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CISNE BRANCO, CISNE NEGRO
Um cisne ao espelho
Não consigo perceber muito bem nem o deslumbramento de alguns, nem a raiva de outros em relação a este “Cisne Negro”. A coisa roça mesmo o ridículo nalguns casos: li por aí que algumas bailarinas internacionais, muito responsáveis, se insurgiram, afirmando que o mundo do bailado não está bem retratado e que as bailarinas não são como a protagonista Nina Sayers, o que deveria levar, por exemplo, os médicos a protestarem contra a criação do Dr. Jeckyll, já para não falar nos milhares de outras de profissões que tiveram criações artísticas não muito de acordo com a respectiva deontologia profissional. Parece que as divas do ballet são muito ciosas da sua imagem. Mas passemos adiante.
O filme, enquanto tal, e descontando essas discussões disparatadas e laterais, é uma obra interessante nalguns aspectos, não muito entusiasmante noutros, com momentos bem conseguidos e outros que julgo lamentáveis. Neste aspecto refiro-me, sobretudo, à realização de Darren Aronofsky que intercala enquadramentos de gosto mais do que duvidoso, com pormenores de personagens ou objectos em primeiro plano, para permitir uma profundidade de campo que se poderia conseguir de forma menos rebuscada, com alguns bons cortes de montagem, originais e modernos, além de uma ou outra cena mais lograda).
Julgo por isso que se trata de um filme que se vê com algum interesse, resultante sobretudo de certas interpretações e de um argumento curioso, que volta a abordar o caso da duplicidade de personalidade, e do dolorosos processo criativo. Com alguns estereótipos, mas vamos por partes.
O universo do bailado já foi abordado várias vezes pelo cinema e ainda muito recentemente se pode ver um documentário, “A Dança - Le Ballet de l'Opera de Paris”, de Frederick Wiseman (2009), que para os mais puristas deve servir perfeitamente. Mas, quando se fala deste tema, é obvio referir a obra-prima indiscutível, “Os Sapatos Vermelhos”, de Michael Powell e Emeric Pressburger, que curiosamente também se centra no “Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky. Pode indicar-se igualmente “O Sol da Meia-Noite” (White Nights, 1985), de Taylor Hackford, rodado em grande parte em Portugal, no São Carlos, com Mikhail Baryshnikov. Mas muito pouco têm a ver com esta obra de Darren Aronofsky, que anteriormente se tornou conhecido com títulos como “Pi” (1998), “A Vida não é um Sonho” (2000), “O Último Capítulo” (2006) ou “O Wrestler” (2008).
“Black Swan” parte de um complexo e bem elaborado argumento de Mark Heyman, John J. McLaughlin e Andres Heinz, segundo história deste último. Nina Sayers (Natalie Portman) é uma das bailarinas de uma importante companhia norte-americana que prepara uma nova encenação de “O Lago dos Cisnes”. A companhia está em crise, o público tende a afastar-se dos seus espectáculos, e o encenador, Thomas Leroy (Vincent Cassel), procura insuflar-lhe vida, afastando a anterior bailarina principal, Beth Macintyre (Winona Ryder), e avançando para Nina, elemento de técnica perfeita, mas de reduzida vivência.
Thomas invectiva-a a tornar-se não só o “cisne branco”, que ela interpretará sem esforço na perfeição, mas também o “cisne negro”, esse “dark side” da Humanidade que Nina desconhece e anda mesmo apartado do seu íntimo. Filha de uma antiga bailarina que nunca ultrapassou a mediania, Erica Sayers (Barbara Hershey), Nina vive acorrentada dentro da sua meninice, do seu quarto cor-de-rosa povoado por ursinhos de peluche, e amordaçada por essa inquietante mãe de negro, que projecta na filha o seu falhanço, e a castra em todos os sentidos. Personagem intrincada, que tanto sugere o desejo de triunfo da filha, como parece ciumenta do mesmo. Para libertar Nina, Thomas aborda mesmo um tema tabu, a sexualidade, e manda Nina para casa, que se solte, que se masturbe, que reconheça a sua sexualidade, que ponha cá fora “o outro lado do espelho”.
Falando do espelho, este é um filme que faz jus a este elemento de simbolismo óbvio. Os espelhos estão sempre presentes nesta obra, quer como reflexo de si, quer como factor multiplicador, quer como parte de um trabalho que exige perseverança e esforço contínuo para se atingir a perfeição e que é necessário analisar ao pormenor. No espelho. Nina tem sempre o espelho à sua frente, para controlar os movimentos, para se aperceber de erros, para se ultrapassar, mas será também o espelho que lhe mostra o seu duplo, em si mesmo, ou no rosto das rivais, da veterana vedeta ou da nova aspirante, Lily (Mila Kunis). É necessário estilhaçar o espelho para reunir dentro de si o cisne branco e o cisne negro, o Bem e o Mal, e essa busca da perfeição conduz à auto-destruição.
Há momentos muito bem conseguidos, como a sequência de amor entre Nina e Lily, que assinala a reunião das duas forças antagónicas, agora num mesmo amplexo, ou algumas cenas de ensaios e do próprio bailado, tendo-me ficado na retina uma nocturna, com o palco escassamente iluminado e com Nina atravessando-o, em direcção às trevas. Mas é na montagem (Andrew Weisblum, um nome a reter para os Oscars) que mais nos surpreendemos com algumas ligações de movimentos não muito ortodoxos, mas que resultam magnificamente.
Depois há a interpretação. Natalie Portman compõe um trabalho de grande subtileza, deslizando da pureza para a perversidade com uma delicadeza intocável, e a sua Nina Sayers deve arrecadar a estatueta, depois de ter triunfado nos Globos. Não virá daí nenhuma surpresa. Mas também Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey e Winona Ryder merecem referência especial. Regressando ao início, nem obra-prima, nem um filme a evitar. Uma obra interessante, irregular, mas que vale a pena ver.
Título original: Black Swan
Realização: Darren Aronofsky (EUA, 2010); Argumento: Mark Heyman, John J. McLaughlin, Andres Heinz, segundo história deste ultimo; Produção: Jon Avnet, Brad Fischer, Scott Franklin, Jerry Fruchtman, Peter Fruchtman, Rose Garnett, Ari Handel, Mike Medavoy, Arnold Messer, Brian Oliver, Joseph P. Reidy, Jennifer Roth, Rick Schwartz, Tyler Thompson, David Thwaites; Música: Clint Mansell; Fotografia (cor): Matthew Libatique; Montagem: Andrew Weisblum; Casting: Mary Vernieu; Design de produção: Thérèse DePrez; Direcção artística: David Stein; Decoração: Tora Peterson; Guarda-roupa: Amy Westcott; Maquilhagem: Judy Chin, Marjorie Durand, Michael Marino, Geordie Sheffer; Direcção de Produção: Gabrielle Mahon; Assistentes de realização: Amy Lauritsen, Travis Rehwaldt, Joseph P. Reidy, Jennifer Roberts; Departamento de arte: Miriam Johnson; Som: Brian Emrich, Craig Henighan; Efeitos especiais: Conrad V. Brink Jr.; Efeitos visuais: Christian Cardona, Danny S. Kim, Dan Schrecker, Niko Tavernise; Companhias de produção: Fox Searchlight Pictures, Protozoa Pictures, Phoenix Pictures, Cross Creek Pictures; Intérpretes: Natalie Portman (Nina Sayers), Mila Kunis (Lily), Vincent Cassel (Thomas Leroy), Barbara Hershey (Erica Sayers), Winona Ryder (Beth Macintyre), Benjamin Millepied (David), Ksenia Solo (Veronica), Kristina Anapau (Galina), Janet Montgomery, Sebastian Stan, Toby Hemingway, Sergio Torrado, Mark Margolis, Tina Sloan, Abraham Aronofsky, Charlotte Aronofsky, Marcia Jean Kurtz, Shaun O'Hagan, Christopher Gartin, Deborah Offner, Stanley Herman, Michelle Rodriguez Nouel, Kurt Froman, Marty Krzywonos, Leslie Lyles, John Epperson, Arkadiy Figlin, Timothy Fain, Sarah Lane, Liam Flaherty, Patrick Heusinger, etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 3 de Fevereiro de 2011.
CISNE NEGRO
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