticos, ultimamente revelados, não se cansam de fazer multiplicar.
A culpa e a redenção assumem-se como os temas centrais desta obra de um peso e de uma densidade dramática absorventes. Uma das características do cinema de Abel Ferrara é a facilidade com que cria ambientes sombrios, carregados, nocturnos. Dir-se-ia que isso era mais fácil em obras onde a violência e o crime se instalam (a quase maioria dos títulos deste cineasta que se especializou em “thrillers” de uma agressividade rasante). Mas, abordar a vida de Cristo, as dúvidas sobre a identidade de Maria Madalena (prostituta, apostolo eleito, mulher de Jesus?) e as hesitações espirituais e religiosas de várias personagens, perdidas num mundo onde a violência explode a cada segundo (quer seja nas ruas de Nova Iorque, quer seja numa casa de Jerusalém ou numa rua de Bagdad), e conseguir por igual criar esse clima de ameaça latente, de confronto permanente, é obra de evidente mestria. Nesse aspecto, Ferrara é um verdadeiro “autor”, um cineasta com um universo pessoal singular e uma forma de o apresentar muito particular. Tem não só um “estilo” (as suas filmagens das ruas de Nova Iorque e dos edifícios, focados em “contra picado”, em travelings envolventes que se vão diluindo uns nos outros) como também um olhar, um sentir, uma temática muito própria, ainda que muito próxima também de alguns outros ítalo-americanos (como Scorsese, cuja carreira se aproxima de termas muitos semelhantes, inclusive com uma “Última Tentação de Cristo” que provocou igualmente grande celeuma).
Deve dizer-se, aliás, que este “Mary” não é um filme perfeito, mas se aproxima muito da obra-prima, mesmo contando com os seus desequilíbrios e aparentes deslizes. Num filme onde se reivindica a condição e a fragilidade do “humano”, em oposição à perfeição do “divino”, nada mais natural e coerente que um filme “humano”, deixando a descoberto as suas asperezas, mas igualmente a sua busca de perfeição. Há neste filme uma procura desesperada da Fé e da Graça de um Sinal que dê aos homens algo a que se agarrarem num momento de particular incerteza na condição humana. Por isso são de tal forma tocantes as buscas, por caminhos tão diversos, de Marie Palesi, Tedodore Younger, Elizabeth Younger e Tony Childress. Sem uma resposta absoluta, sem fazer vingar uma tese, antes derivando entre várias respostas que umas às outras parecem suceder. Já repararam na designação de cada personagem, onde o jovem e a criança transitam de nome em nome, enquanto do ecrã se assiste ao dramático nascimento de um bebé que vem doente, mas que todos tentam salvar, como se da sua vida dependesse a salvação individual de cada personagem e também a salvação da espécie? Repararam ainda que uma das personagens se chama Gretchen, possível alusão à Gretchen do “Fausto” de Goethe, “a perfeição encarnada em mulher, um princípio metafísico, uma criação idealizada pela sua simplicidade e beleza, a inspiração de um amor divino.”
Sobre este filme de uma admirável simplicidade de escrita e de uma invulgar complexidade de percepção (que grande parte da critica portuguesa demonstrou estar acima da média, pois nem de perto nem de longe a atingiu), gostaria de terminar com uma citação de João Lopes. “No limite, trata-se de filmar uma arquitectura de solidões em que cada um procura a maneira mais justa de dizer “eu”. Não há muitos filmes contemporâneos tão puros e tão radicais.”

MARIA MADALENA (Mary), de Abel Ferrara (EUA, Itália, França, 2005); com Juliette Binoche, Forest Whitaker, Matthew Modine, Heather Graham, e ainda Jean-Yves Leloup, Amos Luzzatto, Elaine Pagels, eles próprios. 83 min; M/ 12 anos.

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