terça-feira, junho 09, 2009

CINEMA: AMAZING GRACE

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AMAZING GRACE
Michael Apted não será “Ás” ou “Manilha”, mas tem sido quase sempre “Valete” (às vezes “Rei”) no baralho cinematográfico inglês (e americano, onde se integra facilmente). Nascido em 1941, formado na televisão, onde cumpriu dezenas de episódios de várias séries, desde os inícios da década de 60, tornou-se conhecido com filmes como “The Squeeze” (1977), “Agatha” (1979), “Coal Miner's Daughter” (1980), “Gorky Park” (1983), Gorillas in the Mist: The Story of Dian Fossey” (1988), “Moving the Mountain” (1994), “The World Is Not Enough” (1999), “Enigma” (2001) ou este “Amazing Grace” (2006). Foi ele que realizou o filme oficial do campeonato do mundo de futebol de 2006. Prepara agora mais um episódio de Nardia: “The Chronicles of Narnia: The Voyage of the Dawn Treader “(2010).
“Amazing Grace” não é um grande filme, anda longe disso, mas é uma obra interessante, realizada para comemorar os 200 anos sobre a abolição da escravatura em Inglaterra, e que aborda sobretudo a figura de William Wilberforce (Ioar Gruffudd) que se tornou o símbolo dessa luta. Hesitando de início entre uma carreira de padre e de polÍtico, Wilberforce acaba por ser eleito aos 21 anos para a Câmara dos Comuns, mantendo-se aliado de William Pitt (Benedict Cumberbatch), que brevemente se tornará no mais jovem Primeiro-ministro de toda a história inglesa (aos 24 anos). Ambos pugnam pela causa abolicionista, mas Wilberforce é o testa de ferro deste movimento que, quando começa a esboçar os seus primeiros protestos, quase não encontra ressonância na bem instalada sociedade esclavagista, que vive essencialmente do comércio de escravos com as Índias britânicas. Mas lentamente a causa começa a ganhar adeptos, entre os quais um velho capitão de um navio de transporte de escravos, John Newton (Albert Finney), que à sua conta diz ter transportado cerca de “20.000 fantasmas” no bojo nauseabundo o seu navio, onde se amontoavam seres humanos em condições tão degradantes que nem os animais suportariam. Entre fezes e vómitos, presos em cacifos infectos, onde não se podiam mover nem quase respirar, atravessavam oceanos para recompensa fácil de traficantes sem escrúpulos. No fim da sua vida, John Newton escreve uma autobiografia que causa perturbação, e leva outros políticos a tomarem posições contrárias às que sempre defenderam. Caso, por exemplo, de Lord Fox (Michael Gambon), um velho apoiante conservador, que num gesto espectacular resolve mudar de campo e assinar, em pleno Parlamento, a petição contra o comércio de escravos, juntando o seu nome aos mais de 300.000 que publicamente recusaram deitar açúcar no seu chá, rejeitando deste modo pactuar com esse tráfico medonho, que transformava o sangue dos escravos em açúcar que alimentava os bolsos dos comerciantes. O percurso das carreiras para as Índias Ocidentais (Antilhas ou Caraíbas) era constituído por três etapas: os barcos partiam dos portos ingleses para África cheios de mercadorias que aí eram deixadas, enchendo-se nesse momentos os porões de escravos negros que transportavam para os portos das Caraíbas (através da célebre “Middle Passage”), onde os que sobreviviam à viagem, eram vendidos, regressando os navios a Inglaterra carregados das especiarias produzidas nas Índias Ocidentais (especialmente o açúcar). Eram cem dias de viagem e de agonia, onde definhava mais de metade da carga humana inicialmente carregada em África.
Wilberforce liderava um grupo de doze personalidades que ficou conhecido como o “Abolition Committee”, cujas actividades parlamentares se iniciaram em 1787 e prosseguiram até à sua vitória final. Um dos mais aguerridos membros desse comité foi Thomas Clarkson (Rufus Sewell), dito “o Jacobino” pelos adversários que viam nele um aliado da Revolução Francesa. Outro dos mais conhecidos companheiros de caminhada de Wilberforce foi Oloudaqh Equiano (interpretado por Youssou N’Dour, músico e cantor senegalês), um escravo nigeriano que sobreviveu à tormenta da viagem, que descreve numa autobiografia que vendeu mais de 50.000 exemplares em dois meses. Nessa se contam não só as peripécias da jornada marítima, mas igualmente a forma como os escravos eram tratados à sua chegada às Índias Ocidentais: mantidos no navio alguns dias para serem lavados e recuperados para serem vendidos (os que se mantinham em forma, os outros eram deixados à sua sorte, até morrerem), oleados e passeados nus pelas ruas da cidade, até serem leiloados e vendidos. Nova jornada os aguardava até chegarem às plantações de cana-de-açúcar. O tema musical e hino religioso cristão, “Amazing Grace”, que dá o título ao filme, data dessa altura, e é uma criação precisamente de John Newton, tendo aparecido pela primeira vez na obra deste autor, “Olney Hymns”, em 1779.
Curiosamente, haveria de ser através de França que a abolição da escravatura chegaria a Inglaterra. Não por influência directa da Revolução, que até atrasou os trabalhos, pois a guerra entre os dois países fez unir fileiras em redor do Rei George III, e do seu filho, o Duque de Clarence (Toby Jones). Poucos no Parlamento gostavam de ser chamados de “Jacobinos”. O primeiro-ministro chegou a afirmar: “Ninguém se pode opor ao rei quando nas ruas de Paris corre sangue”. Clarkson chegou a advogar uma insurreição. Mas poucos o seguiram: “Quando a guerra chega, a oposição é facilmente chamada sedição.” Em 1793, ano em que a França declarou guerra a Inglaterra, era arriscado falar de direitos humanos sem se ser formalmente olhado como amigo da República Francesa. Mas Wilberforce continuou a sua luta, ainda que de forma mais comedida. Tanto mais que, entre os opositores ao abolicionismo, onde se destacavam Lord Tarleton (Ciarán Hinds) e o escocês Lord Dundas (Bill Paterson), lavrava a teoria de que se abandonassem o comércio das Índias Ocidentais, este seria rapidamente tomado de assalto pelos navios franceses, o que não deixaria de ser verdade.
Mas seria precisamente através de um pretenso boicote aos navios franceses que os ingleses haveriam de aceitar assinar a carta de abolição da escravatura. Em 1806, o advogado de assuntos marítimos, James Stephen, recentemente regressado das Índias, aproveitando esse movimento anglo-francês, faz passar um diploma que reduz em dois terços o tráfico de escravos nas linhas marítimas inglesas. O “Foreign Slave Trade Act”, aprovado a 23 de Maio, torna-se efectivo a 1 de Janeiro de 1807. Começa por ser visto como uma medida em tempo de guerra, contra Napoleão, Imperador de França, mas revela-se apenas uma cobertura legal para acabar com a escravatura, ainda que não totalmente durante alguns anos.
O filme de Michael Apted mostra-se correcto e esclarecedor, ainda que algo pesado e moroso na forma como expõe as ideias. Tem o mérito de não especular com o espectáculo fácil (não reproduz torturas e misérias, apenas dá delas referências orais), nem com o rodriguinho sentimental (o caso amoroso de Wilberforce com aquela que se tornaria sua mulher, Barbara (Romola Garai), é apenas um apontamento sugerido, bem como a doença do político que haveria de o vitimar em 1833). O tom dominante é o dos quadros de época, sobrecarregados de zonas sombrias e de pequenos pontos iluminados, a reconstituição é correcta, sem deslumbrar, mas o filme acaba por se impor pelo rigor com que aborda um tema que, infelizmente, não é do passado. A escravidão continua a existir em muitos países do mundo, num claro ultraje infamante ao que se chama civilização. O próprio cineasta declarou, aquando da estreia em Londres, em 2006, que a “escravatura continua a existir em vários países do mundo. Calcula-se em 27 milhões de escravos, a maioria trabalhadores escravos na Índia, Paquistão, Bangladesh e Nepal.”
Nota: o tema "Amazing Grace", que dá o nome ao filme, foi escrito por John Newton.

1
Amazing grace! how sweet the sound,
That saved a wretch like me!
I once was lost, but now am found;
Was blind, but now I see.

2
'Twas grace that taught my heart to fear,
And grace my fears relieved;
How precious did that grace appear
The hour I first believed!

3
Thru many dangers, toils and snares
I have already come;
'Tis grace hath brought me safe thus far,
And grace will lead me home.

4
The Lord has promised good to me;
His Word my hope secures;
He will my Shield and Portion be,
As long as life endures.

5
Yes, when this flesh and heart shall fail,
And mortal life shall cease;
I shall possess, within the veil,
A life of joy and peace.

6
The earth shall soon dissolve like snow;
The sun forbear to shine;
But God, who called me here below,
Will be forever mine.

7
When we've been there ten thousand years,
Bright shining as the sun,
We've no less days to sing God's praise
Than when we'd first begun.

AMAZING GRACE
Título original: Amazing Grace
Realização: Michael Apted (Inglaterra, EUA, 2006); Argumento: Steven Knight; Produção: James Clayton, Mark Cooper, Patricia Heaton, David Hunt, Jeanney Kim, Terrence Malick, Edward R. Pressman, Duncan Reid, Ken Wales; Música: David Arnold; Fotografia (cor): Remi Adefarasin; Montagem: Rick Shaine; Casting: Nina Gold; Design de produção: Charles Wood; Direcção artística: David Allday, Stephen Bream, Matthew Gray; Decoração: Eliza Solesbury; Guarda-Roupa: Jenny Beavan; Maquilhagem: Sharon Colley, Mandy Gold, John Henry Gordon, Susan Howard, Julie Kendrick, Loulia Sheppard, Jenny Shircore; Direcção de Produção: Tom Crooke, Jeffrey Harlacker, Angus More Gordon, Graham Stumpf; Assistentes de realização: Barney Hughes, Olivia Lloyd, Vicky Marks, Alex Oakley, Lance Roehrig, Deborah Saban, Danny McGrath; Som: Petra Bach, Keith Bilderbeck, Jon Johnson, Bryan Pennington, etc.; Efeitos especiais: Stuart Brisdon, Mark Haddenham; Efeitos visuais: Greg Butler, Julia Wigginton; Compnhias de Produção: FourBoys Films, Walden Media, Bristol Bay Productions, Ingenious Film Partners, Roadside Attractions; Intérpretes: Ioan Gruffudd (William Wilberforce), Romola Garai (Barbara Spooner), Benedict Cumberbatch (William Pitt), Albert Finney (John Newton), Michael Gambon (Lord Charles Fox), Rufus Sewell (Thomas Clarkson), Youssou N'Dour (Olaudah Equiano), Ciarán Hinds (Lord Tarleton), Toby Jones (Duque de Clarence), Nicholas Farrell (Henry Thornton), Sylvestra Le Touzel (Marianne Thornton), Jeremy Swift, Stephen Campbell Moore, Bill Paterson, Nicholas Day, Georgie Glen, Nicholas Woodeson, Tom Fisher, Richard Ridings, David Hunt, David Toole, Alex Blake, Angie Wallis, Harry Audley, Chris Barnes, Tom Knight, Andrew Whipp, Andrew Neil, Estelle Morgan, Philip Dunbar, Adam Woodroffe, Joseph Traynor, Simon Delaney, Neville Phillips, Eki Maria, Daniel Naprous, Peter White, etc. Duração: 117 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 21 de Maio de 2009.

3 comentários:

casa de passe disse...

Um prazer lê-lo!!

Pareceu-me, como diz, um filme interessante e gostei de relembrar esses tempos de George III.

Relembro ainda os versos que nos deu a conhecer e que eu recordo este:

The earth shall soon dissolve like snow;
The sun forbear to shine;
But God, who called me here below,
Will be forever mine.

(sobretudo estas 'rimas' porque... tenho uma ligeira costela beata)

LUA DE LOBOS disse...

Gostei de o ler.
Não é de modo algum o tipo de filme que gostarei de ver pois não goso de filmes históricos ou de época, talvez porque sempre tive professores de História que me punham literalmente a dormir:)
E aqui que ninguém nos ouve, a minha deficiencia em todas as disciplinas liceais, resumiam-se à disciplina de História :)
Tenho acompanhado o seu blog com muito interesse e vou continuar a lê-lo certamente.
xi
maria de são pedro

Filipe Machado disse...

É um filme a ter em conta. Excelente crítica, os meus parabéns!

Participa na sondagem "Melhor James Bond com Peter Sellers, George Lazenby, Timothy Dalton e Daniel Craig” até ao dia 15 de Julho 2009, em http://additionalcamera.blogspot.com.