À noite, na sala do Teatro das Beiras, vi “A Neve”.
Impressões? Globalmente boas mas, antes de lá chegar, reforçar a heróica resistência do que é ser uma companhia de teatro residente no interior do país. Fazer teatro na Covilhã, há trinta anos, é obra. Uma média de quatro espectáculos por ano: dois em sala, um ao ar livre e um infantil. Um sala com 90 lugares, desviada do centro da cidade, para lá se chegar descem-se rampas, ruas e azinhagas, depois escadas e mais escadas. Numa noite chuvosa e fria como aquela em que lá estive, havia aquecimentos aqui e ali para cortar o agreste do ambiente. Cerca de 50 espectadores bem agasalhados, dispersos pelas cadeiras vermelhas. É heróico encenar e representar assim, mas também é heróico ser-se espectador. Entretanto, na praça principal da Covilhã, quase ao lado do palácio do Município, jaz (quase) morto e arrefece um Cine-Teatro que deverá ter tido os seus dias áureos nos anos 50 do século passado (quando os cine-teatros eram populares e se disseminavam pela província em réplicas do lisboeta Monumental). Olha-se e percebe-se que está “encerrado para obras” há anos. Portanto nada de muito urgente, certamente. “É a cultura!”, como diz o outro.
Agora a peça: dois reparos iniciais em relação à adaptação e que têm a ver seguramente com uma opinião pessoal, que se rege por gosto e estilo próprios. Acho que globalmente o tom do espectáculo está um pouco distante do universo agreste e trágico de Vergílio Ferreira, mesmo quando este se serve do humor e da ironia. Talvez esta sensação derive do facto de existirem, como ponto de partida, cinco contos, cinco unidades distintas, cinco pequenas histórias entrelaçadas. Este aspecto talvez impeça uma progressão dramática que imponha uma outra densidade de clima que me parece essencial. Cada episódio esboça uma situação, recria um ambiente, mas na totalidade sinto que não consegue impor um clima denso. Questão de fundo, é certo, mas apesar disso uma observação que não invalida o resultado final do esforço da companhia. O despojamento e a simplicidade funcionam bem, a poesia dura e fria paira no palco, a desesperança e o rigor da noite beirã estão lá, o ressuscitar de um tempo de angústia e solidão maior pressentem-se. Este é um cenário sem amor, com rara solidariedade, com temor e “neve”. Neve que é branca, mas fere como uma faca afiada.
Aceitando esta premissa, a encenação é bastante boa, inteligente, cheia de pequenos apontamentos (o início com a apresentação do escritor, a cena das galinhas, o episódio da “estrela”) que denotam o talento e a experiencia de José Carretas. O elenco é jovem, mas eficaz e homogéneo (Fernando Landeira, Pedro Damião, Pedro da Silva, Rui Raposo Costa, Sónia Botelho e Teresa Baguinho), cenários, adereços e figurinos funcionam muito bem (Nuno Lucena, José Carretas e Margarida Wellenkamp), o desenho de luz cria a ambiência requerida, a música original mostra-se inspirada (Telmo Marques).
Vergílio Ferreira continua vivo, com fervorosos admiradores, que passam de geração em geração esta “neve” serrana que esteve na génese de tanta da sua criação literária.
Com José Carretas, ladeando a estátua A Mãe.
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