sexta-feira, fevereiro 11, 2011

CINEMA: O DISCURSO DO REI

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O DISCURSO DO REI
“The King's Speech” conta a história real de um rei que era gago. E dos trabalhos por que passou para alinhavar um discurso perceptível num dia de particular gravidade para a sua nação. Mas há um pouco mais do que isso, por detrás desta pequena trama: há uma breve panorâmica sobre a História de Inglaterra nas décadas de 30 e 40 do passado século XX. A acção inicia-se na corte inglesa, durante o final do reinado de George V (Michael Gambon), que tinha dois filhos, o predestinado ao trono, Eduardo (Guy Pearce) e o tímido e gago George (Colin Firth).
Eduardo estava projectado para ser rei, mas não muito apostado em o ser. Tanto mais que convivia intimamente com uma mulher casada de nome Wallis Simpson (Eve Best), com quem, por divórcio desta, pretendia casar. Quando o velho rei morre, Eduardo é coroado, o VI da dinastia, mas por pouco tempo, pois acaba por abdicar para seguir o seu coração e a mulher que amava.
Quem fica com a batata quente na mão, e os berlindes na boca, é o mano mais novo, George, que não consegue articular duas palavras seguidas, sobretudo em momentos de stress. O filme inicia-se precisamente por um doloroso discurso seu, durante uma inauguração oficial, onde a dificuldade em articular palavras torna pungente a cerimónia. A sua gaguez passara já por todos os médicos e charlatães do reino, sem resultados práticos, até que Elizabeth, a sua abnegada esposa, depois mais conhecida por rainha-mãe (aqui muito bem representada pela bela Helena Bonham Carter), resolve seguir uma dica e consultar um tal terapeuta da fala, de nome Lionel Logue (Geoffrey Rush) que afiançava fazer milagres nesse domínio.
Lionel Logue não tinha créditos universitários, mas utilizava processos novos e pouco ortodoxos. Conhecia um pouco de psicanálise, acreditava encontrar na adolescência dos pacientes a razão para a sua gaguez, e pôs o rei a “libertar-se”, ao ser tratado por Bertie e a gritar palavrões, depois de passar pela prova dos berlindes e outras mais. Bertie nunca chegou a ter a eloquência de um orador do “speaker’s corner”, mas lá conseguiu desenvencilhar-se da proclamação de guerra contra os nazis e levantar a moral dos seus concidadãos. Temos dito. O filme não procura ser muito mais do que isto. Mas assume uma curiosa perspectiva, que não sabemos se foi ou não pretendida pelos responsáveis.
Enquanto, por um lado, temos na direcção do Eixo, a retórica efusiva e manipuladora de Hitler e Mussolini, que, com palavras e gestos, encenações grandiosas e o troar de cânticos bélicos, metiam no bolso os seus atordoados espectadores, do lado Aliado, a abrir as hostilidades, tínhamos um rei gago que a muito custo conseguia articular um discurso para mobilizar as suas tropas. O que leva a uma conclusão cautelosa. A demagogia não é boa conselheira, é melhor tentar perceber as palavras, mesmo quando mal pronunciadas, do que deixar-se levar pela demagogia de hábeis manipuladores. É verdade que os Aliados se iriam vingar com Churchil e De Gaule, entre outros, que também sabiam muito bem levar a água ao seu moinho.
A graça de “The King's Speech” está, no entanto, no confronto entre um inseguro e atrofiado rei e um australiano que gostava de representar Shakespeare, mas sem nenhum talento para tal, que tinha um descaramento de primeira, alguma sorte e uns conhecimentos rudimentares de psicologia e psicanálise. Colin Firth e Geoffrey Rush são magníficos, é certo, mas já o sabíamos. Colin Firth, por exemplo, dera-nos, no passado ano, um fabuloso trabalho em “Um Homem Singular” (este sim, merecedor de um Óscar), uma interpretação intimista, secreta e deslumbrante. Agora aparece num daqueles trabalhos que são feitos para agradar à Academia e que vai, de certeza, conquistar a estatueta. Mas, apesar do brio na composição, preferimos-lhe obviamente outros registos anteriores. Mas será a reparação de um injustiça, pois Colin Firth é seguramente um dos maiores actores vivos. Já que falamos de actores, justo é sublinhar ainda a curta aparição de um monstro, Michael Gambon (em George V), além de Derek Jacobi, Guy Pearce, Helena Bonham Carter e Claire Bloom, e espantarmo-nos com a ridícula presença de Timothy Spall (num insuportável Winston Churchill).
O filme aparece nomeado para doze Oscars, mas parece destinado a ser um perdedor nato. Estas nomeações foram a sua vitória. Além de Colin Firth, poucas mais irá arrebatar, apesar da excelência da reconstituição de época, do bom guarda-roupa, da cuidada fotografia, da inspirada banda sonora. Já o mesmo não se pode dizer da realização, que é verdadeiramente desastrosa, com um recurso insano à utilização da grande angular, que transforma personagens e ambientes em grotescas caricaturas, sempre que é usada. Creio ter percebido a intenção de Tom Hooper, um realizador que vem da televisão e nos dera um interessante “Maldito United” (2009). Ele terá pensado que esta era a melhor maneira de traduzir em imagens a perturbação e a claustrofobia do rei gago, mas apenas optou pela facilidade e o resultado é por vezes simplesmente grotesco. Em lugar de traduzir a gaguez do rei, afirma a gaguez do seu realizador. Mais um filme que se vê com algum agrado, mas que está longe de justificar outra atenção. 
O DISCURSO DO REI
Título original: The King's Speech
Realização: Tom Hooper (Inglaterra, EUA, Australia, 2010); Argumento: David Seidler; Produção: Paul Brett, Iain Canning, Charles Dorfman, Simon Egan, Mark Foligno, Peter Heslop, Phil Hope, Geoffrey Rush, Lisbeth Savill, Emile Sherman, Deepak Sikka, Tim Smith, Gareth Unwin, Bob Weinstein, Harvey Weinstein; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Danny Cohen; Montagem: Tariq Anwar; Casting: Nina Gold; Design de produção: Eve Stewart; Direcção artística: Netty Chapman; Decoração: Judy Farr; Guarda-roupa: Jenny Beavan; Maquilhagem: Frances Hannon; Direcção de Produção: David Bell, Erica Bensly, Emma Zee; Assistentes de realização: Heidi Gower, Martin Harrison, Guy Heeley, Liam Lock, Chris Stoaling; Departamento de arte: Julia Castle; Som: Paul Hamblin, Martin Jensen, John Midgley; Efeitos especiais: James Davis III, Mark Holt; Efeitos visuais: Derek Bird, Duncan Holland, Thomas M. Horton, Zissis Papatzikis; Companhias de produção: See Saw Films, See-Saw Films, Bedlam Productions; Intérpretes: Colin Firth (Rei George VI), Geoffrey Rush (Lionel Logue), Helena Bonham Carter (Rainha Elizabeth), Derek Jacobi (Arcebispo Cosmo Lang), Michael Gambon (Rei George V), Guy Pearce (Rei Edward VIII), Claire Bloom (Rainha Mary), Timothy Spall (Winston Churchill), Robert Portal, Richard Dixon, Paul Trussell, Adrian Scarborough, Andrew Havill, Charles Armstrong, Roger Hammond, Calum Gittins, Jennifer Ehle, Dominic Applewhite, Ben Wimsett, Freya Wilson, Ramona Marquez, David Bamber, Jake Hathaway, Patrick Ryecart, Teresa Gallagher, Simon Chandler, Orlando Wells, Tim Downie, Dick Ward, Eve Best, John Albasiny, Danny Emes, Anthony Andrews, John Warnaby, Roger Parrott, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Fevereiro de 2011.
Classificação: ***

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