O LOBO DE WALL
STREET
Conta-se que, em várias épocas, e
através de testemunhos diversos, reis e imperadores, generais e chefes de
estado, quando recebiam uma má notícia, normalmente das frentes de batalha,
mandavam matar o mensageiro. Existe um ditado latino que confirma a história ou
a lenda: “Ne nuntium necare”: Não mate o mensageiro. Shakespeare actualizou a
mensagem para "Don't shoot the messenger", em “Henry IV”, e
igualmente em “Antony and Cleopatra”. Na Antiguidade Clássica, Sófocles, em
“Antigona”, não era tão drástico, mas mantinha o essencial: “ninguém gosta do
mensageiro que traz más notícias”.
Nos nossos dias, há muita gente que
não gosta de “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese. Já li um pouco de
tudo, da “obra-prima” à “merda”, e parece-me que muitos atacam o filme, não
pelo trabalho de Scorcese, mas essencialmente pela “mensagem” que ele
transmite. Julgo que há alguns espectadores que detestam não tanto o filme, mas
sobretudo o retrato que ele oferece de um certo extracto da sociedade
contemporânea. Recusam-se mesmo a acreditar que tal retrato seja autêntico. Na verdade,
é demasiado mau para ser verdade. Mas acredito que seja verdade. Vou mais
longe: acredito que é por causa do que vimos e ouvimos em “O Lobo de Wall
Street” que estamos como estamos, um pouco por todo o lado. O filme fala de
Wall Street, mas Walll Street aqui é um símbolo mundial, dos EUA à China,
passando por este recanto à beira Atlântico plantado.
Vamos por partes. Este é mais um filme
baseado em factos reais. Jordan Belfort, o protagonista, existiu e existe,
escreveu um livro que anda nas montras de todas as livrarias do mundo, que
conta as suas “aventuras” no universo da alta e da baixa finança. O livro
tornou-se um best-seller e percebe-se o que levou Scorsese a interessar-se por
ele: é um excelente ponto de partida para um argumento sobre o que se passa, de
há umas décadas para cá, com um certo tipo de operações bolsistas, que envolvem
toda a finança mundial, os bancos, as bolsas, a corrupção, o arrivismo, impondo
um estilo de vida que é a personificação da falta de escrúpulos destes
indivíduos medonhos que comandam os destinos da Humanidade.
Os factos remontam aos anos 80. Como poderia
deixar de ser, se foi aí que tudo começou, com Reagan e Thatcher, e o
aparecimento dos yuppies tão acarinhados pelos poderes públicos, que iriam
provocar, através deles, a “revolução” económica, social e política que estamos
a viver agora. A ideia central era valorizar o dinheiro e desvalorizar tudo o
mais. Não há moral, não há ética, não há amizades ou amor, não há cultura, não
há nada que não seja cifrões. A globalização ajudou à festa e a realidade
virtual foi a cereja no cimo do bolo. Antigamente, o capitalismo vivia do acumular
da riqueza que se extraía do trabalho, trabalho de administradores e gestores,
e sobretudo da mão de obra de operários (estes explorados, em noventa por cento
dos casos), mas, a partir da economia virtual, da especulação bolsista, o
dinheiro multiplica-se de forma mágica. A exploração continua, mas agora não há
“rostos”, o que existe é a “financia internacional”.
Jordan Belfort percebeu isso quando
entrou para uma empresa de correctores de bolsa e teve um mestre fabuloso, Mark
Hanna (um espantoso Matthew McConaughey no filme), que lhe ensina que na vida
há três pilares: dinheiro para multiplicar, prostitutas para usar e drogas para
consumir e manter a “máquina” alerta. Bater no peito, como os raguebistas
neozelandeses também ajuda, mas não é vital. Quando se começa a ambientar e a
subir na vida, a empresa vai a falência e Jordan, espertalhaço, segue os ventos
da mudança. Em lugar de uma grande empresa que joga com o capital dos tubarões,
vai para a uma pequena loja que faz o mesmo, mas com as economias do peixe
miúdo. Com uma diferença. Enquanto nas grandes empresas os corretores cobram
10% e dão a ganhar algum aos multimionários, ali cobram 50% e a arraia-miúda
que se cuide. O mais certo é não ganhar nada e perder as economias, mas os seus
50% estão garantidos.
Faz fortuna, funda a sua própria
empresa e torna-se ele próprio um multimilionário com uma filosofia de vida
muito restrita: ganhar o máximo de dinheiro, o mais rapidamente possível
(nenhum dos seus empregado está “autorizado” a desligar um telefone sem ter “abatido”
o cliente que se encontra do outro lado do fio), enquanto promove grandes
bacanais com miúdas “fixes” e drogas a rodos. Uma chamada “lemon”, novidade no
meio, é a que está a dar. Enquanto vão arruinando milhares de pequenos (mas
gananciosos) especuladores, eles vão-se divertindo com frases que pouco mais
dizem do que “fuck” e comportamentos de risco que podem acabar mal para eles e
sobretudo para a economia mundial (não a economia da alta finança, mas a dos
desgraçados que vivem do seu ordenado ou da sua reforma - vidé o que se passa
por aqui, boa amostra).
Claro que a certa altura, o cambalacho
chama a atenção das autoridades, o FBI entra na jogada, a maioria vai parar à
cadeia, Jordan Belfort cumpre uma pena, três anitos, coisa pouca, mas ironia
das ironias, “the show must go on”, sai da cadeia com um livro escrito a contar
as suas façanhas, e agora dá conferências, bem pagas, a explicar o seu método
de “empreendorismo” (onde é que eu já ouvi falar disto?).
Pois acredito que muita gente não
goste de ouvir esta “mensagem”. É a confissão de uma sociedade virada do
avesso, que compensa o criminoso e pune a vítima. É uma sociedade do
desarincanço, da total falta de valores, de um hedonismo mórbido, de uma
ausência de cultura evidente. Vive-se ao nível animalesco mais primário. Sexo
já nem sequer é prazer, é mera funcionalidade, droga é entorpecimento até à
idiotia, dinheiro é a suprema glorificação da carreira. As orgias relembram
Roma, esquecendo-se que a seguir viria a “Queda do Império Romano”.
Martin Scorcese imprime ao seu filme o
ritmo de um circo romano, com uma ironia que roça o sarcasmo, e um realismo que
só muito a custo poderemos julgar caricatural. Esta é a realidade concentrada
em três horas infernais que custam a digerir, é verdade. De resto, a montagem é
vulcânica, as interpretações brilhantes (Leonardo Di Caprio é excelente, mas
não só ele), a fotografa e a sonoplastia notáveis, e “O Lobo de Wall Street” é
um must que sobretudo não deve ser ignorado. Nem sempre quem nos traz más
notícias é nosso inimigo. Pode bem ser o único amigo que nos resta e aquele que
nos apela ao bom senso e à racionalidade.
Título original: The Wolf of Wall Street
Realização: Martin Scorsese (EUA, 2013); Argumento: Terence Winter, segundo obra de
Jordan Belfort; Produção: Riza Aziz, Richard Baratta, Leonardo DiCaprio, Danny
Dimbort, Georgia Kacandes, Joey McFarland, Alexandra Milchan, Martin Scorsese,
Adam Somner, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler, Rick Yorn; Fotografia
(cor): Rodrigo Prieto; Montagem: Thelma Schoonmaker; Casting: Ellen Lewis;
Design de produção: Bob Shaw; Direcção artística: Chris Shriver;
Decoração: Ellen Christiansen;
Guarda-roupa: Sandy Powell; Maquilhagem:
Mindy Hall, Michael Marino, Mary Anne Spano, Joseph Whitmeyer; Direcção de
Produção: Richard Baratta, Kelley
Cribben, Adrian Harrison, Georgia Kacandes, Francesco Marras; Assistentes de
realização: Adam Somner, Scott Bowers, David Fischer, Don H. Julien, Robert
Legato, Francisco Ortiz; Departamento de arte: Philip Canfield, David Meyer,
Alyssa Motschwiller, Raymond M. Samitz, Sha-Sha Shiau; Som: Frank Graziadei,
Heather Gross, James J. Sabat Jr., James Sabat, Philip Stockton; Efeitos
especiais: Drew Jiritano, R. Bruce Steinheimer; Efeitos visuais: Joe DeWalt
Brown, Bruce Hwang Chen, Justin Ferk, Jason Kolowski, Robert Legato, Ben
Record, Mark Russell, Dan Seddon, Lisa Spenc;
Agradecimentos: Luc Besson, Rick Hohmann, James P. Schramm; Filme
dedicado a Roger Ebert; Companhias de produção: Red Granite Pictures, Sikelia
Productions, Appian Way, EMJAG Productions, TWOWS; Intérpretes: Leonardo
DiCaprio (Jordan Belfort), Jonah Hill (Donnie Azoff), Margot Robbie (Naomi
Lapaglia), Matthew McConaughey (Mark Hanna), Kyle Chandler (Agente Patrick
Denham), Rob Reiner (Max Belfort), Jon Bernthal (Brad), Jon Favreau (Manny
Riskin), Jean Dujardin (Jean Jacques Saurel), Joanna Lumley (Tia Emma), Cristin
Milio (Teresa Petrillo), Christine Ebersole (Leah Belfort), Shea Whigham,
Katarina Cas, P.J. Byrne, Kenneth Choi, Brian Sacca, Henry Zebrowski, Ethan
Suplee, Barry Rothbart, Jake Hoffman, Mackenzie Meehan, Bo Dietl, Jon
Spinogatti, Aya Cash, Rizwan Manji, Stephanie Kurtzuba, J.C. MacKenzie, Ashlie
Atkinson, Thomas Middleditch, Stephen Kunken, Edward Herrmann, Jordan Belfort,
Ted Griffin, Fran Lebowitz, Robert Clohessy, Natasha Newman Thomas, Sandra
Nelson, etc. Duração:
180 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/
16 anos; Data de estreia em Portugal: 9 de Janeiro de 2014.
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