sexta-feira, julho 17, 2009

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, 11

:
CADERNO DE UM REGRESSO AO PAÍS NATAL
(CAHIER D’UN RETOUR AU PAYS NATAL)
Texto de Aimé Césaire, com encenação de Jacques Martial
Compagnie de la Comédie Noire – Paris, França

Excelente texto, a meio caminho entre o ensaio político e a pura poesia, este “Cahier D’un Retour Au Pays Natal” marca o nascimento do poeta Aimé Cesaire, no ano de 1939. Tinha então o autor 26 anos, e preparava-se para uma longa e vigorosa carreira política e literária, que iriam fazer dele o pai do conceito de “negritude”, um dos mais influentes adversários do colonialismo, um dos maiores poetas de língua francesa do século XX.
Aimé Fernand David Césaire nasceu em 26 de Junho de 1913, em Basse-Pointe, na Martinica, e viria a falecer a 17 de Abril de 2008, em Fort-de-France, na Martinica. Foi presidente da câmara ("prefeito") de Fort-de-France, durante 56 anos, entre 1945 e 2001.
Francês de nacionalidade e de língua, foi um político hábil que defendeu a cultura negra, as raízes africanas, que promoveu a raça negra no mundo, impondo valores e conceitos ligados à sua terra e às suas origens. Defendeu a dignidade e o orgulho de ser negro, mas procurou sempre a dignidade de homem, qualquer que seja a raça ou o credo, afirmando-se como um humanista fraterno. Nas suas obras há um pouco de tudo, da poesia (Cahier d'un retour au pays natal, Paris, 1939 ; Les Armes miraculeuses, 1946 ; Soleil cou coupé, 1947; Corps perdu (com desenhos de Picasso), Paris, 1950; Ferrements, Paris, 1960 ; Cadastre, Paris, 1961 ; Moi, laminaire, Paris, 1982 ; La Poésie, Paris, 1994), ao teatro (Et les chiens se taisaient, Paris, 1958 ; La Tragédie du roi Christophe, Paris, 1963 ; Une saison au Congo, Paris, 1966 ; Une tempête, d'après 'La Tempête de William Shakespeare: adaptation pour un théâtre nègre), Paris, 1969) do ensaio filosófico e social (Esclavage et colonisation, Paris, 1948 ; Discours sur le colonialisme, Paris, 1955 ; Discours sur la négritude, 1950), ao ensaio histórico (Toussaint Louverture, La révolution Française et le problème colonial, Paris, 1962). “Caderno de um Regresso ao País Natal” é um monologo, longo, complexo, elaborado, que coloca em cena um negro, um homem, com as suas interrogações e certezas, exilado dentro de si próprio, que se reencontra quando regressa ao seu país natal, o mesmo é dizer quando se coloca de acordo com as suas raízes, o seu íntimo, os seus antepassados, a sua terra quente e vermelha. O texto é poético, afirma-se como uma melopeia, ouve-se como se de uma cantata se tratasse, por vezes sobressaltada por uma palavra ou um conceito mais forte que impõe um alarme de consciência mais vigilante. A poesia de Aimé Césaire é musical, vibrante, ondulante de cor e de luxúria, inventiva e metafórica. Rapidamente se tornou um símbolo dos povos negros em todo o Mundo. Lê-se no programa do festival: “Poema firmemente enraizado na realidade social, histórica e geográfica das Antilhas Francesas de entre as duas guerras, uma época em que a França e a Europa em geral reinavam como senhores dos seus impérios coloniais, nomeadamente em África e nas Antilhas. Nessa época, as teses racistas de Gobineau, diplomata e escritor francês, alimentavam a filosofia do III Reich, e, no Mississipi, Bessie Smith morria de hemorragia diante de um hospital de brancos que se recusavam a tratá-la.” Para um tal texto apenas um grande intérprete o tornaria suportável em cena, durante quase hora e meia. Assim aconteceu, num fenómeno de simbiose perfeita entre texto e actor. Jacques Martial, actor e encenador, surge num palco quase deserto, apenas um telão pintado ao fundo, três sacos com roupa nos braços, nada mais, e inicia o monólogo de uma vida, de um povo. A dicção não é correcta, é sublimemente exacta, ouvem-se todas as sílabas e não se sente qualquer preciosismo. É perfeita, sim, mas sem se notar o exagero, a procura exacerbada, brota livre. A expressão de Jacques Martial é total, não se fica pela voz e a entoação, mas estende-se a todo o corpo, ele fala com as mãos, as pernas longas, o peito que arfa, o rosto que modula qualquer frase, e a recria. Mas repito não há aqui qualquer efeito gratuito, qualquer maneirismo de vedeta. Apenas a eficácia perfeita que dá vida a uma texto, sem o usurpar, sem o ofender.
Hora e meia em cena, sem uma bengala de qualquer espécie, sem causar o mínimo cansaço no espectador, é obra. Jacques Martial, nascido em Maio de 1955, em Saint-Mandé (Val-de-Marne), de pais originários da Guadalupe, é brilhante. Ostenta uma carreira notável, no teatro, no cinema, na televisão (muito conhecido pelo papel de Bain-Marie na série policial “Navarro”, ao lado de Roger Hanin) e é, desde 2006, presidente do parque e da sala de espectáculos de La Villette, uma das mais apetecíveis e importantes estruturas culturais de França (e do mundo). Professor de teatro, fundador da Compagnie de la Comédie Noire, criador da associação Rond Point des Cultures, que trabalha, em prole das minorias e da cultura ultramarina francesa, de colaboração com o Théâtre du Rond Point, Jacques Martial é um artista multifacetado, que rapidamente vemos ora em “Moonraker”, de Lewis Gilbert, ora num policial de televisão, ora numa tournée mundial com este “Cahier d'un retour au pays natal”, estreado em 2003, e que já passou por Guadalupe, Singapura, Austrália, Fidji, Nova Caledónia, Nova Iorque, Martinica, Paris, e agora Almada.
Belíssima noite de teatro, num ameno espaço, que convidava a olhar as estrelas. Num dia em que o Festival de Teatro de Almada, que já consideram tão importante como Avignon, soube que o subsídio anual da Junta de Turismo da região, passou de 32.000 euros, para 5.000. Mas sobre este episódio falaremos a seguir.

CADERNO DE UM REGRESSO AO PAÍS NATAL (CAHIER D’UN RETOUR AU PAYS NATAL) - Texto de Aimé Césaire, com encenação de Jacques Martial / Compagnie de la Comédie Noire – Paris, França; Intérprete : Jacques Martial; Cenografia: Pierre Attrait; Pintura: Jérôme Boutterin; Adereços: Martine Feraud; Desenho de luz: Jean-Claude Myrtil; Assistente de encenação: Tim Greacen; Assistente de cenografia: Elisabeth Dallier; Duração: 1h20; Classificação: M12.

4 comentários:

S. disse...

Beeeeeeemmmmmm.... isso é que tem sido ir ao teatro.
E.U.A. - Almada, Almada - E.U.A., E.U.A. - Almada, Almada - E.U.A., E.U.A. - Almada, Almada - E.U.A., E.U.A. - Almada, Almada - E.U.A.....

muita cóóóóltura!

Beijo
S.

Ado disse...

Sublime, de facto!
Suspeito que para a edição do ano que vem poderemos de novo ver esta peça como espectáculo de honra...

Lauro António disse...

S. na verdade só de jacto, mas tem valido a pena. beijo.

Maria Eduarda Colares disse...

Falamos do grande teatro que se vê nos grandes festivais e queixamo-nos de que nós tão longe. Afinal, Almada aqui tão perto e definitivamente no roteiro dos grandes palcos! Parabéns pela cobertura incansável e lúcida. O que merece, merece!