quarta-feira, janeiro 23, 2013

CINEMA: 00:30 A HORA NEGRA

 
 
 00:30 A HORA NEGRA
 

Kathryn Bigelow andou alguns anos a preparar uma carreira que se impôs em definitivo e com algum fragor com “Estado de Guerra”, que em 2009 se tornaria a coqueluche dos Oscars. Mas para trás tinha filmes muito apreciáveis que já apontavam para uma talentosa cineasta. “Depois do Anoitecer” (1987), “Aço Azul” (1989), “Ruptura Explosiva” (1991) e sobretudo “Estranhos Prazeres” (1995) já anunciavam não só um talento narrativo, como uma certa temática pessoal onde a violência ocupa um lugar destacado, pouco comum numa realizadora, e sobretudo uma preocupação por enredos obsessivos e explosivos. “00:30 A Hora Negra” vem confirmar tudo isso e sublinhar algumas qualidades, ao mesmo tempo que reafirma o prazer da autora no confronto polémico. “Zero Dark Thirty” não podia ter sido mais controverso e a vários níveis.
Digamos que a qualidade narrativa, o ritmo frenético que consegue impor às suas obras, roçando a esquizofrenia, o cuidado técnico, o apuro na direcção de actores não deixa dúvidas a ninguém e creio que, não fora as polémicas, que lhe trouxeram vozes críticas da esquerda e da direita, este seria o mais sério candidato aos Oscars de 2013. Mas assim, julgo que as esperanças serão poucas, a não ser para uma quase certeza, a de Jessica Chastain como Melhor Actriz.
“00:30 A Hora Negra”, que parte de um argumento de Mark Boal, que já havia escrito “Estado de Guerra”, era um projecto acalentado há alguns anos a que a morte de Osama Bin Laden, em 2012, veio impor uma reformulação de estratégia. Inicialmente, julga-se que o filme iria acompanhar os esforços da equipa da CIA que tentava localizar, prender ou matar o dirigente da Al-Qaeda, “o mais procurado homem de toda a história dos EUA”, e o que resultaria seriam as tentativas infrutíferas. Com o êxito da missão, a história altera-se completamente. O argumento é reescrito e procura-se a maior fidelidade com o que acontecera em Abbottabad, no Paquistão, aldeia onde Osama Bin Laden acaba por ser abatido. Há um contágio documental no filme que é sobretudo visível na sua primeira hora, com interrogatórios e torturas, perseguições e ciladas, gabinetes da CIA e discussões, e tudo o mais que parece não levar a lado nenhum. Mas desde início temos Maya, uma mulher, que parece ser uma coisa e depois se descobre ser uma outra, totalmente diferente. Julgamo-la tímida e fraca, distante e talvez crítica, para se verificar depois que é fria e calculista, perseverante e dura, obsessiva na sua vingança. Ela será o símbolo da América ferida de morte no 11 de Setembro? Ou pelo menos de uma certa América?
 

Kathryn Bigelow é ela também um retrato de mulher igualmente obsessiva e rigorosa na sua narrativa. Não se preocupa em enfrentar o politicamente correcto e em resvalar para o equívoco. A esquerda liberal americana não lhe desculpa algumas cenas de tortura, a direita radical quer atingi-la, acusando-a de ter tido acesso a informações confidenciais e de o filme ser uma apologia da política de Obama, para estear antes das eleições presidenciais. Julgo que ambas as acusações carecem de fundamento. Nada no filme exalta a tortura, muito pelo contrário. Nada se consegue com ela, e será através de outros meios que se chegará ao esconderijo do “homem mais procurado na Terra”. De resto, ao mostrar cenas de tortura, Kathryn Bigelow confirma que houve tortura, e deixa ao espectador a decisão de a aceitar ou não.
O filme é por vezes chocante, sobretudo na forma como mostra como são tratados, de parte a parte, homens que se abatem com a frieza de quem não tem o mais leve escrúpulo ou consciência. Percebe-se que neste universo de terror e contra terror nada importa, nada tem significado, a vida é um pormenor insignificante que se anula sem pestanejar. De um lado e do outro, repito. Quem assassina e quem responde, quem mata e quem se vinga.
Nesse aspecto, a obra é impressionante na forma como projecta uma imagem de um universo completamente dessacralizado, mesmo quando se mata em nome de princípios e de crenças religiosas ou políticas. Destaque-se enfim a presença fascinante e profundamente perturbadora de Jessica Chastain, uma actriz que em pouco mais de dois anos conquistou os públicos internacionais, com intervenções em filmes como “Procurem Abrigo”, “The Killing Fields - O Campo da Morte”, “As Serviçais”, “A Árvore da Vida” ou “Coriolano”. Tem aqui o papel de uma vida, pela complexidade e ductilidade de que dá sobejas mostras. Mas todo o elenco é notável e a qualidade técnica invulgar, da fotografia à montagem, da direcção artística ao som, da partitura musical à credibilidade dos ambientes criados. Uma excelente realização, num filme obviamente polémico, mas que por isso mesmo merece debate e a controvérsia que o acompanha.  
 
 
00:30 A HORA NEGRA
Título original: Zero Dark Thirty
Realização: Kathryn Bigelow (EUA, 2012); Argumento: Mark Boal; Produção: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Megan Ellison; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Greig Fraser; Montagem: William Goldenberg, Dylan Tichenor; Casting: Mark Bennett, Richard Hicks, Gail Stevens; Design de produção: Jeremy Hindle; Direção artística: Ben Collins, Rod McLean; Decoração: Lisa Chugg, Onkar Khot; Guarda-roupa: George L. Little; Maquilhagem: Mahmoud Karjoghly, Natasha Nikolic, Daniel Parker; Direcção de produção: Kaushik Guha, James Masi, Philie Naughtenm, Angela Quiles, Chanpreet Singh; Assistentes de realização: Tarik Afifi, John Mahaffie, Kirti Nandakumar, Ananya Rane, Scott Andrew Robertson, Shyamalee Sharma, Krishan Pratap Singh, David Ticotin; Departamento de arte: Christopher Brändström, Ryan Church, Martin J. Gibbons, Samy Keilani, Chris Kitisakkul, Gurubaksh Singh; Som: Paul N.J. Ottosson; Efeitos especiais: Blair Foord, Richard Stutsman; Efeitos visuais: Chris Harvey, Jeremy Hattingh, Mike Uguccioni; Companhias de produção: Annapurna Pictures; Intérpretes: Jessica Chastain (Maya), Kyle Chandler (Joseph Bradley), Édgar Ramírez (Larry), Joel Edgerton (Patrick), Mark Strong (George), Jason Clarke (Dan), James Gandolfini (director da CIA), Reda Kateb (Ammar), Jennifer Ehle (Jessica), Harold Perrineau (Jack), Jeremy Strong (Thomas), Chris Pratt (Justin), Taylor Kinney (Jared), Mark Duplass (Steve), Frank Grillo (oficial), Stephen Dillane (conselheiro de segurança), Fares Fares (Hakim), Scott Adkins (John), Mark Valley (piloto), Ricky Sekhon (Osama bin Laden), John Barrowman (Jeremy), Christopher Stanley (William McRaven), J.J. Kandel (J.J.), Homayoun Ershadi, Yoav Levi, Eyad Zoubi, Christian Contreras, Lauren Shaw, Jessica Collins, Tushaar Mehra, John Schwab, Martin Delaney, Nabil Koni, Anthony Edridge, Jeff Mash, Callan Mulvey, Siaosi Fonua, Phil Somerville, Nash Edgerton, Mike Colter, Brett Praed, Aron Eastwood, Heemi Browstow, Chris Scarf, Barrie Rice, Robert Young, Spencer Coursen, Chris Perry, Alex Corbet Burcher, Robert G. Eastman, Tim Martin, Mitchell Hall, Alan Pietruszewski, Kevin LaRosa Jr., M.D. Selig, Benjamin John Parrillo, etc. Duração: 157 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/16 anos; Data de estreia em Portugal: 17 de Janeiro de 2013.

1 comentário:

Belinha Fernandes disse...

Também já vi este. E também li a polémica sobre a tortura e discordo que o filme exalte a tortura. Não podiam escapar a isso. Se ela não a tivesse focado as acusações iriam no sentido de que ela estaria a esconder uma verdade vergonhosa! O filme parece um documentário, é feito com muita isenção, em especial o fim, ela foi particularmente seca e objectiva na forma como abordou o ataque e captura de Laden. Gostei de saber que tinha havido uma mulher no meio das operações. A interpretação da actriz é fascinante.É a força do filme. Mas, que horror ter esta profissão, não acha?