sábado, janeiro 13, 2007

TEATRO EM LISBOA - Fedra

FEDRA

Encenar clássicos deverá ser uma das funções prioritárias de qualquer companhia de teatro, estatal ou não estatal. Afinal é nos clássicos que se encontra a base e a génese, o viso e o fermento de todo o teatro posterior, digo mais de toda a filosofia e de todo o pensamento que se lhes seguiu. Esquecer os clássicos em teatro é o mesmo que esquecer toda a época do cinema mudo, toda a filosofia e toda a literatura clássicas. Ninguém deve esquecer os antepassados. É nas lições do passado, para o Bem ou para o Mal, que se constrói o presente e se vai encontrar e projectar o futuro.
Posto isto, encenar clássicos, sobretudo alguns clássicos é difícil. Encenar, hoje em dia, Racine (1639-1699), o jansenista, austero e puritano, é obra. Deve colocar-se numa encenação de qualquer obra sua o maior dos cuidados.
A “Fedra” que subiu a cena no Maria Matos, com encenação de Ana Tamen, é um desastre. Vamos por partes.
“Fedra” é um texto difícil, denso e complexo, escrito numa poética dodecassilábica. Há quem diga que é imensamente chato e desactualizado. Rege-se por valores e códigos morais e literários que não são os de hoje, mas é interessante confrontá-lo com os valores e os códigos de hoje. Uma encenação em prioritariamente de estabelecer como meta duas funções: restituir e clarificar o texto na sua pureza inicial, e torná-lo acessível ao público de hoje nas suas intenções e propostas. O espectáculo do Maria Matos é negação completa das duas opções. Os actores não trabalharam o texto, não foram dirigidos ou foram tão mal escolhidos, que sai do teatro sem ter percebido nada do texto. Uns comem as palavras, outros pontuam mal, outros nunca deviam estar num palco com Racine. Raros se salvam, e as que se salvam (sim, são as mulheres!), salvam-se mais por mérito seu, do que por qualquer outro mérito alheio.
Racine aparece aqui, no entanto, numa exemplar tradução de Vasco Graça Moura. Ele sim faz todo o esforço para clarificar e tornar acessível o verbo do dramaturgo francês. Uma tradução o mais fiel possível, elegante, ágil, que se ouve com prazer. O que se colocou no palco foi a opasização desta tradução. Não só porque o texto foi destruído, como também porque a encenação o tornou ridículo.
Se o cenário de Vera Castro é, plasticamente, muito bom, que dizer de uma marcação que faz os actores esfregarem-se pelas paredes, arrastarem-se pelo chão, ou contorcerem-se (com dores de barriga?) no palco, em posses “esculturais” de um ridículo confrangedor? Se o jogo de luzes de Jorge Ribeiro é bom, nada mais o merece.
É triste sair de um teatro com a sensação de tempo perdido, e mais grave ainda com a sensação de não se ter percebido nada do que se viu. À saída do espectáculo, não era só eu a lamentar-me, mas a quase totalidade dos espectadores. Realmente “dizer” Racine não é o mesmo que falar numa telenovela. Em Racine o texto é prioritário, é por textos como estes que se percebe a diferença que há em representar e “representar”. “Representar como quando se está a falar no café” é uma coisa, muito diferente de representar um texto. Ponham um bom texto na boca de um mau actor ou de um bom actor mal dirigido, e veja-se a desgraça. Está visto.
De que fala “Fedra”?
Escrita por Racine a partir do texto clássico do grego Eurípedes, a tragédia funda-se na recuperação do mito de Fedra, mulher de Teseu e rainha de Atenas, que se apaixona pelo seu enteado Hipólito. Este é um amor proibido, quase incestuoso, que Fedra esconde de todos até ao dia em que Teseu é dado como morto. Aí, Fedra revela-se a Hipólito, na precisa altura em que se anuncia que Teseu, afinal, não morreu. Hipólito, porém, não ama Fedra, ama Arícia, filha de inimigos da família, e também ela um amor proibido. Perante tantas contrariedades, a tragédia explode. Perante esta intriga que recorda obviamente telenovelas mexicanas e melodramas de cortar à faca, o que faz a diferença é a densidade da palavra e o rigor de uma encenação que a sirva. Ana Tamen, a encenadora, confessou o seu fascínio pela “dimensão desmesurada e mortal que a paixão atinge” na tragédia. Lamentavelmente nunca o consegue transmitir.
Como também quase não há crítica de teatro neste país, é altura de se começar a chamar os bois pelos nomes. Este jogo de panelinhas e amizades suspeitas que domina em grande parte da crítica só pode ser funesta. Longe vão os tempos em que, depois de uma estreia, se lia “a verdade” de cada crítico sobre o que vira, e onde se assistia por vezes a monumentais pateadas. Agora é este desconsolo de palmas a pedido e de um encolher de ombros desprestigiante para os actores e técnicos que construíram os espectáculos. Este país perdeu a genica, perdeu o sentido crítico, perdeu a garra criativa?

Fedra
Encenação Ana Tamen; Tradução: Vasco Graça Moura; Co-produção: Grupo Cassefaz; Cenografia e Figurinos: Vera Castro; Desenho de Luz: Jorge Ribeiro; Movimento: Peter Michael Dietz; Músicos: Nuno Oliveira e Sara Jonatas; Percursão Pedro Calado.
Interpretação: Beatriz Batarda (Fedra), Pedro Carmo (Hipólito), Alexandre de Sousa (Teseu), Cristina Bizarro (Enone), Cândido Ferreira (Terâmenes), Adelina Oliveira (Pânope), Sara Carinhas (Arícia), Kjersti Kaasa (Isménia).
Em cena no Teatro Maria Matos, até 18-02-2007 (4ª a sáb. 21H30; dom. 17H)

12 comentários:

Ida disse...

Ai de mim se fosse integrante deste elenco. A crítica tá tão bem feita, que mesmo que a mise-en-scène fosse boa (no que não acredito, pois acredito no autor do texto) passaria a crer piamente no contrário. Ai que saudades das minhas leituras de Racine, infelizmente só o vi encenado duas vezes, e uma das vezes, por atores da Comédie Française, bastou-me para exercer um parti-pris contra a outra, por uma troupe brasileira, nunca mais ouvi os alexandrinos do mesmo jeito.
Vou ver se encontro uma edição de poche perdida aqui algures, apetece adormecer abraçada a algo assim, bem forte e envolvente.

Anónimo disse...

Dia 31 estreia a minha última adaptação. Espreite o meu blog e verá.
Bjs grandes e vemo-nos lá, claro.

Anónimo disse...

A adaptação de Pedras nos Bolsos era excelente.

Anónimo disse...

Muito obrigada pelo elogio ao meu trabalho de adaptação da peça Pedras nos Bolsos, mec.
Tinha a sua piada se este comentário fosse do Miguel Esteves Cardoso, uma vez que é o grande responsável pelo meu interesse pela escrita, criativa e não só. Entrevistei-o em Tomar, há muitos anos, tinha eu uns 17 anitos e trabalhava num jornal local. Por conhecer a minha paixão pela escrita do MEC, o director do jornal ofereceu-me a oportunidade de fazer a minha primeira entrevista. O artigo que escrevi ("O Milagre Estatístico de Ser Português") foi o meu primeiro trabalho publicado.
E pronto, quer o autor do comentário seja o MEC, quer não, fica aqui o meu agradecimento público em jeito de desabafo, que muito me agradaria fazer pessoalmente. Quem sabe, um dia.

P.S. Desculpa ocupar o teu espaço desta maneira, LA.
Beijos grandes.

Lauro António disse...

M.M.: Afinal MEC há mais que um. Este MEC não é um MEC, é uma MEC. Uma tal Maria Eduarda Colares. Um dia destes vais conhecer. Tu não ocupas espaço: és maneirinha. Volta Sempre. LA

Anónimo disse...

Ah! Obrigada pelo esclarecimento, querido Lauro.
Maria Eduarda Colares, a tradutora do Principezinho de Filipe La Féria?
As maravilhas de um google search. :-)

Seja como for, obrigada à MEC.

Anónimo disse...

Peço imensa desculpa por dar azo a confusões, com o meu MEC. Desculpa também ao MEC, que se antecipou há muito no uso da assinatura. Terei mais cuidado no futuro.

Anónimo disse...

Concordo inteiramente com a crítica, emboraocenário não me tenha agradado assim tanto. De resto, uma pobreza de encenação, aquele Hipólito não me roubava o coração, e realmente, não há paciência para o atiro-me à parede, atiro-me ao chão. A meia hora do fim, dentro da sala só se ouvia tossir. Acho que todos sabemos o que isto significa...

Anónimo disse...

Concordo inteiramente com a crítica, emboraocenário não me tenha agradado assim tanto. De resto, uma pobreza de encenação, aquele Hipólito não me roubava o coração, e realmente, não há paciência para o atiro-me à parede, atiro-me ao chão. A meia hora do fim, dentro da sala só se ouvia tossir. Acho que todos sabemos o que isto significa...

Anónimo disse...

É verdade, a tradutora do Principezinho do Filipe La Féria. E particualrmente sensível a uma boa adaptação e a um texto bem saboreado, daí ter-me ficado na memória a adaptação das Pedras...
Parabéns.

Anónimo disse...

Mais uma vez, obrigada, Mec. :-)

iLoveMyShoes disse...

Não posso concordar consigo. O grande problema da Fedra (versão apresentada no Maria Matos) é a tradução de Vasco Graça Moura. E a partir daí o descalabro é total. O cenário e figurinos de Vera Castro não fazem sentido dramaturgicamente, o movimento é disparatado, o elenco masculino um desastre...