Mário Cesariny de Vasconcelos
(6.08.1923 - 16.11.2006)
Voz numa pedra
Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento
Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não
construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal
Mário Cesariny
MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS
nasceu no dia 9 de Agosto de 1923 em Lisboa.
Morreu na madrugado do dia 26 de Novembro de 2006, em sua casa.
Freqüentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e estudou música com o compositor Fernando Lopes Graça. Considerado o mais importante representante poeta português da escola Surrealista, encontra-se em 1947 com André Breton, facto determinante no desenvolvimento do seu trabalho literário. Ainda nesse ano participa, junto com Alexandre O'neill, António Pedro etc., do Grupo Surrealista de Lisboa. Algum tempo depois, por não concordar com a linha ideológica do grupo, afasta-se de maneira polémica e funda o "Grupo Surrealista Dissidente". Principal representante do Surrealismo português, Mario Cesariny, no início de sua produção literária, mostra-se influenciado por Cesário Verde e pelo Futurismo de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa. Ao integrar-se ao Grupo Surrealista, muda o seu estilo, trazendo para sua obra o "absurdo", o "insólito" e o "o inverossímil". Além de poeta, romancista, ensaísta e dramaturgo, também se dedicou às artes plásticas, sobretudo à pintura.
Obras mais importantes:
Corpo Visível - 1950;
Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano - 1952;
Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos -1953;
Manual de Prestidigitação -1956;
Pena Capital-1957;
Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor -1958;
Nobilíssima Visão -1959;
Poesia -1961;
Planisfério e Outros Poemas -1961;
Um Auto para Jerusalém -1964;
Titânia e A Cidade Queimada -1965;
Burlescas, Teóricas e Sentimentais -1972;
Primavera Autônoma das Estradas -1980;
Titânia -1994.
Todos por Um
A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza
Santos
Mártires
e Heróis
Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum
Fidelidade
Porquê não se sabe ainda
mas ainda aos que amam o poeta porque ele lhes dá o
livro do não trabalho
e diz cor de rosa diante de toda a gente
mas lhe lêem o livro só nas férias
(entre trabalho e trabalho)
e à noite vão a casas dizer cor de rosa em segredo
a esses e ainda
aos que estudaram o problema tão a fundo
que saíram pelo outro lado
e armaram um quintal novo para as galinhas do poeta
porem ovos
e disseram ao poeta estas são as nossas galinhas que
tu nos deste
se elas não põem os ovos que amamos
matamos-te
e então o poeta vai e mata ele as galinhas
as suas belas galinhas de ovos de oiro
porque se transformaram em malinhas torpes
em tristes bichas operárias que cheiram a coelho
a esses e ainda
aos realmente explorados
aos realmente montes de trabalho
ou nem isso só rios
só folhas na árvore cheia do método árvore
*
Não esquecer
"Autografia", um belissimo filme
de Miguel Gonçalves Mendes
Grande Prémio de Lusofonia
no Famafest 2004