segunda-feira, janeiro 19, 2009

CINEMA: A VALSA COM BASHIR

A VALSA COM BASHIR
Um cão corre para a objectiva, o mesmo é dizer que corre em direcção ao público. Vem bem de frente, olhos nos olhos do espectador. Olhos raiados de sangue, dentes afiados, boca a espumar de raiva e ódio. Um segundo cão junta-se-lhe, um terceiro, um vigésimo, um vigésimo sexto. O desenho (de Yoni Goodman , excelente!) é duro, agressivo, as cores limpas, azuis de noite, amarelos dourados de luzes, os transeuntes afastam-se à passagem da matilha, cadeiras de esplanadas derrubadas, uma mãe que puxa para si o filho que tem ao colo, a corrida é impressionante de vigor até que tudo se suspende: os cães olham uma janela no cimo de um prédio, onde um homem os olha igualmente e se interroga. É esse homem que procura, num bar perdido na noite, Ari Folman, um realizador (o realizador de “A Valsa com Bashir”), e lhe conta o sonho obsessivo que o não deixa dormir: vinte e seis cães que o perseguem, tal como a memória de uma guerra passada, onde interveio vinte anos antes. Assim começa “A Valsa com Bashir”, um longa-metragem de animação, dirigida de forma totalmente inesperada por um israelita, abordando o conflito que opõe judeus e árabes, há largos anos, no Médio Oriente. Esse amigo confessa a Ari Folman que não percebe o significado dos cães com que sonha e não recorda nada da guerra. Ari Folman também não se lembra da guerra por onde passara há vinte anos atrás e que ficou conhecida como Guerra do Líbano. O filme será uma procura dessa memória, invocando testemunhos de outros combatentes que tinham estado ao lado de Ari nesse conflito, sobretudo quando as tropas israelitas invadiram o Líbano e chegaram a Beirute, passando de caminho pelos massacres de Sabra e Chatila, que se tornaram tristemente célebres na altura e agora serviram de base de apoio para esta magnífica película de animação (que não é para crianças, mas sim “para adultos”, sem que a designação contenha qualquer referência a “sexo explicito”).
Convém, no entanto, recuar um pouco e situar historicamente os acontecimentos de que falamos. O Líbano tinha-se tornado, a partir de 1948, um país em constante estado de guerra civil, dado que possuía uma população muito heterogénea, composta por cristãos maronitas e muçulmanos, com entrada no conflito de países como a Síria ou Israel e a OLP, de Yasser Arafat. Cada um com ideias definidas sobre quem devia governar, e com os palestinianos furiosos pela sua expulsão da Jordânia, às ordens de Hussein. As alianças faziam-se e desfaziam-se, tão depressa era a Síria a aliada, como Israel, e no meio desta onda de violência descontrolada, que causava massacres de inocentes dos dois lados das barricadas, o próprio país se viu dividido em áreas de influência delimitadas. A luta levou a que a OLP se instalasse no sul do Líbano. Pode considerar-se que a guerra teve quatro momentos decisivos: entre 1975 e 1977, com combates e massacres entre as comunidades religiosas, e uma intervenção síria, a pedido do Parlamento Libanês; entre 1977 e 1982, caracterizada por uma intervenção de Israel no sul do Líbano, através do que ficou conhecido como “Operação Litani”; entre 1982 e 1984, com a invasão de Israel, a tomada de Beirute e a posterior intervenção das Nações Unidas; e entre 1984 e 1990, culminando com os Acordos de Taif, assinados na Arábia Saudita, onde foram criadas condições para o cessar-fogo em 1990. Massacres de católicos e de muçulmanos foi acontecimento que se tornou infelizmente banal, e poucos sabem quem começou esta guerra de guerrilha e de terrorismo insano. Cada facção aponta o inimigo como principal culpado e um observador isento tem dificuldade em julgar. Mas isso pouco importa para a análise do filme de Ari Folman, que é sobretudo um olhar retrospectivo sobre a entrada das tropas israelitas no Líbano, em 1982, e os massacres do sul da capital libanesa, entre 16 e 18 de Setembro. O massacre de Sabra e Shatila imolou centenas ou milhares (os números vão de 300 a 3.500, consoante o quadrante) de refugiados civis palestinos, numa acção perpetrada por milicianos cristãos maronitas, nos campos de Sabra e Shatila, então sob protecção de Israel. A opinião mundial voltou-se mais uma vez contra Israel e culpou o então ministro da defesa, Ariel Sharon, de ser pessoalmente responsável pela chacina, tendo falhado na protecção aos refugiados.
Sharon, quando candidato a Primeiro-ministro de Israel, lamentou as mortes e negou qualquer responsabilidade. A repercussão do massacre, entretanto, fez com que fosse demitido do cargo de Ministro da Defesa, na época.
Ari Folman foi um dos soldados israelitas que interveio na ocupação do Líbano, um dos que penetrou nas ruas da cidade, um dos que olhou o horror dos massacres, um dos que conheceu o pesadelo da guerra. A ele, como a milhões de outros soldados de qualquer guerra em qualquer parte do mundo, a memória acudiu para que a vida posterior fosse possível, e abafou as imagens do sofrimento. Chama-se a isso memória selectiva, a que enterra em zonas do subconsciente as recordações que ferem a existência do dia a dia. Há quem diga (muitos filmes o reafirmam continuadamente) que os soldados quando regressam a casa não sossegam em função das memórias traumáticas da guerra que viveram. Outros, como Ari Folman, comportam-se de maneira inversa: é a falta de recordações que os leva à inquietação e à procura desesperada do passado. De conversa em conversa com antigos camaradas de armas, o realizador vai recuperando as imagens perdidas, que figuram no filme como “flashbacks” de um puzzle que lentamente vai tomando forma. Ari Folman não vive obcecado pelas recordações, mas pela ausência delas. Diz: “Acho que é uma coisa muito pessoal. Acho que a maioria das pessoas suprime memórias dessa natureza por ser uma solução muito eficaz para a existência.” Aqui é a ausência dessas imagens que provoca a falha de consciência, o que é traumático. “Neste filme, sim. Mas apesar de tudo, as pessoas sobreviveram ao Holocausto. O que é que nós passámos em comparação com elas? Não é nada mau suprimir as imagens traumáticas. Mas quando vem tudo ao de cima, é preciso conseguir lidar com isso.”
Neste processo de recuperação de memória, Ari Folman, conhecido documentarista israelita, entrevista nove pessoas, sete das quais aceitam dar a cara, sendo que as duas restantes deram os seus depoimentos a ler a actores. A animação parte então da imagem real, trabalhada como desenho por uma equipa de técnicos de animação. Há quem precipitadamente afirme que se trata de um documentário em animação. Nada de mais errado, não pela técnica, mas pela pesquisa que o filme encerra. Não há nada de mais subjectivo do que a memória, logo não há nada que possa ser mais ficcionado do que esta obra. O que vemos e ouvimos são recordações traumáticas, muitas vezes recalcadas, logo possivelmente distorcidas, de experiências pessoais que não têm nada de comum e de objectivo. Esse possivelmente um os fascínios desta experiência, essa procura de uma objectividade possível, esse ressuscitar da história pessoal num quadro de História colectiva que se processa através de depoimentos que nem sempre coincidem, mas que lentamente se vão ajustando na memória de Ari Folman. A memória deste homem é reavivada por testemunhos exteriores a si, filtrados por experiências privadas diversas, que ele, todavia, vai de certa forma assimilando, fazendo suas. A recordação da chegada a uma praia, por exemplo, num oceano juncado de cadáveres, vai sendo progressivamente reavivada. Mas nada nos diz que se trate de uma reconstituição histórica correcta, mas sim de um puzzle cujas peças se vão ajustando com base em palavras ouvidas que encontram eco no subconsciente de Ari Folman. Nada de mais pessoal e intimista, nada de menos documental. Mas esse é seguramente um dos aspectos mais estimulantes desta pesquisa. Sobre essa cena da praia, que funciona como um “leit motiv”, o próprio realizador afirmou (ao “Sight & Sound”): "It should be hallucinatory but also realistic," e mais adiante, "We wanted to make a realistic scene in a very dreamy way, so that you would be confused until the very end about whether it really happened." "Waltz With Bashir'" é, por isso mesmo, um trágico documento “pessoal” sobre o horror da guerra, que um israelita assume com invulgar coragem e desassombro. Coragem que vai até final, quando, na derradeira sequência, a animação cede perante as imagens reais do brutal massacre. Da incansável procura do passado ressurge finalmente o passado. Um belíssimo filme de uma actualidade gritante. Quem nos dera que os palestinianos tivessem do seu lado a oportunidade, ou o desejo, de criarem obra idêntica. Razões não lhes faltarão certamente. E só da assunção das culpas por ambas as partes se poderá chegar a um entendimento possível, que reponha a paz na região. Que o cinema pode ser uma arma, “Valsa com Bashir” atesta-o.
A VALSA COM BASHIR
Título original: Vals Im Bashir ou Valse avec Bachir ou Waltz with Bashir
Realização: Ari Folman (Israel, Alemanha, França, EUA, 2008); Argumento: Ari Folman; Produção: Ari Folman, Serge Lalou, Gerhard Meixner, Yael Nahlieli, Roman Paul; Música: Max Richter; Montagem: Feller Nili; Direcção artística: David Polonsky; Direcção de Produção: David Berdah, Verona Meier; Departamento de arte: Ya'ara Buchman, Michael Faust, Asaf Hanuka, Tomer Hanuka; Som: Aviv Aldema; Efeitos visuais: Feller Eran, Nitzan Roiy; Animação: Yoni Goodman; Companhias de produção: Bridgit Folman Film Gang, Les Films d'Ici, Razor Film Produktion GmbH, Arte France, Hot Telecommunication, ITVS, Israel Film Fund, Medienboard Berlin-Brandenburg, New Israeli Foundation for Cinema and Television, Noga Communication - Channel 8; Intérpretes (vozes): Ron Ben-Yishai, Ronny Dayag, Ari Folman, Dror Harazi, Yehezkel Lazarov, Mickey Leon, Ori Sivan, Zahava Solomon, etc. Duração: 90 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 1 de Janeiro de 2009; Estreia mundial: 12 de Junho de 2008.

3 comentários:

spring disse...

Caro Lauro António!
O flme de Ari Forman abre decididamente novas portas ao documentarimo, sendo na verdade uma obra que convida à meditação sobre o que se passa no Medio-Oriente e como diz na sua crónica, a paz só é possível se as duas partes o desejarem. E nunca nos poderemos esquecer que o valor de uma vida é idêntico, seja ela palestina ou israelita.
Quanto ao Líbano todos sabemos como convém à Síria, que a ex-Suiça do Medio-Oriente não regresse ao passado e se torne num território próspero, onde habitem em paz as suas comunidades religiosas. "O Círculo da Mentira" de Volker Schlondorff foi uma obra que me veio à memória quando vi o filme de Forman.
Abraço cinéfilo
Rui Luís Lima

Filipe Machado disse...

Uma autêntica revolução do cinema de documentário. Uma visão completamente inovadora na forma de abordar as grandes questões que preocupam a humanidade. Grande filme!

Anónimo disse...

Bom dia,
Excelente filme, também falo dele algures (no degrau). Gostei muito de o "encontrar" aqui neste blog, vou ficar atenta.
Cumprimentos