“Ye Yan” (Os Inimigos do Império), do chinês Feng Xiaogang, parte de uma adaptação livre da tragédia “Hamlet”, de William Shakespeare, transpondo-a para os tempos caóticos do século X (entre 907 e 960), na China, num período da Dinastia Tang em que existiam Cinco Dinastias e Dez Reinos. Para quem viu “A Maldição da Flor Dourada”, de Zhang Yimou, as semelhanças não passarão despercebidas. Trata-se de novo de um conflito familiar que envolve uma luta pelo poder, desta feita protagonizada por um Imperador que assassinara o irmão para assim conseguir chegar ao poder, uma Imperatriz que está apaixonada pelo Príncipe, filho do seu ex marido, mas não seu, e que aceita casar com o cunhado para se salvar e poupar o legítimo herdeiro, e ainda por um numeroso séquito de ardilosos conspiradores e inocentes amantes. Ministros, generais, filhos e filhas de ministros, todos os seus destinos se entrelaçam neste jogo mortal que tem como fito o trono do Império.
Um dia, depois de muitas armadilhas e traiçoeiras ciladas, com muitos duelos de uma olímpica beleza e proverbial agilidade, com os guerreiros a esgrimir na terra e no ar, evoluindo por entre espadas, lanças e punhais que se cruzam e descruzam e vão provocando rios de sangue-vermelho-vivo, o Imperador resolve oferecer um banquete, num dia que o Camareiro-mor não acha o mais auspicioso para semelhante ocorrência. Mas como as vontades do Imperador são para cumprir, assim seja. E assim foi que num espaço de um palco frente ao trono do Império, se sucederam as mortes, com um compasso feroz, marcado pela cobiça dos homens e executado através de múltiplos expedientes, salpicados por fatalidades e equívocos sem retorno. A Imperatriz tenta envenenar uns, mas acaba por ver desviada a taça, e a partir daí o morticínio é total. No palco desse jogo de poder nefasto, jazem corpos que tombam num bailado fúnebre.
O filme é basicamente mais uma meditação sobre a febre do poder que tudo corrói e corrompe. O talento de Feng Xiaogang é inequívoco, ainda que uns pontos abaixo da genialidade de Zhang Yimou. Será aliás curioso comparar como dois filmes tão semelhantes quanto ao seu argumento, podem ser tão diferentes, mesmo contraditórios, quanto à estética, ao ritmo, ao estilo de ambos os cineastas. Numa escola de cinema, mostrar “A Maldição da Flor Dourada” e “Os Inimigos do Império” um a seguir ao outro, é uma boa maneira de “explicar” o que é um estilo, um tom pessoal, um olhar diferente. Feng Xiaogang é mais denso, mais soturno, mais nocturno nas suas imagens. Mais lento na forma como conduz a obra. Mais “intelectualizado”, mais “artístico”, sem que nada disso sejam virtudes só por si. Como já dissemos, preferimos a limpidez kurosaweana (e fordeana) de Zhang Yimou. Não é por querer ser mais “intelectual” que se é melhor.
O filme é basicamente mais uma meditação sobre a febre do poder que tudo corrói e corrompe. O talento de Feng Xiaogang é inequívoco, ainda que uns pontos abaixo da genialidade de Zhang Yimou. Será aliás curioso comparar como dois filmes tão semelhantes quanto ao seu argumento, podem ser tão diferentes, mesmo contraditórios, quanto à estética, ao ritmo, ao estilo de ambos os cineastas. Numa escola de cinema, mostrar “A Maldição da Flor Dourada” e “Os Inimigos do Império” um a seguir ao outro, é uma boa maneira de “explicar” o que é um estilo, um tom pessoal, um olhar diferente. Feng Xiaogang é mais denso, mais soturno, mais nocturno nas suas imagens. Mais lento na forma como conduz a obra. Mais “intelectualizado”, mais “artístico”, sem que nada disso sejam virtudes só por si. Como já dissemos, preferimos a limpidez kurosaweana (e fordeana) de Zhang Yimou. Não é por querer ser mais “intelectual” que se é melhor.
Mas é evidente igualmente que este é um filme fascinante, inclusive por essa necessidade de se afirmar mais reflexivo. Desde as primeiras imagens que Feng Xiaogang aproxima a sua narrativa do palco teatral. O seu Príncipe, angustiado pelo que vai no palácio, afasta-se para longe da corte e vai aprender arte de representação, utilizando máscaras e túnicas brancas que tornam todos os actores iguais. Explica-se mesmo que representar com máscara é que é a autêntica forma de representar, pois se torna mais difícil mostrar as emoções. É ai que os primeiros enviados do Imperador usurpador o vão tentar assassinar pela primeira vez. Aí se vai iniciar o bailado bélico que acompanha toda a obra. Aí principia igualmente a “representação” ostensiva desta tragédia que se envolve num melodrama passional de umas proporções de tal forma excessivas que chega a surpreender. Feng Xiaogang não recusa um plano mais extenso (o longo travelling acompanhando o caminhar da Imperatriz, de costas!) ou uma fixidez de uma duração insuspeita (vários exemplos ao longo do filme). Mas a estes seguem-se cenas de um ritmo avassalador, verdadeiros ballets organizados em função de lutas corpo a corpo, onde a beleza, a brutalidade, a elegância e a violência se cruzam (há muito de “O Tigre e o Dragão” nesta obra que é produzida por um dos responsáveis pela coreografia do filme de Ang Lee).
O que mais impressiona nesta obra é objectivamente a forma como o realizador cria uma atmosfera quase doentia, patológica, através de ambientes pesados e sombrios, jogos de luzes e sombras, cores densas e magoadas, cenários sumptuosos que oprimem, e uma “encenação” (os franceses chamam-lhe “mise-en-scène” com muito rigor) que vai buscar influência ao teatro e o transporta com eficácia e rigor para a narrativa cinematográfica que, não descolando do estilo “wuxia”, não deixa de ser uma obra de grande beleza e severidade estética.
Conhecido internacionalmente como “The Banquet” esta obra de Xiaogang Feng, que conta com interpretações de Ziyi Zhang (excelente, e continua a ser uma das mais belas presenças do cinema asiático) e Daniel Wu, possui uma admirável fotografia que ajuda a criar esse clima poético de viciada decadência moral, sendo ainda o todo muito ajudado pela direcção artística e o guarda roupa de uma qualidade estética invulgar.
O que mais impressiona nesta obra é objectivamente a forma como o realizador cria uma atmosfera quase doentia, patológica, através de ambientes pesados e sombrios, jogos de luzes e sombras, cores densas e magoadas, cenários sumptuosos que oprimem, e uma “encenação” (os franceses chamam-lhe “mise-en-scène” com muito rigor) que vai buscar influência ao teatro e o transporta com eficácia e rigor para a narrativa cinematográfica que, não descolando do estilo “wuxia”, não deixa de ser uma obra de grande beleza e severidade estética.
Conhecido internacionalmente como “The Banquet” esta obra de Xiaogang Feng, que conta com interpretações de Ziyi Zhang (excelente, e continua a ser uma das mais belas presenças do cinema asiático) e Daniel Wu, possui uma admirável fotografia que ajuda a criar esse clima poético de viciada decadência moral, sendo ainda o todo muito ajudado pela direcção artística e o guarda roupa de uma qualidade estética invulgar.
OS INIMIGOS DO IMPÉRIO
Título original: Ye Yan ou Banquet
Realizador: Feng Xiaogang (China, 2006); Argumento: Chiu-Tai An-Ping, Sheng Heyu; Música: Tan Dun; Fotografia (cor): Zhang Li; Director de cenas de acção: Yuen Woo Ping; Montagem: Miaomiao Liu; Direcção artística: Timmy Yip; Guarda-roupa: Timmy Yip; Coreografia: Wang Yuanyuan; Departamento de arte: Li Ji Qing; Som: Danrong Wang; Efeitos visuais: Phil Jones, Tracy Lefler, Persis Reynolds, Sarah Wormsbecher; Produção: John Chong, Zhonglei Wang, Woo-ping Yuen; Companhias de produção: Huayi Brothers & Taihe Film Investment Co.
Intérpretes: Ziyi Zhang (Imperatriz Wan), Daniel Wu (Principe Wu Luan), Xun Zhou (Qing Nu), You Ge (Imperador Li), Jingwu Ma (Ministro), Xiaoming Huang (Filho do Ministro), etc.
Duração: 131 minutos; Distribuição em Portugal: Vitória Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Filmagens: Setembro de 2005 até Fevereiro de 2006, em Beijing, Montanhas de Altay, Xinjiang; "Mar de Bamboo", Zhejiang; Orçamento: 20 milhões de dólares.
Feng Xiaogang é um dos mais cotados realizadores chineses da actualidade. Nascido em Beijing, em 1958, Xiaogang é filho de um professor de um colégio do Partido Comunista e de uma enfermeira. A sua formação cinematográfica foi adquirida na televisão. Primeiro como assistente de produção, omo argumentista, como pintor de cenários num grupo teatral, etc. Em 1991 adaptou a televisão um romance popular sobre emigração chinesa nos EUA, de que resultou uma série de TV muito popular, "Beijingers in New York", estreada na China em 1992. Rapidamente surgiu o sucesso, e outras séries que estabelecem um novo género de teledramáticos na China "Hesui Pian (贺岁片)" ("New Year Celebration Movies"): “Dream Factory” (Jiafang yifang, 1997), “Be There or Be Square” (Bujian busan, 1998), “Sorry, Baby” (Meiwan meiliao, 1999) ou "A Sigh” (Yisheng tanxi, 2000). No cinema o seu reconhecimento dá-se com “Big Shot's Funeral”, “A Sigh” e, sobretudo, “Cell Phone”, afirmando um cineasta um pouco diferente de camaradas como Chen Kaige ou Zhang Yimou. Feng Xiaogang é casado com a actriz chinesa Xu Fan. Nos seus filmes Ge You é a sua actriz fetiche.
Título original: Ye Yan ou Banquet
Realizador: Feng Xiaogang (China, 2006); Argumento: Chiu-Tai An-Ping, Sheng Heyu; Música: Tan Dun; Fotografia (cor): Zhang Li; Director de cenas de acção: Yuen Woo Ping; Montagem: Miaomiao Liu; Direcção artística: Timmy Yip; Guarda-roupa: Timmy Yip; Coreografia: Wang Yuanyuan; Departamento de arte: Li Ji Qing; Som: Danrong Wang; Efeitos visuais: Phil Jones, Tracy Lefler, Persis Reynolds, Sarah Wormsbecher; Produção: John Chong, Zhonglei Wang, Woo-ping Yuen; Companhias de produção: Huayi Brothers & Taihe Film Investment Co.
Intérpretes: Ziyi Zhang (Imperatriz Wan), Daniel Wu (Principe Wu Luan), Xun Zhou (Qing Nu), You Ge (Imperador Li), Jingwu Ma (Ministro), Xiaoming Huang (Filho do Ministro), etc.
Duração: 131 minutos; Distribuição em Portugal: Vitória Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Filmagens: Setembro de 2005 até Fevereiro de 2006, em Beijing, Montanhas de Altay, Xinjiang; "Mar de Bamboo", Zhejiang; Orçamento: 20 milhões de dólares.
Feng Xiaogang é um dos mais cotados realizadores chineses da actualidade. Nascido em Beijing, em 1958, Xiaogang é filho de um professor de um colégio do Partido Comunista e de uma enfermeira. A sua formação cinematográfica foi adquirida na televisão. Primeiro como assistente de produção, omo argumentista, como pintor de cenários num grupo teatral, etc. Em 1991 adaptou a televisão um romance popular sobre emigração chinesa nos EUA, de que resultou uma série de TV muito popular, "Beijingers in New York", estreada na China em 1992. Rapidamente surgiu o sucesso, e outras séries que estabelecem um novo género de teledramáticos na China "Hesui Pian (贺岁片)" ("New Year Celebration Movies"): “Dream Factory” (Jiafang yifang, 1997), “Be There or Be Square” (Bujian busan, 1998), “Sorry, Baby” (Meiwan meiliao, 1999) ou "A Sigh” (Yisheng tanxi, 2000). No cinema o seu reconhecimento dá-se com “Big Shot's Funeral”, “A Sigh” e, sobretudo, “Cell Phone”, afirmando um cineasta um pouco diferente de camaradas como Chen Kaige ou Zhang Yimou. Feng Xiaogang é casado com a actriz chinesa Xu Fan. Nos seus filmes Ge You é a sua actriz fetiche.
7 comentários:
Fiquei morta de vontade ver o filme. Belo texto e ainda me seduziu mais do que o que fizeste para "A maldição da flor amarela" que li religiosamente como a este. E há, acima, uma imagem dentre todas deslumbrante, de uma poesia indiscutível. Beijo
belo texto - excelente texto como sempre.socrates estaria a mais apesar dos malefícios
Prabens á RTP pela transmissão do documentário "AU COUER DE L´EUROPE". Um documentário que retrata os trabalhos de José Manuel Durão Barroso à frente da Comissão Europeia(curioso ser Belga,ainda que com participação da RTP).
Em Relação ao filme parece-me ser um bom filme embora viva em Castelo Branco e só temos uma sala
por aqui 3 semanas de Piratas das Caraibas assim fica complicado po resto.
kusosaweana?...
kurosaweana, de Akira Kurosawa. Um neo-logismo. Esperemos que nao leve a mal.
Este filme tem uma interpretação da Zhang Yi de um belíssimo poema chinês tipíco da dinastia Tang 北方有佳人 (bei fang you jia ren), um momento simplesmente único de tanta pureza e beleza...
Agrada-me que o Lauro tenha gostado de The Banquet. Por um acaso -de oportunidade e graças à gentileza da Vitória Filmes / Ecofilme- foi o filme de abertura do 3º Festival de Cinema da Covilhã, que se realizou este ano de 11-19 Maio.Para o ano, e se não ocorrerem mais tentativas de boicote, gostaria de poder exibir, com a sua presença, o "saudoso" Manhã Submersa.
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