domingo, julho 12, 2009

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, 6

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Em época de crise, podem fazer-se férias de muitas maneiras. Económicas, prazenteiras e ricas de ensinamento. Por exemplo, passar férias em Almada, durante quinze dias a acompanhar o Festival de Teatro. Já não digo mudarmo-nos de armas e bagagens para Almada, mas aproximarmo-nos da cidade pelo fim da tarde, jantar por ali, depois assistir a um espectáculo de teatro, dar uns dedos de conversa com amigos (alguns que já não víamos há anos, ainda ontem encontrei a Teresa Mota, que vive em Paris e há trinta anos que não encontrava), tomar alguma coisa numa esplanada da praça S. João Baptista, e ir descobrir como Almada se transformou desde o 25 de Abril. Antes era uma espécie de fim de mundo, sem qualidade de vida, um amontoado de casas para onde iam viver os que trabalhavam em Lisboa. Agora é terra que vale a pena atravessar, e habitar. Bem servida de transportes (sai-se da Av. de Roma na Fertagus, bons comboios de dois andares, pára-se em Corroios, por exemplo, e apanha-se o Metro de superfície, e rapidamente se sai quase à porta do Teatro Municipal), com uma urbanização desempoeirada e salpicada de zonas verdes, limpa e bem conservada, Almada é um bom exemplo do que em três decénios se pode fazer para transformar por completo uma cidade, ainda por cima que dá importância à cultura, ao desporto, ao entretenimento.
HOMENAGEM A RUY DE CARVALHO

A noite do Festival começou com uma homenagem a Ruy de Carvalho, um actor que é uma lenda viva no teatro, na televisão, no cinema, mas não só, na dignidade de uma vida e na paixão por uma arte. Laborinho Lúcio leu um magnífico texto de exaltação do actor, Diogo Infante elogiou-lhe as virtudes e anunciou o seu regresso ao Teatro de D. Maria II (na peça “O Camareiro”, que Laurence Olivier tão bem fez em cinema!), Joaquim Benite fez as honras da casa, bem como a Presidente da Câmara de Almada. Justíssima homenagem para alguém que muito admiro e a quem o Famafest há alguns anos prestou idêntica homenagem. É bom saber que há quem homenageie em vida aqueles que amamos.
Fotos: aspectos da Exposicisão dedicada a Ruy de Carvalho

AULLIDOS (UIVOS)
encenação de Jesus Peña

E subiu o pano para mais um espectáculo brilhante, desta feita marionetas para adultos, por uma companhia espanhola. “Aullidos” é, segundo palavras do seu autor e encenador, “um espectáculo de marionetas para adultos inspirado nos contos de fadas.” Neste espectáculo, segundo Jesús Peña, “os bonecos vêem-se submetidos às paixões humanas”. Esta criação do Teatro Corsário subverte de certa forma a ideia de teatro de marionetas, que normalmente se associa a um público jovem, a quem se oferecem histórias de fadas que sublimam as mais profundas paixões humanas, apresentando-as como histórias de inocência e de encanto. Nada de mais enganoso. As histórias de fadas encerram referências às mais íntimas e secretas paixões do Homem, das mais inocentes às mais perversas, das mais violentas às mais libidinosas. Só que está tudo diluído numa calda de açúcar que tolda a visão aparente. O que faz esta companhia, com “Uivos”, é retirar o véu de ilusória inocência das histórias de fadas e apresentar-nos as verdadeiras histórias de sexo e violência que se escondem por detrás da habilidade de escrita dos irmãos Grimm ou de Perault, de La Fontaine ou de Lewis Caroll (para só citar alguns).
O que se vê então são sangrentos diabos e sequiosos lobisomens, depravadas damas de corte e feiticeiras amaldiçoadas, brutais ogres, e irritantes diabinhos de riso convulsivo, carrascos da Inquisição e libertinos cavaleiros de um inesgotável desejo sexual, e uma menina pobre que os ricos exploram, que vai viver para debaixo do mar, na companhia das sereias, e que é despertada (ou nem isso) da letargia mortal em que caiu, nua e de pernas bem abertas, quando é descoberta pelo lobisomem de serviço, numa fornicação com inúmeros prolegómenos, de que resulta um sedento bebé. Enfim, um deboche completo, para edificação de um público que vibra com o que vê e assim exorcisa os fantasmas que lhe vão na alma. São efectivamente “Uivos” que se libertam do mais secreto da natureza humana. Com a poesia rara da arte que sabe transfigurar mesmo os “uivos” mais animalescos.
Com uma tonalidade poética e uma construção de quadros que relembra o cinema mágico de Méliès, “Uivos” fica seguramente como um dos grandes momentos deste Festival. São mais de 20 bonecos, de tamanho quase humano (alguns de tamanho mesmo sobre-humano), manipulados com maestria pelos seus criadores, que lhes incutem à nossa frente o sopro da vida, que mescla tudo o que esta comporta, amor e tragédia, crueldade e erotismo, magia e realismo (poética), amor e desejo, homens e figurões, imaginário e fantasia dos sonhos.
O “Times”, de Londres, descreveu-o como “um espectáculo de extraordinária habilidade e energia diabólica”. O “El Mundo” afirmou que se trata de uma produção de “altíssimo nível, liberdade, provocação e diversão, um trabalho magistral”. É, na verdade, como se lia no “ABC”, um “terrorífico e divertido conto de fadas. Um trabalho extraordinário”. Várias vezes premiado em Festivais: Prémio para Melhor Espectáculo para Adultos, do Festival de Valência, Prémio da União Polaca de Artistas de Teatro, e Prémio pela “magistral técnica de animação” do Festival de Lleida. Quem não viu, não sabe o que perdeu.

UIVOS (AULLIDOS) – criação e encenação de JESÚS PEÑA; Intérpretes /manipuladores: Teresa Lázaro, Olga Mansilla, Sergio Reques; Fantoches e cenário: Teatro Corsário; Desenho de luz Javier Martín; Música original: Juan Carlos Martín; Desenho de som: Juan Arteagabeitia, Javier Garcia; Maquinista / manipulador: Borja Zamorano, Iñaki Zaldua; Duração 1h05; Classificação M12.

1 comentário:

Ado disse...

Já agora, partilho a minha opinião, diferente. Não gostei. Comparando com as peças de marionetas que têm aparecido noutras edições do festival - essas sim, verdadeiramente mágicas, como o Gulliver ou outra que vi no ano passado e de que lamentavelmente não me lembro do nome (exibida na sala de ensaios do TMA) - achei esta particularmente fraca, não só pelo facto de realmente parecer que volta e meia e a propósito de tudo e de nada (talvez por falta de ideias?) se punham os bonecos a «confraternizar» uns com os outros, mas também pelo som, de escolha desinteressante e em volume muito alto. Achei tudo isto uma fórmula demasiado fácil, de um tipo de teatro mais para os lados do entretenimento (ampliando-se a escala da coisa poderia servir para um Casino Estoril!)e sem grande sumo. Não me intrigou, e é essa a sensação que gosto de ter quando acabo de ver uma peça.