NO RIO, NA CINELÂNDIA
No Rio de Janeiro, a Cinelândia é um mundo. Um fascinante mundo com passado. Foi durante muitas décadas o centro nevrálgico da cidade, com teatros, cinemas, hotéis, cafés, restaurantes, comércio do mais fino e alguns edifícios institucionais. Cinelândia não é nome oficial, é cognome, mas toda a gente conhece o local por esse epíteto. Trata-se de uma zona central do Rio, que tem na base a bela Praça Floriano, e que engloba, segundo os roteiros turísticos, a área que vai desde a Avenida Rio Branco até a Rua Senador Dantas, e da Evaristo da Veiga até a Praça Mahatma Gandhi. Antigamente, no século XVIII, existia por ali o Convento da Ajuda, demolido no início do século XX. Ainda permanecem, lá no alto, resto de um convento de Santo António.
Foi nos anos 30 desse século que se pensou criar no Rio uma zona de lazer que fizesse concorrência à celebrada Times Square nova-iorquina. O mentor desta ideia foi um espanhol a viver no Brasil, Francisco Serrador, que aproveitou o nobilitado espaço da Praça Floriano, rodeado por edifícios magníficos, de estilos variegados, mas todos eles de sumptuosa inspiração. Há os ecléticos, como o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, o antigo Supremo Tribunal Federal (actualmente Centro Cultural da Justiça Federal) e a Câmara de Vereadores. Há os Neoclássicos, como a Biblioteca Nacional. Há os de Art Noveau e Art Deco, bem representados pelos edifícios Wolfgang Amadeus Mozart (conhecido como o “Amarelinho” e que, no rés-do-chão, tem uma conhecida cervejaria, ao lado de outras de cores diferentes, a “Vermelhinha” e a “Verdinha”) e o Odéon, agora cinema e café. Mas o idealizador do espaço não fica incógnito e possuiu igualmente nesta área um originalíssimo edifício circular construído em 1944, que ostenta o seu nome, Francisco Serrador.
No centro da Praça, vê-se o monumento erigido em homenagem ao Marechal Floriano, inaugurado em 1910. Por isso, manifestações políticas e culturais nunca trocaram esta praça por nenhuma outra. Aqui se cristalizou grande parte da História do Brasil. Numa das ruas laterais, de nome Luís de Camões, pode ver-se o Real Gabinete Português de Leitura.
Um dos edifícios que recordam a opulência majestática dos tempos do Império, o Centro Cultural da Justiça Federal é um espaço agora dedicado ao turismo e ao lazer, com exposições de grande qualidade, tendo ao lado outros prédios igualmente dedicados a exposições. Andando pelas ruas da Cinelândia, com a Eduarda, e com a amiga Ida Rebelo a fazer de cicerone, descobri uma curiosa exposição sobre a “a descoberta do Brasil” em 1958, quando ganhou o campeonato do mundo, na Suécia. Pelé era a descoberta, mas muitos preferiram Garrincha. E não esquecem o Vavá que cá pelo burgo até deu nome a café, ainda hoje de tertúlias. Mas a exposição aposta na fotografia e no vídeo, e vai apresentando o tema, escadaria acima, com fotografias recortadas dos génios da bola. Não resisti a um encontro mais aproximado. Também por aqueles lados a exposição de uma artista plástico que trabalha com restos de lixo, cartão, papel, lata, materiais deste jaez, que encontra em buscas pelas ruas e depósitos. É dele a favela que servia de genérico a uma telenovela brasileira que agora terminou na Sic, “Duas Faces”. O seu trabalho reabilita o desperdício e os resíduos, apresenta uma originalidade pura, uma ternura certa, uma ironia que rodeia os mais desprotegidos e os acarinha. Vale a pena ver.
Depois, antes de ir ao velho teatro Rival, agora adaptado a café concerto, por onde passa o melhor da MPB, ouvir o Grupo “Mulheres de Hollanda”, homenagear o grande Chico Buarque, entrámos do também modernizado Odéon, onde no ecrã passa o filme sobre o mundial de 58 (os brasileiros em termos de futebol vivem agora do passado: enquanto lá estive perderam com a Venezuela, a Colômbia e empataram com a Argentina, em jogos péssimos!) e na esquina se encontra um simpático e acolhedor café, muito parisiense. A Ida pediu para fotografar parcialmente o cardápio escrito na louça. E aproveitar para captar uma recordação do encontro.
Mas, fabulosa, inigualável, sem palavras para ser descrita é a “Confeitaria Colombo”, na rua Gonçalves Dias. Ainda dizem mal dos comerciantes. Há alguns com indiscutível alma de artista. Os portugueses Joaquim Borges de Meireles e Manuel José Lebrão, que mandaram construir este espaço no ano de 1894, obedecendo ao estilo da “belle époque”, e hoje “tombado” Património Histórico e Artístico do Estado do Rio de Janeiro, são exemplos perfeitos de comerciantes exigentes que apostaram no melhor e por isso ainda hoje são lembrados. O edifício é espantoso. A folhinha que o “maître” me disponibiliza face ao meu entusiasmo, afirma que “a decoração art nouveau de 1913, os amplos salões com descomunais espelhos belgas, as molduras e vitrinas em madeira de jacarandá, as bancadas de mármore italiano e o mobiliário compõem um ambiente de “sofisticada beleza”. Verdade. Compreende-se que príncipes e aristocratas, políticos e intelectuais, escritores, poetas, músicos, artistas plásticos por ali se tenham perdido ou encontrado em tardes e noites de tertúlias admiravelmente emolduradas pelo brilho e a luz dos candeeiros e o resplandecer dos espelhos. Quando se entra, e não se é um cliente já habitual da casa, a entrada é de patego a olhar em redor de si. Fiquei numa mesa no centro, junto da coxia por onde entravam os clientes, muitos turistas. O olhar era maravilhado, quando o empregado, de negro vestido, lhes estendia a carta para escolherem o que queriam tomar e os conduzia ao lugar estabelecido. As pessoas avançam intimidadas, receosas, penetram num mundo de que desconheciam a existência. Parecem recear que tudo lhes tombe na cabeça. A um canto um pianista toca. Sucessos românticos. Idosas de uma abastada burguesia, solicitam com um gesto e um sussurro, um tema especial que lhes recorde que ainda estão vivas. Sorriem agradecidas. Os empregados de camisa branca e de aventais laranja cirandam entre as mesas, trazem-nos um chá magnífico e exemplares sortidos de pastelaria fina. Os aventais são laranja e nas vitrinas das portas, varias fotografias da recente visita do nosso Presidente Cavaco Silva. Um olhar sorridente e satisfeito. As mesas são de tampo de mármore e as cadeiras de madeira com as costas de palhinha. Tudo impecável. Pela sala enorme, um pouco de tudo. Dos veteranos aos neófitos. Velhinhas amparadas por vetustas empregadas ou familiares, casais de namorados, grupos de jovens de sorrisos abertos, administrativos a sair do emprego, artistas sempre, escritores, estudantes, jovens leitores – a minha frente um lê “Os favoritos da Fortuna”, de Colleen McCullough. Lê e por vezes olha em redor, saboreando a leitura e o ambiente. Pensa cruzar-se com Olavo Bilac. Não lê definitivamente “A Balada do Café Triste”, de Carson McCullers, apesar da atmosfera ter o seu quê de decadentista.
Na rua, os milhões que habitam o Rio, no cair da noite, avançam como formigueiro para as suas casas. Numa televisão do “verdinho” a Itália batia a França. No intervalo, os golos sofridos por Portugal da Suiça. Chove, uma aragem húmida que cai do céu. Ninguém usa chapéu-de-chuva. Estamos no Rio. De Janeiro. Que continua lindo. Apaixonei-me pela cidade na primeira vez que bordeei, ao fim da tarde, a lagoa Rodrigues de Freitas. Tinha acabado de descer do avião, em 1981, e o táxi conduzia-me a mim (e ao Fonseca e Costa) para o hotel. Havia uma Semana de Cinema Português com filmes nossos que íamos apresentar. No Rio, em São Paulo, em Brasília. Fiquei no Rio. Fico no Rio. Para sempre.
4 comentários:
Bonito texto que nos leva a viajar pelo Rio de Janeiro do passado e do presente...
Obrigada pela partilha de tantas coisas interessantes!
Querido Mr Movie, teu mapa do centro do Rio parece um pouco com aquele mapa-mundi do surrealismo, alguns locais ligeiramente deslocados, mas no geral é muito agradável ver tanto dito por um português, mais lisboeta do que outra coisa, sobre esta cidade, às vezes, execrada com ou sem razão.
Sobre a Colombo, meu querido, concordo com tudo e adoro o “olhar de patego”, é isso mesmo que se faz e que se vê estando lá, ainda que não seja a primeira vez. É muito especial. Sobretudo quando se pensa que ela foi ressuscitada, pois a empresa original faliu, fechando-se aquele espaço por um bom tempo no início da década de 90, sendo reaberta ainda nessa década, do mesmo jeito que era.
Como dado pitoresco, já que és o senhor do cinema para mim, foram lá filmadas várias cenas de um filme de que gosto por muitos motivos.
Trata-se da vida do Villa-Lobos, na pele do Antonio Fagundes, quando mais velho e na do Marcos Palmeira, quando jovem. O realizador é o Zelito Viana, que trabalhou com Glauber Rocha, e o filme é uma experiência quase exótica, e inesquecível, não só pela música original de Villa Lobos – no século XX, talvez o maior compositor erudito nacional - com arranjos do Paulo Moura, músico não-clássico de excelente qualidade.
Eu adoro ser cicerone na minha cidade (e em outras também) sobretudo quando o público é atento. :) De resto, as fotos (com a máquina da MEC) estão magníficas, excepcionais mesmo.
Vês, desta vez, li o texto até o fim, ainda que longo. Foi como um presente e soube muito bem.
Beijos de cá
Ida, eu vi (e tenho em DVD) o filme do Zelito Viana. Começa mal e acaba melhor, segundo a minha impressão, mas tem realmente a Colombo. De resto, foi bom ser ciceroneado por ti, aí e aqui, no blogue. Beijos lisboetas para a carioca.
Eu nem sei porque ainda me atrevo a te falar de filmes. Já sabes tudo, já viste tudo, já os tens todos. Devia ter me lembrado disso, mas me empolguei com teu texto.
Btw, tens resposta sobre literatura lá na outra casa.
Beijocas e bom domingo. Vontade de estar aí, bem longe daqui.
PS: Sobre o filme, a parte mais interessante, acho, são as experiências pelo Brasil afora e na selva amazônica, lembram-me Phillip Glass, por alguma razão. O início e o fim não me marcaram tanto, mas sim o retrato de um obstinado. Além de achar que os dois atores foram mt bem escolhidos.
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