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MELANCOLIA
“Melancolia”, de Lars von Trier, despertou os mais desencontrados comentários, aquando da sua estreia no Festival de Cannes, onde uma mais do que infeliz intervenção do realizador, confessando-se admirador de Hitler, iria desencadear uma justificada tempestade. Lars von Trier é useiro e vezeiro em declarações bombásticas, e esta, se foi ou não “autêntica”, excedeu todas as legitimidades. O filme acabou por ganhar apenas o prémio para Kirsten Dunst, como melhor actriz do festival, mas iria sofrer, um pouco por todo o lado, com a pesada herança dessa infeliz conferência de imprensa.
Ideologicamente, Lars von Trier nunca me pareceu um indivíduo de grande confiança. Acho os seus filmes quase sempre soberbos de um ponto de vista plástico, mas fiquei de pé atrás em relação a alguns, nomeadamente “Europa”.
Falemos então de “Melancolia” que, para já, a crítica norte-americana considerou “o melhor filme estreado em 2011”. Veremos o que vai acontecer aquando da atribuição dos Oscars.
Melancolia é um estado de espírito, a que alguns chamam doença, qualquer coisa como depressão, que os românticos enfatizaram nas suas criações literárias e artísticas, e a que Lars von Trier associa o nome de um planeta que se aproxima perigosamente da Terra.
É curioso saber-se que os gregos é que criaram a palavra e esta reúne “mélas”, que quer dizer "negro", e “cholé”, que significa "bílis", resultando algo como “bílis negra”. Foi Hipócrates, no século V a.C., quem classificou melancolia como doença, ao criar a teoria dos “quatro humores corporais”, que eram sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. O equilíbrio ou desequilíbrio entre as partes era responsável pela saúde ou pela doença. Julgava-se que a influência de Saturno levava o baço a segregar mais bílis negra, alterando o humor do indivíduo, levando-o ao estado de melancolia, em que a pessoa acometida pelo mal perdia o entusiasmo e se mostrava incapaz de qualquer actividade. Os Românticos recuperam o conceito, introduzindo-lhe gradações diversas: a melancolia seria doença, mas poderia ser enriquecedora para o espírito e a alma. Freud também não foi indiferente a esta melancolia (que os poetas medievais chamavam “merencoria”, veja-se D. Duarte). Segundo Sigmund Freud, a melancolia assemelhava-se ao processo do luto, sem que houvesse necessariamente uma perda. Pessoas com sintomas de melancolia falam de si próprias como "inúteis", "incapazes de amar e de sentirem prazer", "incapazes de fazer algo bem, ou de bom para os outros", "irritantes", etc.
Passemos ao filme que o próprio Lars von Trier considerou um “filme catástrofe”, que na verdade não deixa de ser. Não tanto uma obra sobre “o fim do mundo” provocado pelo aparecimento do planeta Melancolia que se aproxima a passos largos da Terra e ameaça explodir no embate, mas sobretudo um fim do mundo provocado por uma outra melancolia, essa interior, que o realizador documenta em dois episódios distintos e um prólogo que sintetiza, sem palavras e ao ralenti enquanto se ouve Wagner como banda sonora, tudo quanto se irá passar posteriormente. Aí se perceberá que os seres humanos se encontram indissociavelmente ligados à Terra (Justine arrasta raízes atrás de si) e ao espaço, ao universo circundante (a mesma Justine irradia raios dos seus dedos que interagem com o infinito).
Tudo se passa em dois dias, cada um deles dedicado a uma irmã, primeiro Justine, depois Claire. A primeira, publicitária, casa nesse dia e dirige-se com o noivo para um palacete isolado no campo, onde o cunhado e a irmã lhe organizaram uma boda de arromba. Tudo parece correr pelo melhor, Justine (Kirsten Dunst) e Michael (Alexander Skarsgård) parecem felizes quando a limusina os conduz para o destino sonhado como cenário para ideal para assinalar o início da sua vida a dois. Mas a limusina é demasiado grande para as veredas por onde o carro tem de passar e essa desproporção irá marcar o aparecimento de um mal-estar que depois se irá intensificar ao longo do jantar. Justine encontra o pai (John Hurt) e a mãe (Charlotte Rampling), que estão divorciados e, cada um pelo seu lado, de formas diversas, abrem fendas na aparente harmonia reinante. O patrão de Justine, dono da agência onde esta trabalha, anda atrás de um slogan e não larga a nova directora criativa enquanto esta não assegurar o trabalho. Justine retira-se, afasta-se dos convivas, olha para o marido de uma forma diversa, vê-se que está não só descontrolada, mas profundamente perturbada pelo caminho que a sua vida toma. O jantar é filmado de câmara à mão, captando uma instabilidade crescente, descobre-se não só o já aludido mal-estar individual e colectivo, como a hipocrisia, os jogos de interesses, a importância dos negócio e do dinheiro. Claire (Charlotte Gainsbourg) não hesita em confessar à irmã que às vezes a odeia, enquanto John (Kiefer Sutherland), o seu marido, lhe atira a cara quão caro foi o casamento para redundar no fiasco que se vê.
O casamento termina de forma abrupta e esta primeira parte de “Melancolia” segue de perto as pisadas de um outro filme dinamarquês, “A Festa”, de outro cineasta do “Dogma 95”, Thomas Vinterberg. “Melancolia” nada tem a ver com os preceitos desse “dogma”, optando deliberadamente por um tipo de super-produção, com um elenco de super-vedetas (que, diga-se de passagem, vão super-bem) e valores de produção muito acima da média, inclusive ao nível dos efeitos especiais, que não têm nada de “explosivos”, mas interiorizam sabiamente o clima, entre o quotidiano e o fantástico. Sobretudo nesta primeira parte, onde ambientes, guarda-roupa, fotografia são excelentes e permitem imagens de um deslumbramento plástico que, sendo timbre de Lars von Trier, aqui adquirem invulgar requinte. Os exteriores são fascinantes, muito sofisticados, o que já se anunciava desde o inquietante prólogo.
Na segunda parte, tudo se modifica, desapareceram os convidados, ficam cinco personagens, e um planeta ameaçador no horizonte. Desenvolve-se o confronto entre Justine, inquieta e sôfrega, e Claire, calma e organizada. Mas a proximidade da catástrofe baralha os dados, metaforicamente a “melancolia” tudo invade e o Apocalipse é certo.
O visionário Lars von Trier nada mais descobre no futuro da Humanidade do que a sua extinção, com um olhar pessimista e derrotista. Muito inquietante também, tal o clima de opressão que imprime à obra. Angustiante e sufocante. O espectador é confrontado com o ar irrespirável, por obra e graça do talento do cineasta para compor imagens e as manipular, mas igualmente dos seus intérpretes.
Se Lars von Trier estivesse calado e realizasse apenas filmes, ganharia mais, mesmo que estes estejam impregnados desse derrotismo épico que terá levado Wagner a ser adoptado por Hitler. Mas não deixa de ser curioso que, neste ano passado, vários cineastas, na esteira de “2001”, de Kubrick, se tenham virado para o espaço para esconjurar ameaças latentes. Este sintoma de um mal-estar generalizado não é um bom presságio. Ainda que o cinema tenha ganho algumas obras excepcionais.
MELANCOLIA
Título original: Melancholia
Realização: Lars von Trier (Dinamarca, Suécia, França, Alemanha, 2011); Argumento: Lars von Trier; Produção: Bettina Brokemper, Rémi Burah, Madeleine Ekman, Tomas Eskilsson, Meta Louise Foldager, Peter Garde, Peter Aalbæk Jensen, Lars Jönsson, Marianne Slot, Louise Vesth; Fotografia (cor): Manuel Alberto Claro; Montagem: Morten Direcção artística: Simone Grau; Decoração: Louise Drake; Guarda-roupa: Manon Rasmussen; Maquilhagem: Linda Boije af Gennäs, Camilla Eriksson, Dennis Knudsen; Direcção de Produção: Jessica Balac, Mouns Overgaard, Maj-Britt Paulmann; Assistentes de realização: Jonas Eskilsson, Peter Hjorth, Pontus Klänge, Anders Refn, James Velasquez; Departamento de arte: Klas Jansson; Som: Kristian Eidnes Andersen; Efeitos especiais: Hummer Høimark; Efeitos visuais: Peter Hjorth, Michael Holm, Andreas Hylander, Elin Lindahl, Martin Madsen, Daniel Nielsen, Malin Persson; Companhias de produção: Zentropa Entertainments, Memfis Film, Zentropa International Sweden, Slot Machine, Liberator Productions, Zentropa International Köln, Film i Väst, Danmarks Radio (DR), arte France Cinéma, Sveriges Television (SVT), Canal+, Centre National du Cinéma et de L'image Animée (CNC), CinéCinéma, Edition Video, Nordisk Film Distribution, Danish Filminstitute, Eurimages, Nordisk Film- & TV-Fond, Swedish Film Institute, Filmstiftung Nordrhein-Westfalen; Intérpretes: Kirsten Dunst (Justine), Charlotte Gainsbourg (Claire), Alexander Skarsgård (Michael), Brady Corbet (Tim), Cameron Spurr (Leo), Charlotte Rampling (Gaby), John Hurt (Dexter), Stellan Skarsgård (Jack), Kiefer Sutherland (John), Udo Kier, Jesper Christensen, James Cagnard, Deborah Fronko, Charlotta Miller, Claire Miller, Gary Whitaker, Katrine Sahlstrøm, Christian Geisnæ, etc. Duração: 136 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 1 de Dezembro de 2011.
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