quarta-feira, janeiro 23, 2008

CINEMA: CRISTOVÃO COLOMBO- O ENIGMA

CRISTÓVÃO COLOMBO
- O ENIGMA
Quem vê com alguma abertura de olhar um filme como “Cristóvão Colombo – O Enigma” não pode deixar de ficar perplexo. Normalmente quando se olha ou ouve uma obra de arte a tendência é valorizá-la colocando-a em comparação com outras, idênticas. Eu julgo nunca ter visto um filme como este. É película e 24 imagens por segundo. Ok. Aí é igual a todo o filme que se projecta numa sala de cinema. Mas o paralelismo fica-se por ai. Se o colocarmos ao lado de uma obra de Hollywood, merece bola preta pela certa. Se o cotejarmos com as vanguardas mais actuais, nada a ver. Apetecer dizer uma enormidade: parece um filme de amador (“home vídeo”, dir-se-ia hoje), realizado por um autor genial, na época do mudo, mas com som. Só paradoxos inconciliáveis. É verdade. No espaço de minutos, oscilamos entre uma interpretação que, pelos modelos actuais, é catastrófica, e um plano cuja composição e respiração tem de ser de inspiração divina, seja o que for a divindade. Tudo isto feito por um homem com 98 anos (sim, a idade tem importância, não há nenhuma dúvida de que a idade tem a sua importância na devida apreciação e usufruto pessoal do espectador desta obra).
Este não é um filme realista, é um dos filmes mais evanescentes que já vi. É um filme de fantasmas. Fantasmas que perseguem fantasmas, e falamos aqui de fantasmas enquanto almas, espíritos, corpos que interiorizam e guardam forças estranhas, ânimos e indizíveis energias. Fala-se muito de uma segunda infância quando se ultrapassa a maturidade e se entra numa outra dimensão que é a velhice ou a sabedoria. “Cristóvão Colombo – o Enigma” tem a alegria e a inconsciência de uma criança que brinca enquanto aprende alguma coisa sobre um tal Cristóvão Colombo que uns quantos dizem ser genovês e alguns afirmam português, nascido em Cuba, Alentejo, e ter dai partido para o mundo e para a descoberta da América. Numa altura em que Portugal e a Espanha dividiam o mundo entre si: uma parte para mim, outra para ti, coisa de crianças também.
Não, não se pode gostar ou não gostar deste filme com base no argumento, nos diálogos, na interpretação, até (por vezes) na iluminação ou naqueles artifícios de narração a que estamos habituados. Este filme participa de um outro registo. Não se gosta ou não. Ama-se ou não se ama. Eu amei. Há muito que não me enternecia tanto vendo um filme. Já vi majestosas obras-primas e chorei de prazer. Não é raro chorar de tanta beleza à nossa frente. No caso do filme de Oliveira, a lágrima desponta por outras razões. Ou sem-razões, sei lá. É lindo (não outra palavra: é lindo) ver Oliveira e a mulher passear por Nova Iorque em busca de Colom, desbobinando diálogos de manual de História, mas com um olhar de princípio do mundo que desarma a alma mais empedernida. “Oh Manuel (ou será: Manoel?), tu gostas mesmo de mim, tu amas-me?”, pergunta a mulher ao marido num barco com a estátua da Liberdade ao fundo (depois de nos terem dado um dos mais gloriosos planos da América que vi em cinema: a estátua ao fundo e, um primeiro plano, a bandeira a dardejar ao vento – os americanos deviam imprimir aos milhares e distribuir pelo mundo!). Trata-se de um casal que já ultrapassou todas as idades, que tem os anos marcados no rosto, a pele curtida pelas intempéries da vida, mas que conserva uma vivacidade no olhar e um sorriso malandro em cada palavra que diz. E o Manoel abraça-a e o mundo tem uma razão de ser e tudo parece estar certo e o Colom ser português de Cuba.
Numa situação destas, não há crítica que resista, o Oliveira já passou para o outro lado de tudo o que se conhece, resta-nos olhar incrédulos para o milagre, abrir a boca de espanto, sorrir aparvalhados para a beleza do mar e do céu, ficar extasiado perante um plano em casa de Colom no Porto Santo, ouvir a voz de Luís Miguel Cintra, e entrar no Paraíso.
Se Deus existe, inspirou Manoel de Oliveira. Esta serenidade de olhar, esta doce e divertida forma de olhar o mundo, é o Além. Todo o enigma está aí. Cristóvão Colombo foi apenas o pretexto para o cineasta nos levar consigo a descobrir o inexpugnável. O indecifrável, o indescritível. Não sei se é cinema ou teatro, mau ou bom, nem me interessa. Entra-se na sala, sentamo-nos, começamos por ver aquelas coisas da publicidade e dos anúncios aos filmes futuros, e sim, está bem, alguns devem ser muito bons. Depois aparece a assinatura de Colom no ecrã e entra-se numa outra dimensão. Se ao fim de quinze minutos entrou nessa dimensão, é a viagem pelo maravilhoso. Se não entrou, o melhor é sair. Não tem nada a fazer lá dentro. Este filme não é para si. Mas repare: não digo que esteja errado. É outra “coisa apenas”.
Já agora: o filme tem uma história. Parte de uma obra escrita pelo médico e investigador histórico luso-americano Manuel Luciano da Silva e sua mulher, Sílvia Jorge de Silva, "Cristóvão Colon (Colombo) era Português", que defende a tese da origem portuguesa do descobridor da América. A vida do médico e a sua paixão pelos Descobrimentos são temas centrais do filme, em que, inicialmente, Ricardo Trepa interpreta o papel do jovem Luciano da Silva e Leonor Baldaque o de Sílvia Jorge da Silva. Posteriormente, em idade mais avançada, serão o próprio Manoel de Oliveira e sua mulher Maria Isabel de Oliveira, que se ocupam das mesmas personagens. "Não se trata nem de um filme científico ou histórico, nem de carácter propriamente biográfico, mas sim de uma ficção de teor romanesco, evocativa da grandiosa gesta dos Descobrimentos Marítimos", explicou Manoel de Oliveira num comunicado distribuído sobre a obra, onde acrescentou: “Irá apresentar, contudo, a novidade de que Cristóvão Colon era, afinal, de origem portuguesa, nascido na vila alentejana de Cuba, e ter por isso dado à maior ilha por ele descoberta no mar das Antilhas, o nome da sua terra natal, Cuba". Nos Estados Unidos, Manoel de Oliveira filmou no parque da Estátua da Liberdade, na praça nova-iorquina onde se ergue a estátua de Cristóvão Colombo, junto ao Central Park, no Dighton Rock Museum, na Vila de Berkeley, em Massachussetts, e na cidade de Newport, em Rhode Island. O filme encerra na ilha de Porto Santo, onde Manuel Luciano identifica as suas últimas conclusões no lugar onde, na realidade, Colombo viveu com sua mulher, D. Filipa de Perestrelo.
Mas antes, Oliveira traça o percurso de Manuel Luciano da Silva que, em 1946, parte para a América com seu irmão Hermínio (Ricardo e Jorge Trepa, netos de Oliveira). Nos EUA forma-se em medicina, e regressa a Portugal para casar com Sílvia (Leonor Baldaque, neta de Agustina Bessa Luís), e prosseguir pesquisas de forma a demonstrar que Cristóvão Colombo era português. Neste filme familiar, aparecem ainda Lourença Baldaque (que interpreta uma figura de anjo, trajando as cores nacionais), Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, estes dois últimos que, não sendo familiares directos, o serão mais que muitos outros, dadas as afinidades adquiridas ao longo de décadas de trabalho conjunto.
CRISTÓVÃO COLOMBO - O ENIGMA
Titulo original: Cristóvão Colombo - O Enigma ou Christopher Columbus, The Enigma
Realização: Manoel de Oliveira (Portugal, França, 2007); Argumento: Manoel de Oliveira, segundo obra de Manuel Luciano da Silva e Sílvia da Silva; Música, José Luís Borges Coelho; Fotografia (cor): Sabine Lancelin; Montagem: Valérie Loiseleux; Design de produção : Christian Marti; Guarda-roupa: Adelaide Trepa; Direcção de produção: Dorin Razam-Grunfeld, Michael Sledd; Assistente de realização: Olivier Bouffard, Patrick Huber, Greg Staley; Departamento de arte: Stephane Alberto, Gregory Kenney; Som: Jean-Pierre Laforce, Henri Maïkoff; Produção: Jacques Arhex, François d'Artemare; Companhias de produção: Filmes do Tejo, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Luso-Americana, Les Filmes d'Après-midi, Manoel de Oliveira Filmes.
Intérpretes: Ricardo Trêpa (Manuel Luciano da Silva, jovem), Manoel de Oliveira (Manuel Luciano da Silva), Leonor Baldaque (Sílvia Jorge da Silva, jovem), Maria Isabel de Oliveira (Sílvia Jorge da Silva), Luís Miguel Cintra (Narrador, Director da casa dee Colombo, Porto santo), Lourença Baldaque (Anjo), Norberto Barroca (velho), Sam Masotto (emigrante), Leonor Silveira (mãe), Robert Gordon Spencer (emigrante), Adelaide Teixeira, Jorge Trêpa (Hermínio da Silva), etc.
Duração: 75 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Classificação etária: M7 12 anos; Locais de Filmagem: Alentejo, Cuba, Évora, Castro Marim, Castelo, Alfeite, Almada, Algarve, Lisboa, Rua Augusta, Baixa, Porto Santo, Madeira, Porto, Sé, Vila Franca de Xira, Portugal, Berkeley, California, Massachusetts, New York, Newport, Rhode Island, EUA; Estreia em Portugal: 13 de Dezembro de 2007.

13 comentários:

Anónimo disse...

Costumo ler o seu blog, só agora comento pela primeira vez pela pertinência do filme comentado. Belo comentário,bela abordagem de quem sabe o que diz. Convido o Lauro António a ler o que penso sobre este filme, que tem muitos pontos de coincidência:

http://7olhares.wordpress.com/2008/01/12/cristovao-colombo-o-enigma-2007/

Maria Eduarda Colares disse...

Magnífico Oliveira! Genial, de tirar o fôlego, sem palavras. Mas é isso: ou se ama, ou é melhor sair da sala e não conspurcar.
A religião não se explica. Nem os milagres. Nem as afeições futebolísticas. Respeitam-se.
O momento em que o Manoel de Oliveira, a mulher e o Luis Miguel se reunem, com um texto de panfleto turístico, é absolutamente sublime. Se não fosse merecê-lo por tudo o muito que tem feito, só por isto o Luis Miguel Cintra merecia a nossa mais grata admiração.
Podia-me ter dado para dizer "não vou, não me apetece". Mas por acaso não disse. Estava em dia de sorte.

Nuno disse...

Parabéns, gostei muito desta análise. Muito correcta.
Abraço

Lauro António disse...

Obrigado pelas referências, 7 Olhares (bom blogue!), MEQuerida e Nuno. Faz-se pela vida!

Ouriço disse...

Obrigada pelo estímulo. Não ía ver mas vou. O enredo interessa-me e muito.
bjs

Luis Eme disse...

Fiquei convencido, vou ver...

Ana Paula Sena disse...

Vê-lo parece ter sido uma experiência aqui descrita como irrepetível! Bonito texto, cheio de intensidade! :)

Klatuu o embuçado disse...

Ainda não vi, tenho andado a acumular uma cisterna interior de paciência. As «aventuras históricas» de Oliveira estão ao nível do «melhor» dos livros de Intrução Primária do salazarismo, entremeadas de mitosofias patetas da direita cultural serôdia!

P. S. Acho que o nome do filme poderia ser mais apelativo: «Si ou Cristovão Colombo»! :)

Ida disse...

Contigo, ou melhor, nos teus escritos por aqui descubro coisas que nunca alcançaria se me deixasse ficar pelos jornais e revistas. Tens uma escrita encantadora que nem sei se é inspirada no encanto do que relata ou se transmite às obras que descreve mais encanto do que já teriam naturalmente. Sinto-me agraciada por conhcer-te e à tua escrita.

Beijinho

Lord of Erewhon disse...

Eu acho que os home videos, não só estão na moda, como são uma cena mais patriótica e, ainda, aconchegantes, mas, na verdade, acho que Oliveira nunca passou bem da fase amadora.
Verdade seja dita, que, à força de insistência, até a chuva a cair acaba por criar um estilo. Num País onde chove cada vez menos... quem cria um estilo, acaba por abrir um cantinho no boletim meteorológico cultural.

E prontos.

Lauro António disse...

Ouriço,Luis Eme,Ana Paula, Ida: obrigado pelas referências, mas é tão só uma opinião, mais ainda um "sentir" pessoal. Não procuro "convencer ninguém". Mas se alguém, depois de ler, for ver e gostar fico satisfeoto, claro.
A Ana foi clara: foi uma "experiência irrepetível" para mim. Para quem não gosta do autor, como parece ser. por exemplo, o caso da Ana Paula, tudo indica ser uma outra "experiência irrepetível". Abraço, Luis, e beijos às restantes.

Lauro António disse...

Klatuu e Lord: como eu digo no texto (e aqui repito), ou se gosta, ou não se gosta. Tem a ver com o filme, e também com o "olhar" e o "sentir" de quem vê. Admito que um "gótico", ainda por cima dividido entre o chá e o café, não goste mesmo nada. Admito mesmo que muito do que afirma, com uma irónica dissecação do "corpus" em questão, esteja certo, segundo o seu ponto de vista.
E "prontos", como disse.
Se calhar vamos estar de acordo com "Sweeney Tood". Mas, se não estivermos, "prontos" na mesma.

Pêndulo disse...

Vi hoje apenas o filme...mesmo antes de sair do cartaz.
Achei simplesmente deliciosa a cumplicidade e a ternura entre o Manoel e a Maria Isabel. Fiquei com um grande sorriso. E feliz por no meio de uma vida conturbada ter arranjado tempo para ver este filme delicioso.

Gostei do comentario... parabéns!