domingo, janeiro 17, 2010

"A NEVE" NA COVILHÃ

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EM BUSCA DE "A NEVE" PELOS CAMINHOS DA COVILHÃ

Partida de e regresso a Lisboa no Inter-Cidades, com dois dias e meio de paragem e permanência na Covilhã. Pouco vi da cidade, que tem uma parte antiga com vestígios abandonados dos tempos áureos dos lanifícios e amargas recordações humanas de misérias e prepotências, pouco vi da cidade que ostenta marcas bem conservadas da arquitectura do Estado Novo (a praça do município é um sóbrio e elegante recanto, infelizmente desfigurada pela intromissão de modernidades mal encaixadas), apenas percorri de carro as avenidas novas que estendem a cidade até fora de (antigas) portas, demonstrando certamente algum rejuvenescimento e novas actividades, onde a universidade tem um destacado papel. Dificilmente se andava na rua, o passeio turístico era quase impossível. Não pela neve, que só vi no teatro, mas pela chuva e o frio. E um nevoeiro denso. Ainda deu tempo para passar por um agradável museu, na companhia da Eduarda e do José Carretas, percorrendo cinco andares de arte sacra com algumas revelações curiosas. De resto, a agenda apertada em redor de Vergílio Ferreira não deixava igualmente tempo para outras delongas. Uma paragem no café Montiel, rápidos almoços e jantares para recordar algumas fortes tipicidades da região (e as papas de carolo), e o resto foi passado na companhia do Grupo de Teatro das Beiras, 30 anos de persistência na Serra, e no interior de Portugal, a representar textos como este “A Neve” segundo cinco contos de Vergílio Ferreira (“O Encontro”, “A Palavra Mágica”, “A Fonte”, “A Galinha” e “A Estrela”).
Durante a entrevista à Beira TV e durante o debate,
entre o professor Luis Nogueira, da UBI, e Sónia Botelho, do GTB
Dada a minha proximidade com o escritor e os filmes que sobre ele e com ele realizei, fui convidado a “abrilhantar” os festejos em redor de tão grato amigo e tão admirado escritor. A 14 de Janeiro passaram quatro filmes meus num dos auditórios da Universidade da Beira Interior, que assim se juntou igualmente às comemorações. A UBI tem um curso de cinema que funciona já há algum tempo, com resultados satisfatórios, e muitos alunos (cerca de 200 dispersos por cinco anos, segundo nos contaram). Em duas sessões por ali passaram “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa” (50 ‘) e “Prefácio a Vergílio Ferreira” (15’), ambos documentários, e “Mãe Genoveva” (50’) e “Manhã Submersa” (127’), duas ficções sobre textos do escritor de Melo. O público não foi muito, mas a recepção parece ter sido muito simpática da parte de alunos, professores e actores. No dia seguinte, uma longa entrevista para uma televisão local e um demorado debate na sala do Café Concerto do Teatro das Beiras ocuparam a tarde toda a recordar Vergílio Ferreira, a sua obra, os filmes dela retirados, as grandezas e as misérias do cinema português. Enfim, o normal, mas com boa adesão de público e de questões.
À noite, na sala do Teatro das Beiras, vi “A Neve”.
Impressões? Globalmente boas mas, antes de lá chegar, reforçar a heróica resistência do que é ser uma companhia de teatro residente no interior do país. Fazer teatro na Covilhã, há trinta anos, é obra. Uma média de quatro espectáculos por ano: dois em sala, um ao ar livre e um infantil. Um sala com 90 lugares, desviada do centro da cidade, para lá se chegar descem-se rampas, ruas e azinhagas, depois escadas e mais escadas. Numa noite chuvosa e fria como aquela em que lá estive, havia aquecimentos aqui e ali para cortar o agreste do ambiente. Cerca de 50 espectadores bem agasalhados, dispersos pelas cadeiras vermelhas. É heróico encenar e representar assim, mas também é heróico ser-se espectador. Entretanto, na praça principal da Covilhã, quase ao lado do palácio do Município, jaz (quase) morto e arrefece um Cine-Teatro que deverá ter tido os seus dias áureos nos anos 50 do século passado (quando os cine-teatros eram populares e se disseminavam pela província em réplicas do lisboeta Monumental). Olha-se e percebe-se que está “encerrado para obras” há anos. Portanto nada de muito urgente, certamente. “É a cultura!”, como diz o outro.

Agora a peça: dois reparos iniciais em relação à adaptação e que têm a ver seguramente com uma opinião pessoal, que se rege por gosto e estilo próprios. Acho que globalmente o tom do espectáculo está um pouco distante do universo agreste e trágico de Vergílio Ferreira, mesmo quando este se serve do humor e da ironia. Talvez esta sensação derive do facto de existirem, como ponto de partida, cinco contos, cinco unidades distintas, cinco pequenas histórias entrelaçadas. Este aspecto talvez impeça uma progressão dramática que imponha uma outra densidade de clima que me parece essencial. Cada episódio esboça uma situação, recria um ambiente, mas na totalidade sinto que não consegue impor um clima denso. Questão de fundo, é certo, mas apesar disso uma observação que não invalida o resultado final do esforço da companhia. O despojamento e a simplicidade funcionam bem, a poesia dura e fria paira no palco, a desesperança e o rigor da noite beirã estão lá, o ressuscitar de um tempo de angústia e solidão maior pressentem-se. Este é um cenário sem amor, com rara solidariedade, com temor e “neve”. Neve que é branca, mas fere como uma faca afiada.
Aceitando esta premissa, a encenação é bastante boa, inteligente, cheia de pequenos apontamentos (o início com a apresentação do escritor, a cena das galinhas, o episódio da “estrela”) que denotam o talento e a experiencia de José Carretas. O elenco é jovem, mas eficaz e homogéneo (Fernando Landeira, Pedro Damião, Pedro da Silva, Rui Raposo Costa, Sónia Botelho e Teresa Baguinho), cenários, adereços e figurinos funcionam muito bem (Nuno Lucena, José Carretas e Margarida Wellenkamp), o desenho de luz cria a ambiência requerida, a música original mostra-se inspirada (Telmo Marques).
Vergílio Ferreira continua vivo, com fervorosos admiradores, que passam de geração em geração esta “neve” serrana que esteve na génese de tanta da sua criação literária.




Com José Carretas, ladeando a estátua A Mãe.

Com Sónia Botelho, actriz, entusiasta maior de Vergilio Ferreira,
Fernando Sena, director da Companhia do Teatro das Beiras, e Rui Raposo Costa, actor.
(fotos gentilmente cedidas por MEC)

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