Quase sem se dar por isso, surgiu no Quarteto, em reposição, “A Rapariga do Baloiço Vermelho”, um filme de Richard Fleischer, realizador recentemente falecido, que nunca conheceu os favores da crítica e nunca foi considerado um grande, mas que o foi na realidade. A visão de “A Rapariga do Baloiço Vermelho” será suficiente para demonstrar a importância de um cineasta que não terá tido, é certo, uma carreira muito regular, sobretudo na década de 70, mas que, apesar disso, possuia um conjunto de filmes indubitavelmente importantes, onde transparece uma temática muito própria e um olhar pessoal que, creio poder dizê-lo, fazem dele um verdadeiro "autor".
Falemos um pouco de “The Girl in the Red Velvet Swing”, datado de 1955, e que é um dos meus filmes preferidos de Fleischer. É a sua primeira incursão pelos arquivos do mundo do crime. Trata-se da adaptação a cinema de um caso verídico, ocorrido no início do século. Stanford White era um conhecido arquitecto de Nova Iorque. Um dia cruza-se com uma jovem bailarina de musical, Evelyn Nesbit, e entre ambos surge uma história de amor tempestuosa, mas de curta duração. White era casado, e, procurando embora apadrinhar a rapariga, tenta evitar um prolongamento doloroso da situação. Entretanto, Harry Thaw, um jovem milionário excentrico, egoista e revanchista, e mesmo algo perturbado psiquicamente, lança-se à conquista de Evelyn Nesbit numa compita de rivalidade que irá terminar em tragédia.
O filme, rodado em meados da década de 50, não beneficiou de ventos favoráveis ao desenvolvimento desta história algo soturna. O clima de censura, mesmo de auto censura, não permitiu a Fleischer e aos seus argumentistas irem mais longe e testemunharem na obra alguns outros aspectos da personalidade de Harry Thaw que viriam a ser provados em tribunal. Sabe-se que, além de impotente, era dado a práticas muito pouco recomendáveis, e que tinha já sido preso por outros graves crimes, como o rapto de menores, a quem seviciava a seu belo prazer.
Mas, mesmo assim, o filme é um requisitório implacável contra a hipocrísia dominante, que se estendia ao próprio poder judicial. A forma como o julgamento de Thaw é conduzido leva o criminoso a ser poupado à pena de morte e mesmo a ser libertado pouco tempo depois, após passar alguns meses numa cela dourada de um qualquer hospício. O poder do dinheiro e a influência do nome das grandes famílias conduziram ao que se pode considerar, neste caso, um desenlace típico. Richard Fleischer consegue dar esse ambiente de decomposição moral com uma evidente subtileza e um grande elegância de estilo. Creio mesmo não errar muito se disser que “A Rapariga do Baloiço Vermelho” é uma das obras mais perfeitas e mais interessantes de toda a carreira deste cineasta.
Considerada também por ele próprio como uma das suas melhores criações, “The Girl in the Red Velvet Swing” motivou longas pesquizas em redor do caso que se procurava ficcionar e a que o realizador pretendeu ser o mais fiel possível. A reconstituição de época é notável, pela autenticidade dos ambientes, pela cor da fotografia, pela excelência do guarda-roupa. O colorido original do filme, rodado em Cor De Luxe, sujeito a uma deteriorização de cor muito forte, comum a diversos títulos da Fox desta época, era verdadeiramente notável.
História de amor que se entrelaça intimamente com o "suspense" de um "filme de tribunal", esta obra de Fleischer esbate as fronteiras entre o melodrama e o "thriller", entre o filme de amor e o drama de características sociais, impondo-se como um momento de eleição da cinematografia norte-americana dos anos 50.
Entre os intérpretes, o destaque vai para Farley Granger na composição da figura de Harry Thaw, o neurótico e obcecado milionário cujo comportamento verdadeiramente patológico ensombra toda a história. Mas também Joan Collins, na sua estreia no cinema americano, assina uma boa interpretação, como o próprio Ray Milland, aqui também ao nível do seu melhor (“Chamada para a Morte”, de Alfred Hitchcock, por exemplo).
Uma curiosidade a finalizar. Deste mesmo caso, retiraria o escritor norte americano Doctorow um romance que Milos Forman adaptaria ao cinema em 1981: “Ragtime”. Interessante seria estabelecerem-se as comparações e verificar a forma como ambos abordaram este episódio.
A RAPARIGA DO BALOIÇO VERMELHO (The Girl in the Red Velvet Swin), de Richard Fleischer (EUA, 1955);Argumento: Walter Reisch e Charles Brackett; Fotografia (Cor De Luxe e Cinemascope): Milton Krasner; Música: Hugo Friedhofer e Leigh Harline; Montagem: Willaim Mace; Direcção artística: Lyle Wheeler e Maurice Ransford; Cenários: Walter M. Scott e Stuart A. Reiss; Produção: Charles Brackett /20th Century Fox.; Intérpretes: Ray Milland, Joan Collins, Farley Granger, Luther Adler, Cornelia Otis Skinner, Philip Reed, Glenda Farrell, Frances Fuller, Gale Robbins, etc. Duração: 119 minutos. Exibição no cinema Quarteto (Lisboa).
RICHARD FLEISCHER
Fleischer foi um excelente realizador, injustamente menosprezado, a quem procurámos, há anos, fazer um pouco de justiça, recordando na TVI, em 1994, alguns títulos seus memoráveis: “A Rapariga do Baloiço Vermelho”, “Duelo na Lama”, “O Génio do Mal” (Compultion), “O Estrangulador de Boston” e “O Violador de Rillington” (10, Rillington Place) ou “Barrabás”. Creio que era um conjunto de filmes que permitia ter uma ideia segura deste talentoso cineasta que durante várias décadas honrou o cinema.
Richard Fleischer nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, em 8 de Dezembro de 1916. O seu pai foi o célebre "cartoonista" Max Fleischer, o criador de desenhos animados como Betty Boop, Popeye, the Sailorman, e o director de um clássico da animação em longa metragem “As Aventuras de Gulliver”. Pode dizer-se que ele foi o grande rival de Walt Disney nas décadas de 40 e 50. Mas, apesar de ser um homem do cinema, Max Fleischer procurou que o seu filho tivesse uma outra carreira, chegando este a cursar medecina. A voz do sangue foi, porém, mais forte e Richard Fleischer abandonaria tudo pelo teatro, primeiramente iniciando-se como actor, para depois, a partir de 1937, dirigir uma companhia própria, a "Arena Players". Em 1942, parte para Hollywood, a convite da RKO, onde começa por realizar um conjunto de curtas metragens da série “This is America”.
A sua primeira longa metragem é de 1946, e chamava-se “A Child of Divorce”. Stanley Kramer, sempre em busca de novos talentos, vai buscá-lo à RKO e entrega-lhe, em 1948, a realização de “So This is New York”. O seu primeiro grande êxito data de 1952, “The Narrow Arrow”, mas o seu nome ganha outro estatuto em Hollywwod quando dirige, em 1959, para Walt Disney, ironia das ironias!,” 20.000 Léguas Submarinas”.
A sua filmografia é particularmente notável até inícios da década de 70, estando repartida por obras dos mais variados géneros, mas quase sempre extremamente interessantes: "westerns" como “Duelo na Lama” ou “Bandido”, filmes de ficção científica, como “Viagem Fantástica” ou “À Beira do Fim”, aventuras como “Os Vikings” ou “A Grande Caçada”, musicais como “O Estravagante Dr. Doolitle”, mas sobretudo dramas e policiais que têm o crime por cenário previlegiado, como “Sábado Trágico”, “A Rapariga do Baloiço Vermelho”, “O Estrangulador de Boston”, “O Violador de Rillington”, ou “A Última Caçada”, este derradeiro título rodado parcialmente em Portugal, no Algarve, Albufeira, mais precisamente.
Os protagonistas de muitos dos filmes de Richard Fleischer, sobretudo aqueles que têm a ver com ambientes negros e densos, são quase sempre solitários e marginais, seres ambiguos, prisioneiros da sua condição.
Richard Fleischer, Tony Curtis e Richard H. Kline, durante a rodagem de "O Estrangulador de Boston"
A terminar, uma pequena história que se conta do tempo em que ele dirigiou Orson Welles, em “O Génio do Mal”, e aparecida em várias entrevistas. Richard Fleischer confessava que Orson Welles era o seu realizador preferido e tinha “Citizen Kane” como o melhor filme de sempre. Estava excitadisismo, e simultaneamente aterrado, por ir dirigir este verdadeiro mito, cujo mau génio era também por demais conhecido. De resto, Orson Welles gostaria muito de ter dirigido este filme e encontrava-se ressabiado por não ter sido convidado, senão como actor. Mas as coisas lá foram andando até que um dia, durante as filmagens de um novo plano, Richard Fleicher dá as indicações: "Faz isto assim assim, e depois sai pela direita". Orson Welles diz que lhe "dá mais jeito sair pela esquerda". Fleischer explica: "A câmara vai acompanhá-lo e eu só tenho cenário para a direita". Welles volta á carga: "Se fosse eu a dirigir, tinha mandado construir cenário também para a esquerda, e assim já poderia sair por aí." Fleischer faz uma pausa, e atira: "É por essa razão que sou eu que estou a realizar, e não você." Orson Welles avaliou as palavras de Fleischer e acabou por aceitar sair pela direita.
(Nascimento: Brooklyn, N.Y., 8 de Dezembro de 12.1916; Faleceu a 25 de Março de 2006, em Woodland Hills, Los Angeles, California)
1943: AIR CREW, de Larry O'Reilly (curta metragem) argumentista
1944: MEMO FOR JOE (curta metragem)
1946: CHILD OF DIVORCE (Filhos do Divórcio)
1947: BANJO
1948: BODYGUARD (O Meu Guarda-Costas)
DESIGN FOR DEATH
SO THIS IS NEW YORK
1949: THE CLAY PIGEON (O Pombo de Barro)
FOLLOW ME QUIETLY (Segue-me em Silêncio)
MAKE MINE LAUGHS
TRAPPED (Fuga para a Morte)
1950: ARMORED CAR ROBBERY (Brigada Criminal)
1952: THE HAPPY TIME (Maldita Primavera)
THE NARROW MARGIN (Força Secreta)
1953: ARENA
1954: 20,000 LEAGUES UNDER THE SEA (20.000 Léguas Submarinas)
1955: THE GIRL IN THE RED VELVET SWING (A Rapariga do Baloiço
Vermelho)
VIOLENT SATURDAY (Sábado Trágico)
1956: BANDIDO (Bandido)
BETWEEN HEAVEN AND HELL (Entre o Céu e o Inferno)
1958: THE VIKINGS (Os Vikings)
1959: COMPULSION (O Génio do Mal)
THESE THOUSAND HILLS (Duelo na Lama)
1960: CRACK IN THE MIRROR
NORTH TO ALASKA
1961: THE BIG GAMBLE (A Grande Caçada)
1962: BARABBAS/BARABBA (Barrabas)
1966: FANTASTIC VOYAGE (A Viagem Fantástica)
1967: DOCTOR DOLITTLE (O Extravagante dr. Dolittle)
1968: THE BOSTON STRANGLER (O Estrangulador de Boston)
1969: CHE! (Che!)
1970: 10 RILLINGTON PLACE (O Violador de Rillington)
TORA! TORA! TORA! (Tora!Tora!Tora!)
1971: THE LAST RUN (A Última Fuga)
SEE NO EVIL ou BLIND TERROR (A Ameaça)
1972: THE NEW CENTURIONS (Os Centuriões do Século XX)
1973: THE DON IS DEAD/BEAUTIFUL BUT DEADLY
SOYLENT GREEN (À Beira do Fim)
1974: MR. MAJESTYK (Mr. Majestyk)
THE SPIKES GANG
1975: MANDINGO (Mandingo)
1976: THE INCREDIBLE SARAH (A Incrivel Sarah)
1978: CROSSED SWORDS ou PRINCE AND THE PAUPER (O Principe e o
Pobre)
1979: ASHANTI (Ashanti)
1980: THE JAZZ SINGER (O Cantor de Jazz)
1983: AMITYVILLE 3-D/AMITYVILLE: THE DEMON (Amityville 3)
TOUGH ENOUGH (O Mais Duro do Texas)
1984: CONAN THE DESTROYER (Conan, o Destruídor)
1985: RED SONJA (Kalidor, A Lenda do Talismã))
1987: MILLION DOLLAR MYSTERY
1989: CALL FROM SPACE
Durante uma entrevista que me concedeu em 1979, Richard Fleischer autografou foto. Uma relíquia que muito prezo, pois nessa altura não tinha ainda merecido as entusiasticas críticas e o reconhecimento de homens como João Bénard da Costa. Mais vale tarde, que nunca...
2 comentários:
Lá iremos então ver "A Rapariga..."
Infelizmente, esta reposição passou-me ao lado. Ém qualquer caso, deve salientar-se que o Quarteto tem efectuado reposições interessantíssimas. Dei por mim a rever (pela enésima vez) lá há poucos meses o "otto e mezzo". É daqueles que nunca cansa... :-)
O que vale é que sempre terei o "profession: reporter" no dia 20 para me redimir desta falha..
Abraço!
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