Na aldeia de Azinhaga, terra natal de José Saramago, existem duas ruas que se cruzam: uma com o nome do próprio José Saramago, outra com o de Pilar del Rio, segunda mulher do escritor, a quem ele dedica algumas palavras em “As Pequenas Memórias”, que o dístico que indica a rua eterniza, “A Pilar que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar.”
“José e Pilar”, filme de Miguel Gonçalves Mendes, pode caracterizar-se bem por esse cruzamento de duas vidas que a toponímia de Azinhaga guarda. Este documentário de pouco mais de duas horas que levou quatro anos a ser rodado, é isso mesmo, o cruzar e entrecruzar de pessoas, de emoções, de sentidos contrários que, em vez de se oporem, se completam.
O filme acompanha a vida do escritor entre 2006 e 2009 e passa por momentos decisivos. Saramago é já um escritor com o Nobel, reconhecido internacionalmente, prepara e escreve “A Viagem do Elefante”, interrompida por um período grave de doença. Assistimos a uma época de bem estar e equilíbrio na vida do casal, depois precipitamo-nos na doença, posteriormente na recuperação, e na feira das homenagens, das sessões de autógrafos, das viagens intercontinentais, até ao sopro final.
José Saramago, como qualquer outro homem, não é feito de uma peça só e o filme de Miguel Gonçalves Mendes tem essa virtude: consegue transmitir a imagem de um homem intelectualmente estimulante e arrogante, confrontado com a debilidade física, a doença, a fragilidade. Consegue captar igualmente o duelo de personalidades que aproxima José e Pilar.
São universos diversos, ambos são forças da natureza, que podiam facilmente colidir, mas facilmente se moldam um ao outro. Pela força do amor, mas também pela mútua admiração. É Pilar quem explica: “Ele era um intelectual, e eu não. Eu organizava a agenda. Mas com a consciência de que o importante era o intelectual. Porque a vida, e a realização da vida, qualquer pessoa consegue. Mas as pessoas que nos enriquecem a todos são muito poucas. E Saramago era uma delas.” Pilar parece dissolver-se no universo de Saramago para o servir o melhor que sabe e pode (mas atenção que nunca perde a palavra, que não aceita a opinião de Saramago sobre Hilary Clinton, por exemplo), mas Saramago também se ajeita ao afago de Pilar. Ambos se encontram nesse cruzamento de Azinhaga, e ambos se dão bem em serem duas ruas diversas que se cruzam num abraço infinito que tem a sóbria paisagem de Lanzarote como cenário de eleição.
Mas há muitos outros contrários que o filme refere, do prazer da vida que se leva e da fama que se alcançou à desumanidade das longas sessões de autógrafos, das amenas cavaqueiras com amigos, aos enfadonhos congressos onde se irmana o bocejar de alguns escritores, onde se dormita sem má consciência, das longas viagens que atravessam oceanos às recatadas manhãs em pijama no seu escritório, escrevendo. Saramago é pessimista, cínico, terno, comovente, sarcástico, forte como um touro a subir à montanha, seco e quebradiço quando levado numa cadeira de rodas que o desloca na doença.
O segredo do filme de Miguel Gonçalves Mendes é a câmara estar lá, no sítio certo, na hora exacta, sem parecer que está. É o respeito do realizador para com o objecto do seu trabalho. É a transparência do olhar e o propósito aparentemente contemplativo: o realizador olha, regista, não interfere, deixa que aconteça, rouba esses momentos de intimidade sem no entanto os sublinhar. Por vezes mostra-nos que está lá, intencionalmente. Saramago fala-nos directamente, via câmara. Questiona-nos. Sabemos: isto é um filme. Saramago representa: “Encontramo-nos num outro sítio”.
Um abraço, um beijo, uma caminhada, uma conversa no interior de um carro ou de um avião, um fechar de olhos numa cerimónia pública, um assomo de aborrecimento por mais um acontecimento a que não se pode faltar, tudo isto a câmara regista, quase indiscreta, mas sempre discreta, serena, objectiva. Objectiva? Onde a objectividade se cruza com a subjectividade. Porque esta forma de não interferir é a forma que Miguel Gonçalves Mendes escolheu para mostrar a sua admiração, o seu apreço para com o casal José e Pilar.
É difícil não gostar deste filme límpido, de uma beleza austera e helénica. Mesmo quem não goste dos livros de Saramago ou não aprecie a postura do homem, mesmo quem não sinta especial simpatia por Pilar, não pode deixar de se render a esta homenagem onde se assiste a um escritor repensar a vida e a morte, embrenhar-se pelo processo criativo de gerar um novo romance, espreitar o desenrolar de um grande amor, e até assistir de janela à girândola quase assassina das imposições do mercado que não recua perante nada e suga os autores até ao tutano. Não deixa também de ser incómodo, (re)vermo-nos no papel de constrangedores leitores, entusiastas, disputando um autógrafo, numa nova esquina de rua.
“José e Pilar” é um belíssimo retrato, esboçado com largueza, mas simultaneamente com rigor e precisão. Mais um que Miguel Gonçalves Mendes (Covilhã, 2 de Setembro de 1978) nos oferece de um escritor português, depois dessa sua outra aproximação de Mário Cesariny de Vasconcelos, em “Autofagia” (2004).
JOSÉ E PILAR
Título original: José e Pilar
Realização: Miguel Gonçalves Mendes (Portugal, Espanha, Brasil, 2010); Produção: Ana Jordão, Abel Ribeiro Chaves, Daniela Siragusa; Música: Adriana Calcanhoto, Camané, José Mário Branco, Luís Cilia, Bruno Palazzo, Noiserv, Pedro Gonçalves, Pedro Granato; Fotografia (cor): Daniel Neves; Montagem: Cláudia Rita Oliveira; Som: Barbara Alvarez, Hugo Alves, Olivier Blanc, Adriana Bolito; Companhias de produção: Jumpcut, El Deseo (Espanha), O2 Filmes (Brasil), Abel Ribeiro Chaves / OPTEC, Lda; SIC (Portugal), YLE (Finlândia), SVT (Suécia); Intérpretes: José Saramago, Pilar del Rio, etc. Duração: 125 minutos; Distribuição em Portugal: JumpCut; Classificação etária: M/ 6 anos; Estreia em Portugal: 18 de Novembro de 2010.
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