sábado, dezembro 27, 2008

ÚLTIMAS LEITURAS DE 2008

HOMEM NA ESCURIDÃO
Não se percebe muito bem o que leva alguns leitores e certos críticos a afastarem-se de Paul Auster por ele se manter fiel a si próprio. O que me agrada em Auster é precisamente o facto dele ter um universo muito próprio e não o abandonar. Quando se pega (avidamente, digo eu!) num novo livro de Auster (como de quase todos os grandes autores) é sempre com o prazer de ir reencontrar um mundo. Com diferenças de enredo, de intriga, com personagens novas, situações inesperadas, mas um estilo que se mantém, uma estrutura que remete para as mesmas obsessões, os mesmos temas, os mesmos fantasmas. Não sei se “Man in the Dark”, o último a ser lançado em tradução portuguesa, é melhor ou pior do que o anterior. Sei que é Paul Auster, que me “apanhou” mal o comecei a ler e que só o larguei (com pena) quando da última página. Depois, as edições da Asa mantêm o mesmo estilo de apresentação, e tudo ressoa a familiar. É muito saudável.
August Brill é um crítico literário retirado, que vive sozinho com uma filha e uma neta, ambas traumatizadas por casos emocionais mal resolvidos (um divórcio, uma viuvez). Ele próprio recorda a mulher desaparecida e não suporta as insónias que o deixam acordado noites a fio, durante as quais vai escrevendo uma história que se transforma num mundo paralelo: depois das conturbadas eleições de 2000, que terminaram com a vitória de Bush, os EUA voltaram a dividir-se numa nova guerra de Secessão, com Estados fiéis a Bush e outros que se revoltaram e criaram uma federação independente. Nas noites em que não escreve, vê clássicos de cinema com a neta e ambos se entretêm a prolongar o prazer da visão dos filmes, explorando os seus significados, em desenvolvidas críticas que são magníficos estudos sobre o poder da imagem (Ladrões de Bicicletas, A Grande Ilusão, O Mundo de Apu, Viagem a Tóquio). Afinal está lá tudo o que tem a ver com Paul Auster. Algo que aprendi com a idade foi a explorar em profundidade os autores que me marcam. Ler uns atrás de outros os livros de alguém que subitamente nos iluminou. E ficar depois à espera que, mais ano, menos ano, apareça um novo título para nos dizer que tudo está bem, o mundo continua a girar e nós ainda reconhecemos o reconhecível. Mesmo quando, como no caso presente, um romance se torna algo inquietante. Aqueles mundos paralelos podem não ser tão paralelos assim. Visionário por absurdo, Paul Auster não especula senão com a realidade dos nossos dias.
UM HOMEM MUITO PROCURADO
John Le Carré é um velho conhecido, desde “O Espião que saiu do Frio” (conhecido como escritor, conhecido também como invulgar fornecedor de boas histórias para o cinema, veja-se o recente “O Fiel Jardineiro”, excelente romance e não menos digno filme do brasileiro Meireles). Com “Um Homem Muito Procurado” (Ed. Dom Quixote, 2008), John le Carré mantém-se ao nível do seu melhor, abordando um tema de enorme actualidade e de uma forma equilibrada e bem documentada. Dizem por aí alguns críticos literários que esta III Guerra Mundial que vivemos agora contra um inimigo encoberto que utiliza o terrorismo como arma letal, e cujos principais instigadores se ajaezam (bom termo, neste contexto!) no mundo islâmico não tivera até hoje um autor que o descrevesse melhor e que Carré logra onde muito outros haviam falhado. Na verdade o que sobressai a uma primeira leitura é a equidistância a que se coloca Le Carré, dando voz quer ao Ocidente (serviços secretos da Alemanha, de Inglaterra, dos EUA), quer ao sentir islâmico.
Todo roda à volta de um homem muito procurado, que se diz chamar Issa, devoto de Alá, jovem meio russo, meio checheno, que chega a Hamburgo vestindo um sobretudo preto comprido e morto de fome, com um passado de prisões e torturas por todos os sítios por onde passara. Quer ser médico, para ajudar os seus, usa uma pulseira de ouro, legado materno que não abandona, e sabe que em Hamburgo existe uma conta “suja” que seu pai, militar russo da velha guarda, lhe deixou com muitos milhões de euros onde não pensa tocar, mas que quer endereçar aos que sofrem na “sua” Chechénia. Uma instituição de apoio a refugiados e emigrantes manda Annabel, uma jovem advogada alemã especializada em direitos humanos, apoiar Issa e defendê-lo de uma deportação mais que óbvia. Para desenterrar a herança, têm de falar com Tommy Brue, o director do Brue Frères, um banco britânico que no passado tinha ajudado a lavar a fortuna de Karpov. Mas espiões alemães, ingleses e americanos querem chegar a Issa e a outros possíveis contactos muçulmanos acobertados em Hamburgo, com intenções muito precisas.
Curiosamente, num universo de uma total desumanidade e de uma violência extrema, não há uma morte descrita no romance. O clima é de histeria generalizada, onde o leitor não consegue deslindar o verdadeiro do falso, os factos reais das fantasias engendradas pela patologia de uma guerra sem cenário, ou que permite todos os cenários. Escrito de forma magnífica, tensa, comovente, movendo-se entre o Bem e o Mal com uma agilidade desarmante, “Um Homem Muito Procurado” acompanha-se sem descolarmos os olhos das suas páginas. Não é um “simples romance de espionagem”. É um esplêndido romance de um dos grandes escritores actuais sobre o nosso mundo. Muito inquietante, na verdade.

MYRA

“Myra”, de Maria Velho da Costa (Ed. Assírio & Alvim), é outro dos grandes romances deste fim de ano em Portugal. Uma das “Três Marias”, como ficou conhecida desde os anos 70, quando, juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, lançou “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Velho da Costa já tinha atrás de si um belíssimo romance, “Maina Mendes” (1969). Licenciada em Filologia Germânica, professora no ensino secundário, membro da direcção da Associação Portuguesa de Escritores, leitora do Departamento de Português e Brasileiro do King's College, da Universidade de Londres, adjunta do Secretário de Estado da Cultura, em 1979, adida cultural em Cabo Verde, membro integrante da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Maria Velho da Costa trabalha actualmente no Instituto Camões. Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, pelo conjunto da sua obra, em 1997, Prémio Camões, em 2002, a escritora aproximou-se várias vezes do cinema, participando na elaboração de argumentos de filmes de João César Monteiro, Margarida Gil e Alberto Seixas Santos.
“Myra”, seu mais recente romance, é uma obra admirável a vários níveis, que fica a martelar na cabeça do leitor dias a fio. Muito bem escrito, com uma ousadia de termos e de imagens invulgar, que ronda a terminologia arrevesada, mas que pela propriedade se mostra eficaz e colorida, “Myra” é ainda uma envolvente e sedutora história de fadas que termina da pior maneira possível, demonstrando que o reino das fadas e das crónicas de príncipes e princesas é mesmo coisa de “encantar”. Myra é uma menina russa que emigra para Portugal, por onde vagueia sozinha, à mercê dos maiores dissabores e constrangimentos, quando descobre, moribundo, um cão de raça violenta de que se torna amiga. Ambos irão ser adoptados uma e outra vez, ambos viajam com e sem destino pelo país, ambos conhecerão o que terá de ser conhecido por quem ler este brilhante exercício de escrita e de terror. Dois excertos, à laia de exemplo:
“O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e verdes na distância mais clareada do horizonte e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.”
(…) “Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinza na madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono.
Falta o que falta da tua história. E o Sr. Kleber sorriu.
Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta do paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.”
A não perder.

EM BUSCA DO GRANDE PEIXE

“Em Busca do Grande Peixe”, de David Lynch (Ed. Estrela Polar, 2008), é um livro de certa forma desconcertante. Tanto aborda o seu processo criativo, como se apruma como obra de bons conselhos iniciáticos, para quem a meditação é um fenómeno essencial, como base de enriquecimento da sua consciência pessoal e como aspecto fundamental para a sua criatividade. Mas não se trata de um qualquer tipo de meditação, mas sim da “Meditação Transcendental”, promovida pela “Foundation for Consciousness-Based Education and World Peace”, entidade a que destina os lucros da edição internacional desta obra, com o objectivo de angariar fundos para incentivar novos programas nas escolas de todo o mundo.
“As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos de ir mais fundo. Nas águas profundas, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstractos. E são muito bonitos.” Esta a ideia condutora da obra, que, todavia, conta casos concretos da concepção de certos momentos da sua obra como realizador, dos mais representativos e considerados da actualidade. Pode parecer um livro de “auto-ajuda” e é-o, sem dúvida, mas escrito por uma personalidade fascinante.
Leia-se o que David Lynch confessou a um jornalista brasileiro sobre “Meditação Transcendental”: “A meditação transcendental é uma técnica mental, uma forma antiga de meditação, trazida para o nosso tempo pelo Yogi Maharishi Mahesh. Qualquer ser humano pode usar essa técnica, se achar a chave para abrir a porta para o mais profundo nível da vida. Ciência moderna unida ao antigo oceano da pura consciência vibrante e amplamente desperta, que sempre existiu. Campo eterno, campo infinito, sem limites, que se baseia em matéria e mente. Você tem um mantra, um som bem específico de vibrações e pensamentos.
O mantra de Maharishi torna a consciência interna num mergulho natural nos profundos níveis da mente e do intelecto e então transcende. Experimenta esse oceano, experimenta uma consciência viva e todas essas qualidades positivas. Tudo que na sua vida foi sempre igual passa a expandir-se, todas essas qualidades positivas passam a expandir-se. Em pouco tempo, a vida torna-se muito boa. (…) Um mantra é uma coisa muito preciosa, ele tem que ser um suporte para a vida em todos os níveis profundos.
“ (…) Totalmente desperto é esclarecedor, e o esclarecimento é a única maneira de estar realmente desperto. Todo ser humano tem esse potencial. O potencial total do ser humano é chamado de esclarecimento. Mas precisamos desdobrar isso. Os efeitos colaterais de expandir o esclarecimento são o fim dos pensamentos negativos. Nas escolas há muito stress, muitos problemas. Eles levam os problemas para casa, depois trazem os problemas de casa de volta à escola, é um pesadelo. Passaram a existir dezasseis escolas nos EUA. Um ano antes de começarem, havia violência, tiroteio, facadas, suicídios, stress, stress e mais stress. Aprendia-se muito pouco. Eles começaram a usar a meditação transcendental há um ano e tudo mudou radicalmente. Passaram a ser escolas que todos gostariam de frequentar, as brigas acabaram, as revoltas também. As relações pessoais melhoraram.(…) Não é uma religião. Não é contra nenhuma religião. Não é um culto. É próprio do ser humano. As pessoas passam a falar. Você passa a ouvir mais e mais histórias. Não é uma coisa estranha, é uma coisa do ser humano. Achavam que meditação é muito estranho para usar em escolas e agora descobrem que estranho é não usa-la nas escolas.”
Este lado de “Em Busca do Grande Peixe” é interessante e sabemos que David Lynch não é um charlatão e está sinceramente a falar de algo que conhece e diariamente experimenta. Por outro lado, as pequenas “narrativas” de memórias cinematográficas do cineasta, essas são a não perder.

DUST

“Dust”, de Martha Grimes, é outro policial da Ed. Estampa, colecção Sombra de Dúvida, onde eu descobrira um magnifico “Marcado para Morrer”, de que já aqui falei. Pois “Dust”, nome de bar, não se aproxima da qualidade da obra de John Dunning, apesar de lhe ser aparentado no gosto pela literatura. Desta feita a intriga gira à volta do assassinato de um jovem celibatário, que é baleado num quarto de hotel, a poucos metros da casa onde vive, e a meio de uma refeição. Richard Jury, superintendente da Scotland Yard, chamado por um jovem de treze anos, seu amigo, Benny Keegan, começa a investigação que no entanto tem na inspectora Lu Aguilar, da polícia local, uma mulher surpreendentemente erótica que, cada vez que encontra Jury, o derruba com uma frontalidade e violência que põe o prédio onde este habita em polvorosa.
Billy Maples, assim se chamava a vítima, tomava conta de uma casa museu de Henry James. Aqui entra a atracção pela literatura que vem contagiando dezenas de policiais recentes. Mas desta vez essa atracção foi relativamente fatal para o romance. Martha Grimes deixa-se enredar por toda essa fancaria exterior ao nervo do romance e este não anda nem desanda durante um número excessivo de páginas. O resultado é frustrante. O que para um policial, é… frustrante..

DAR AS ENTRADAS A 2009, 2

sexta-feira, dezembro 26, 2008

MORREU HAROLD PINTER

HOMENAGEM A HAROLD PINTER
Ontem, 25 de Dezembro de 2008, morreu Harold Pinter, com 78 anos, Prémio Nobel da Literatura de 2005, e um dos mais importantes escritores, dramaturgos, intelectuais ingleses e europeus das últimas décadas. Em 2006 foi homenageado no Famafest (Festival de Cinema e Vídeo de Famalicão, dedicado a "Cinema e Literatura").
Aqui deixamos alguns dos textos então publicados no programa do Festival, onde se destaca uma filmografia de Harold Pinter como escritor (adaptado), argumentista, realizador e actor.
Os textos relativos a esta homenagem podem ser lidos no Blogue FAMAFEST 2009
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DAR AS ENTRADAS A 2009, 1



terça-feira, dezembro 23, 2008

NATAL

votos de um Feliz Natal e de um 2009 em GRANDE
para todos os amigos e leitores regulares
(ou acidentais) deste blogue.
Um abraço especial para os seguidores.

NATAL, 21

segunda-feira, dezembro 22, 2008

MAIS EDGAR ALLAN POE NO CINEMA

A QUEDA DA CASA USHER
“A Queda da Casa Usher”, que Edgar Allan Poe escreveu em 1839, é um dos seus trabalhos mais conhecidos e mais adaptados não só ao cinema como a outras formas de expressão e de narrativa. No cinema são inúmeras as versões conhecidas, a começar logo perla década de 20, onde surgem duas adaptações vanguardistas, uma americana, de 1926-28, da dupla James Sibley Watson e Melville Webber, outra francesa, de um dos nomes grandes da vanguarda dessa época, Jean Epstein. A primeira é uma curiosa experiência de recorte nitidamente expressionista, filmada em Rocheter, Nova Iorque, com uma forte influência de poetas e artistas plásticos, expressa aliás na colaboração de Melville Webber, que assegurou o lado plástico, procurando recuperar certos aspectos dos frescos medievais, e de James Sibley Watson, que se interessou mais pelos efeitos visuais em que o pequeno filme (13 minutos) é pródigo e que logram efeitos muito sugestivos. “A Queda da Casa de Usher” (La Chute de la Maison Usher), de 1928, em França, tem argumento de Jean Epstein e Luis Buñuel (que foi ainda assistente de realização) e interpretação de Jean Debucourt (Sir Roderick Usher), Marguerite Gance (Madeleine Usher), Charles Lamy (Allan), Fournez-Goffard (médico), Luc Dartagnan, Abel Gance, Halma, Pierre Hot, Pierre Kefer, etc. São 63 minutos do melhor que Poe inspirou ao cinema, criando uma atmosfera fantástica que sobe até ao horror e define estados de degradação psicológica e física de forma muito conseguida. Há quem o defina os seus efeitos como “opressivos e por vezes insuportáveis”, onde “impera o macabro de forma poderosa”, “neste fluxo de violência de som e imagem, seja na absurda tristeza implícita no facto de um homem tentar sofregamente preservar a beleza da mulher, à beira da morte, na tinta de um quadro, sem perceber que de certa forma a está matando para compor sua obra de arte.” Jean Debucourt é irresistivelmente tétrico, maldito. “O bailado da ventania e o dançar enfeitiçado das cortinas e das folhas secas nos corredores mortos da velha mansão são percorridos, em certo momento, rente ao piso pela lente de Epstein, como se um demónio sempre impregnado naquelas paredes enfim se libertasse e rodeasse doidamente os quartos. É assombroso. Assim como toda a maligna e nociva sequência do carregamento do caixão, onde a banda sonora não apenas vive, mas se enfurece como se agisse contra aqueles homens no rito fúnebre sobreposto de velas por Epstein, um recurso que hoje poderia parecer até mesmo ingénuo, mas que afunila a atmosfera e comprime e apreende o espectador.” “The Fall of the House of Usher” regressa aos ecrãs, em 1949, com assinatura de Ivan Barnett, numa produção inglesa. Que desconhecemos.
(...) Falemos então do conto, antes de passarmos à versão cinematográfica. Na obra de Poe, o narrador que viaja até casa dos Ushers empreende essa viagem para visitar um velho amigo de juventude, Roderick Usher, que não via há muito, e que lhe escrevera a solicitar companhia nos momentos difíceis por que passava, por motivos de saúde própria e de sua irmã, Madeline. É deste modo que o cavaleiro se aproxima da destroçada casa dos Usher, por caminhos de mau agoiro, como que hipnotizado pelo destino que ali o conduz. No filme Philip Winthrop viaja até àquela mansão amaldiçoada porque se encontra noivo de Madeline, Roderick pede-lhe que se afaste, manda-o embora, insiste, exorta-o, mas Philip permanece na sua, querendo ir embora apenas se for acompanhado da sua amada. Depois, no conto, há várias personagens que se cruzam na casa, no filme quase toda a acção roda à volta de Roderick, Madeline, Philip e um velho criado da casa. Todo o conto é muito intimista, referindo-se a pensamentos de Philip e às considerações de Roderick, que se voltam muito para ele próprio. Trata-se quase de um confronto de duas mentes, de duas vontades, de dois projectos. No filme, obviamente que as acções de concretizam mais no plano da realidade. Corman “mostra” onde Poe evoca, mas a transposição não deixa de ser não só eficaz como mesmo sugestiva. Corman é um cineasta como uma sensibilidade que se coaduna bem com os ambientes e as personagens criadas por Poe, desenvolve climas de um fantástico inquietante sem jogar no primarismo do sangue a jorros e dos efeitos em catadupa, explora sobretudo o suspense perturbador, através de efeitos puramente plásticos, a duração do plano, do movimento, a utilização da banda sonora, o recurso à interpretação. O filme baseia-se, sobretudo, em quatro personagens e uma casa, um palácio à beira da ruína, atravessado por fendas que, hora a hora, vão criando clivagens mais aterrorizadoras, enterrando-se progressivamente num pântano onde a natureza fenece e nada se cria. É a maldição dos Usher a estender-se à paisagem ou esta a estrangular a família no interior do seu palácio a desmoronar-se. Casa e família sucumbem ao mesmo mal. Roderick Usher lamenta-se de uma absoluta hipersensibilidade, algo que quase não o permite contactar com o mundo exterior, uma luz mais intensa violenta-lhe os olhos, qualquer pequeno som atravessa-lhe os tímpanos como um trovão, um sabor mais forte atormenta-o, só suporta tecidos de uma macieza rara, move-se como que pairando sobre o chão… Madeleine parece atreita ao mesmo mal, ambos se declaram, pela voz de Roderick, próximos da morte. Por isso Roderick não permite a Philip partir com a sua amada, que, no entanto, não parece assumir a mesma atitude. Mas a vontade de Roderick é mais forte, e a maldição estende-se sobre o palácio, que no final conhecerá uma dupla “morte”, incendiado e submergido nas águas do pântano, enquanto temas como o incesto e a catalepsia se assenhoreiam da obra e os sepultados vivos saem das criptas com as mãos ensanguentadas e as gargantas roucas de gritarem por socorro. Puro terror de criação Edgar Allan Poe muito bem recriado pela fantasia e o competente talento de Corman, a sua enorme economia de meios, o seu bom gosto visual, o refinamento de um estilo que não pode deixar-se de sublinhar.
A economia de meios é de tal forma que um filme destes é rodado em menos de duas semanas, outro se lhe segue de imediato, rodado com a mesma equipa, um elenco semelhante, os mesmos cenários, iguais adereços e guarda-roupa, de forma a que essa produção continua embarateça o orçamento, permitindo o talento de Corman que estas produções de série B sobrevivam como clássicos e filmes de culto que mantêm, quase cinquenta anos depois, toda a sua magia. (...)
(ver abordagem completa em MEIA NOITE FANTÁSTICA

NATAL, 20

sábado, dezembro 20, 2008

NATAL NO VAVADIANDO

O ESPÍRITO DE NATAL
Todos os anos por esta altura se ouvem as ladainhas do costume: ou se trocam presentes apressados e se louvam hipocritamente as delícias da quadra, ou, pelo contrário, se invectiva a quadra por isso mesmo, por obrigar a uma data, por impor uma felicidade que não existe, por mentir descaradamente sobre os sentimentos e as emoções, por compelir a um amor ao próximo que se não sente, por obrigar a despesas supérfluas, por gerar um consumo despropositado, enquanto lá fora, por esse mundo fora se mendiga uma côdea de pão, se morre desfigurado de qualquer humanidade.
Todos têm e não têm razão, ao que suponho. Há dias, num centro comercial, uma família fazia compras de Natal e derrotava todas as ideias que se possam ter sobre o Natal. O pai irado, enxotava o filho que queria comprar um presente para um amigo, gritando-lhe em altos berros: “Coisas caras que lhe comprem os pais, que têm dinheiro para isso. Dá-lhe uma merda qualquer que já chega!” Aqui está o espírito de Natal que não vinga. Uma “merda qualquer” pode chegar sim, se dada com alguma emoção, aquela que a criança põe no desenho canhestro com que pinta uma árvore de Natal e a oferece a quem a merece segundo o seu coração. Mas nem a prenda mais cara do mundo chegará se for escolhida com a indiferença de quem arruma rapidamente uma questão incómoda que urge extirpar como um cancro. Este não é o espírito de Natal e quem não o sente, melhor fora que passasse longe do sapatinho e, se possível, se recolhesse frente ao presépio, implorando uma qualquer bênção que lhe caísse de um qualquer céu, cristão ou agnóstico.
Porque o espírito do Natal tem tudo a ver com uma certa religião, mas deveria ter sobretudo a ver com uma humanidade que todos deveríamos sentir. Todos os dias, seria o ideal, mas pelo menos nalguns dias do ano, para tornar mais habitável o planeta. Muito me espantaria se quem não é capaz de sentir esse espírito do Natal na quadra obrigatória, o fosse sentir durante o resto do ano.
Também há os que protestam sempre que chega a euforia das iluminações e dos cânticos de Natal, do lufa-lufa das compras e dos jantares de confraternização, quando se sentem explorados durante todo o tempo, injustiçados com a vida, envoltos num negrume sem esperança e isentos de toda a capacidade de ouvir o que quer que seja que os faça felizes. Compreende-se que existam e se afirmem nesta altura esses “condenados na terra” que nada têm e que sentem agravada a sua injustiça perante a indiferença de quem os olha como se não os visse.
O que julgo, porém, ser de louvar e sublinhar nesta quadra é precisamente esse renovar recorrente, ano após ano, de uma esperança em melhores dias que não esmorece, esse desejo de transformação, essa prática saudável de aquecer o coração quando os dias se tornam mais frios e as noites mais escuras. Há sempre uma estrela algures no céu, há sempre umas palhinhas acolhedoras, há sempre um milagre, divino ou humano, que se espera, por mais terríveis que sejam os cenários de guerra, por mais descorçoantes que sejam as crises, provocadas por esbanjadores do alheio, por mais arbitrárias que sejam as desilusões do dia a dia. O espírito do Natal tem de fazer parte dessa humanidade que não pode fugir do aconchego da nossa consciência de homens. E de homens solidários. O espírito de Natal tem de ser entendido como algo de autenticamente revolucionário, que nos ensina a resistir à adversidade e nos testa quotidianamente na nossa mais genuína fraternidade. Resistir aos tempos que nos querem matar o que de humano existe em nós, essa é a matéria dos sonhos que nos devem mover. Resistir às intempéries da venalidade, da boçalidade, da brutalidade, da desumanidade. O espírito de Natal é o que leva os poetas a nunca esquecer o horror, mas a desenhar grinaldas de esperança, lá onde só parece existir o desespero.
Por isso aqui estamos, com este “espírito de Natal” que irmana num mesmo pensamento e numa mesma emoção os que acreditam no mágico “Menino de Belém” e os que só vêem “o seu menino”, aquele que nasceu na maternidade da sua cidade, ou nas humildes palhinhas de uma choça africana do Darfur, entre lençóis de deslumbrantes e acariciantes tecidos, ou por entre os bombardeamentos no Iraque e de todos os outros Iraques deste nosso mundo. O espírito do Natal é essa insistência inusitada na vida, mesmo quando se sabe a inexorabilidade da morte. Essa resistência quase insana numa luta diária por uma dignidade humana, mesmo quando a vemos espezinhada a toda a hora em nome dos mais altos desígnios, mas afinal ao serviço dos mais ímpios dos propósitos.
Resistir é a palavra. Que só os poetas conhecem. Como, por exemplo, José Régio:
"NATAL"
Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!

Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, - do fundo
Da miséria que somos.

Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos - não uma vez, mas cada -
Teus assassinos.

À tua mesa nos sentamos;
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.

Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclama;
Te rogamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infame.

Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos.
A nossa corrupção.

Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comédia, a tua túnica.

Tais somos, os que, por costume,
Vimos mais uma vez,
Aquecer-nos ao lume
Que do teu frio e solidão nos dês.

Como é que ainda tens a infinita paciência
De voltar, e - te esqueces
De que a nossa indigência
Recusa tudo que lhe ofereces?

Mas, se um ano tu deixas de nascer,
Se de vez se nos calar a tua voz,
Se enfim por nós desistes de morrer,
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?!


Lisboa, Vavadiando, 19 de Dezembro de 2009 / Texto LA. Fotos MEC

NATAL, 18

terça-feira, dezembro 16, 2008

NATAL, 14

EDGAR ALLAN POE NO CINEMA

"THE MANSION OF MADNESS"
Em 1844, Edgar Allan Poe escreveu “The System of Dr. Tarr and Professor Fether” (Feather)”, um conto inicialmente aparecido no nº 5 do vol. XXVIII, da revista “ Graham’s Magazine” (de Novembro), e posteriormente integrado no volume de “Histórias Grotescas e Sérias”. Trata-se de uma obra particularmente interessante, parodiando algumas teorias em voga na altura sobre o tratamento da loucura. O conto, escrito na primeira pessoa do singular por um narrador que visita um castelo isolado, situado numa das províncias do extremo sul de França, onde encontra um estranho Dr. M. Maillard que aí dirige um manicómio, aborda de forma parabólica e algo satírica, a teoria da cura em liberdade, o “sistema da doçura”, no qual os pacientes não são contrariados nas suas alucinações e fantasias, mas antes impulsionados a satisfazer os seus instintos, procurando “curá-los” pelo absurdo. Se alguém pensa ser um galo, pois que se alimente de milho e farináceos, e logo perderá a loucura. O sistema parece, no entanto, não funcionar muito bem, apesar da áurea ganha nos meios científicos, na explicação de Maillard, que leva o visitante a percorrer as instalações da instituição, onde aparecem estranhas personagens, que se reúnem num jantar pantagruélico. É nessa altura que o narrador percebe que, durante a vigência do “sistema da doçura”, os internados se tinham revoltado, encarcerado médicos e enfermeiros e tomado conta do castelo que agora administravam com “um grão de loucura”.
Este conto está na base de um filme mexicano muito curioso, datado de 1973, que se passa em França (como no original de Poe), mas que foi rodado no México, falado em inglês, dirigido por um mítico Juan López Moctezuma e que conheceu vários títulos: “The Mansion of Madness”, “Dr. Goudron's System”, “Dr. Tarr's Pit of Horrors”, “Dr. Tarr's Torture Dungeon”, “Edgar Allan Poe: Dr. Tarr's Torture Dungeon”, “House of Madness”, “La Mansión de la Locura” ou “The System of Dr. Tarr and Professor Feather”. Juan López Moctezuma é herdeiro de uma tradição mexicana de filmes de terror, que teve na presença de Luís Buñuel neste país uma forte motivação para uma inspiração surrealista e anti clerical. Moctezuma foi colaborador de Alejandro Jodorowsky, conheceu Fernando Arrabal e pode dizer-se que fez parte de um grupo que nos anos 60-70 se intitulou “Panic”, onde militava ainda Roland Topor. O “Movimento Pânico” tinha como musa a deusa Pã e uma forte influência de Buñuel e dos surrealistas franceses, bem assim como do teatro da crueldade de Antonin Artaud. A proposta era anárquica, surreal, caótica, libertina, fantástica, grotesca, libertadora… Durou mais ou menos até 1973.
(Continua no blogue MEIA NOITE FANTÁSTICA)

domingo, dezembro 14, 2008

UM VIOLINO NO TELHADO, I

UM VIOLINO NO TELHADO
No palco em Portugal
“Um Violino no Telhado”, em cena no palco do Teatro Rivoli, no Porto, é, creio que sem dúvidas, o melhor musical até hoje encenado por Filipe La Féria. Já escrevi bastante sobre a peça e o filme num texto que surge no programa do Rivoli, interessa-me agora abordar a versão portuguesa. Desde logo um cenário e um guarda-roupa deslumbrantes, de um extremo bom gosto. Depois um jogo de luzes magnifico e um trabalho de actores invulgarmente coerente e globalmente de grande qualidade: José Raposo, no protagonista, é magnifico, de vitalidade, vibração, humanidade e humor, Rita Ribeiro muito segura e contida na “mãe” que vai casando as filhas, Joel Branco, numa das suas mais logradas actuações, José Pinto, fulgurantes em curtas aparições como “Rabi”, Hugo Rendas, igualmente numa das suas melhores prestações, num elenco onde ainda se podem e devem citar Sara Lima, Ruben Madureira, Helena Rocha, Sissi Martins, Carlos Meireles, Alexandre Falcão, entre muitos outros.
Ao todo são 58 actores, cantores, bailarinos e músicos, a maioria dos quais oriundos do Norte. Da Ucrânia surgiu o grupo de bailarinos que interpretam os cossacos. Excelentes.
Num teatro a rebentar pelas costuras (numa quarta-feira), com gente de todos os estratos sociais, com os rostos felizes dos espectadores a acompanharem com um visível prazer o que lhes era dado ver no palco, com muita gente nova no público (quem disse que o musical era coisa de terceira idade não sabe do que fala!), este foi o espectáculo que sabe bem ver e sabe bem saber que existe. Teatro do melhor, com público do melhor, numa noite memorável do Porto.


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