Última exibição de “O Crime da Aldeia Velha”,
no Centro Cultural do Cartaxo. Última exibição que teve o propósito de
homenagear o escritor no dia do seu aniversário. Para o efeito escrevi algumas
palavras, relembrando o dramaturgo, que li no final do espectáculo, no palco perante todo o elenco:
SOBRE BERNARDO SANTARENO
Se fosse vivo, Bernardo Santareno, o autor
desta peça que acabaram de ver, completaria hoje 92 anos. Ribatejano por
nascimento (foi em Santarém que nasceu no dia 19 de Novembro de 1920), Bernardo
Santareno era o pseudónimo literário do cidadão António Martinho do Rosário,
que fez estudos no Liceu Nacional de Sá da Bandeira, na sua terra natal, onde
permaneceu até 1939, após o que viajou até à capital do reino para frequentar
os cursos preparatórios para a Faculdade de Medicina, na Universidade de
Lisboa. Em 1945, transferiu-se para a Universidade de Coimbra, e aí se
licenciou em medicina psiquiátrica, em 1950.
Iniciou a sua carreira profissional como
médico, entre 1957 e 1958, a
bordo dos navios “David Melgueiro”, “Senhora do Mar” e também do navio-hospital
“Gil Eanes”, acompanhando as campanhas de pesca do bacalhau. Ao mesmo tempo,
foi desenvolvendo a sua capacidade literária, inicialmente na poesia,
publicando em edições de autor três volumes (1954, “Morte na Raiz”, 1955,
“Romances do Mar”, e 1957, “Os Olhos da Víbora”), onde se esboçam já alguns dos
seus temas e obsessões, nomeadamente a presença do mar como elemento dramático
e a opressão do homem, vítima dos mais diversos condicionalismos sociais,
morais ou políticos. O mar estaria igualmente presente no seu volume de
narrativas “Nos Mares do Fim do Mundo”.
Num país onde a dramaturgia é rara e
medíocre, salvo raras excepções, poucas mais para além de Gil Vicente, de
António José da Silva, dito “o Judeu”, de António Ferreira, António Patrício ou
de Almeida Garrett, Bernardo Santareno ocupou rapidamente o lugar de dramaturgo
por excelência do século XX português. As suas primeiras obras teatrais
surgiram em 1957, num volume editado pelo autor e que agrupava “A Promessa”, “O
Bailarino” e “A Excomungada”. Depois surgem “O Lugre” e “O Crime de Aldeia
Velha”, ambas de 1959; “António Marinheiro ou o Édipo de Alfama”, de 1960; “Os
Anjos e o Sangue”, “O Duelo” e “O Pecado de João Agonia”, de 1961; e
“Anunciação”, de 1962, todas elas integrando uma estética muito pessoal, que
aliava um realismo de características sociais a uma imagética poética,
escolhendo temas onde a natureza humana era escalpelizada nos seus contrastes
mais gritantes, com a paisagem natural por cenário privilegiado, condicionando
o drama e mesmo a tragédia a que a acção quase sempre conduz.
Foi em meados dos anos 60,
tinha eu pouco mais de vinte anos, quando conheci pessoalmente Bernardo
Santareno. Em 1964, acompanhara a estreia de “O Crime de Aldeia Velha” no
cinema, numa adaptação de Manuel Guimarães, meu amigo e vizinho da Avenida de
Roma, e companheiro de boas conversas no Café Vavá. Cheguei mesmo a escrever
uma crítica para a revista “O Tempo e o Modo”, onde sublinhava algumas das
virtudes e certas limitações do filme que, globalmente, representava uma boa
aposta do cinema nacional, numa altura em que o Novo Cinema Português começa a
movimentar-se, permitindo que Manuel Guimarães deixasse de ser o quase
solitário e quixotesco cineasta da oposição ao regime.
Por essa altura, Santareno
era já um autor consagrado e eu um jovem universitário que escrevia sobre
cinema e teatro, paixões de sempre, com pretensões a dramaturgo e cineasta. Eu
escrevera três peças em um acto, que um editor da altura achou por bem
publicar, graça que para sempre fiquei a dever a Fernando Luso Soares. No meu
arrojo juvenil, decidi entregar o original a Bernardo Santareno para lhe pedir
umas palavras de apresentação do livro, se ele achasse que as pecinhas as
mereciam. Por esses tempos, os cafés eram pontos, certos e seguros, de encontro
e de tertúlia. Bernardo Santareno era acessível de encontrar em Lisboa, numa
pastelaria, confeitaria ou café da Rua Alexandre Herculano, mesmo ao lado de
uma editora prestigiada da época, a Ática, que tinha no seu catálogo nada mais
do que Fernando Pessoa, Sebastião da Gama, Mário Sá Carneiro e outros tais. Era
igualmente a editora de Santareno, e talvez para estar próximo dela, ele
frequentava a confeitaria “Paraíso”. Era fácil vê-lo sentado, quase sempre à
entrada, numa mesa do lado direito, jornal ou livro na mão, sozinho ou
acompanhado por amigos, a bica à frente, sobre o mármore do tampo da mesa. Foi
aí que o fui encontrar, foi aí que me apresentei e lhe passei para as mãos o
original que ele teve a gentileza de ler e de prefaciar com palavras estimulantes
para o que ele considerava ser “um homem de teatro”.
Depois dessa atrevida e
insólita apresentação, Santareno revelou-se sempre um homem afável e atento,
disponível e encorajador para com os jovens que procurava estimular e alentar.
Foram para mim preciosas as suas palavras que me ajudaram a persistir num
caminho, apesar dele não ter sido maioritariamente teatral, mas mais ligado ao
cinema. Mas nunca abandonei o teatro, quanto mais não seja como espectador
apaixonado, e não me espantaria muito que parte desta paixão a tenha passado a
outros, como se pode ver pela presença aqui ao lado do meu filho Frederico
Corado.
Voltando a Bernardo Santareno e a meados dos
anos 60, devo dizer que o meu contacto com o dramaturgo se foi mantendo, em várias
ocasiões, por diversas razões. Tenho comigo uma entrevista que lhe fiz para uma
revista de espectáculos que então existia, e onde eu colaborava regularmente, a
“Plateia”, e onde o autor falava da feliz experiência de ter tido nesse ano de
1967 dois textos seus em cena, “A Promessa” e “António, Marinheiro”, e de
ansiar pela estreia em palcos dos seus novos trabalhos que iniciavam, segundo o
próprio reconhecia, um novo ciclo no interior da sua obra. “O Judeu” e “O
Inferno”, as peças referidas, davam mostras de uma maior intervenção política e
social, muito próximas de uma estética brechetiana, o que seria continuado com
“A Traição do Padre Martinho” (1969), “Português, Escritor, 45 Anos de Idade”
(1974), “Os Marginais e a Revolução” (um volume agrupando quatro originais,
“Restos”, “A Confissão”, “Monsanto”, “Vida Breve em Três Fotografias”, 1979) e
“O Punho” (que só viria a ser publicado postumamente, em 1987).
Bernardo Santareno pode
dizer-se que foi um dos raros portugueses que escreveu tendo em vista o palco,
o espectáculo, o contacto com o público, tendo em conta duas vertentes
essenciais: por um lado, criar textos de qualidade literária invulgar, que não
se satisfazem apenas com a sua existência em livro, mas que aspiram a uma
natural respiração no palco. Só aí se completam e se dão por concluídos. Por
outro lado, todas as suas obras permitem uma leitura pessoal, de autor,
definida por um conjunto de temas constantes e quase direi obsessivos: a luta
pela dignificação do ser humano, pelos seus direitos essenciais, em confronto
com preconceitos de todo o tipo, quer sejam sexuais, religiosos, económicos,
raciais, políticos, sociais.
O que se compreende inclusive
pela sua própria postura perante a vida, como declarado defensor da liberdade
perante a opressão e, mais ainda, como assumido "homossexual
discreto", que via na diferença uma discriminação de que ele mesmo se
sentia vítima. Quase toda a sua obra se sente possuída por essa mácula de um
“pecado” pessoal que se assume perante o ostracismo geral, tema aliás dominante
em “O Crime de Aldeia Velha”, onde uma mulher, só porque é “diferente”, é
queimada viva, mercê da intolerância e do fanatismo obscurantista de uma
populaça em histeria. Curioso é verificar o papel dos dois elementos da Igreja
que surgem nesta obra, desempenhando papéis racionais e contemporizadores, o
que demonstra igualmente a abertura do dramaturgo para leituras não
demagógicas, ele que noutras obras também criticou a atitude da Igreja em
contextos diversos.
Voltei a cruzar-me com
Santareno, por altura da estreia de “A Promessa”, versão cinematográfica de
António Macedo da sua peça homónima. Estávamos em 1973, o filme foi um quase
escândalo, mas anunciavam-se já tempos novos, que pouco depois iriam desembocar
num Abril de cravos. O convívio da obra de Santareno com o cinema ficou por
essas duas adaptações, mas, na televisão, iria continuar, com a adaptação de
“Português, Escritor, 45 Anos de Idade”, numa realização de Artur Ramos, em
1975, numa recriação de “O Crime de Aldeia Velha”, partindo de uma encenação de
Carlos Avilez, em 1997, e, finalmente, em 1999, com a versão televisiva de
“Vida Breve em Três Fotografias”, dirigida por Fátima Ribeiro.
Bernardo Santareno morreu cedo, aos 59 anos,
em Carnaxide, Oeiras, no dia 30 de Agosto de 1980. Num dos livros que dele
possuo, com estimada dedicatória, ele enviava “um grande abraço e a esperança
artística no dramaturgo”. Lamento ter-lhe defraudado as esperanças no
dramaturgo, mas o amor ao teatro, esse mantém-se. Aqui estou para responder
presente às suas esperanças, acompanhado pelo meu filho que vai certamente
cumprir novas e renovadas esperanças artísticas e teatrais.
Lauro António
Cartaxo, 19 de Novembro de 2012
2 comentários:
gosto tanto dos teus textos :)
Caro Lauro António,
Fiquei tão feliz em ler seu texto sobre Bernardo Santareno! Linda sua escrita poética e cheia de carinho. Louvável o carinho que tens por ele e sua obra, mantendo-o vivo.
Estudo a dramaturgia de Santareno desde o mestrado e confesso que sua obra me encanta e me inquieta muito. Agora estou no doutorado andando lado a lado com Santareno. Feliz por tê-lo encontrado!!
Espero um dia poder ir a Portugal para conhecer os lugares pelos quais ele andou, viveu!!!
Solange Santana (Brasil/UFBA)
professorasolange@hotmail.com
Enviar um comentário