domingo, julho 11, 2010

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, NOTAS, 3

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CARMEN. EUNICE. MARIA:
CANTOS NO PALCO DE ALMADA

Um acontecimento. Que apenas o público presente na sala esgotada, a rebentar pelas costuras, do Teatro Municipal de Almada teve oportunidade de presenciar. Eram muitos, mas deviam ser milhões. Acontecimentos como este deviam ser abertos a todos, a toda a Humanidade.
Era o dia 10 de Julho de 2010, passava pouco das 20 horas e 30 minutos, e o pano subiu sobre um vasto e austero palco deserto e negro, apenas habitado por uma mesa comprida, onde se pressentiam, sentados, três vultos que outros tantos holofotes, pendentes da teia, irão lentamente iluminar.
Percebemos o que esperávamos perceber, e ao que íamos, mas a força do primeiro impacto causa surpresa e emudece a plateia: estavam ali as três maiores actrizes vivas do teatro e do cinema português. Apenas Carmen Dolores, Eunice Munoz e Maria Barroso.
Um dos focos de luz sobe de intensidade, os outros quase se abafam. Carmen recita o seu primeiro poema, Depois outro. O foco seguinte incendeia Eunice, dois poemas. Finalmente uma terceira projecção de luz isola a voz e os gestos de Maria Barroso. Cada uma escolheu os “seus” poemas. Sem conhecimento das restantes. Curiosamente, ao fim de pouco mais de uma hora, cada uma delas deu corpo a uma personalidade, uma sensibilidade, um projecto de vida e de poesia. A emoção mais lírica de Carmen, o surrealismo desconcertante de Eunice, a poesia solidária das grandes causas de Maria.
Em todas elas, a mesma forma de encantar pela magia da palavra, pela perturbada e pura emoção, pelo primor da dicção, pela ofuscante presença. São três divas, que o seriam em qualquer parte do mundo. Mas são portuguesas, nossas, falam a nossa língua, dizem de nós e dos nossos problemas, passados, presentes, futuros. Das suas bocas sai o eco do humano absoluto. Da alegria e da angústia de existir, de existir poeticamente.
Estão juntas pela primeira vez, as três. Joaquim Benite e o seu Festival de Teatro de Almada conseguiram mais este feito. Ele as dirigiu discretamente, pontuando a ordem do espectáculo, criando o cenário, e libertando as vozes. O essencial. Depois, deixar jorrar livremente a corrente do talento, secreto, íntimo, aqui pudico, ali avassalador, segredado muitas vezes, gritado quase nunca, versos de poetas vários, dos mais célebres a alguns menos conhecidos, dos amargurados pela ansiedade da solidão, aos revoltados pela opressão. Do eu ao nós. Redescobrindo a nossa voz de cidadãos do mundo e de poetas das nossas próprias vidas. Mesmo que as palavras sejam de poetas.
Um momento único na história do teatro português. Posso dizer: eu estive lá e vi e ouvi. Obrigado Carmen Dolores, Eunice Muñoz e Maria Barroso.

Carmen.Eunice.Maria. Cantos no palco de Almada
Direcção: Joaquim Benite; Intérpretes: Carmen Dolores, Eunice Muñoz, Maria Barroso
Duração: 1H00 (aprox.); Classificação M/ 12; Teatro Municipal de Almada, Sala Principal

Carmen Dolores iniciou a sua carreira na rádio, ganhando grande visibilidade no cinema: foi primeiro Teresa de Albuquerque, no filme “Amor de perdição” (1943) de António Lopes Ribeiro, e, três anos mais tarde, interpretou Catarina de Ataíde (Natércia) em “Camões”, de Leitão de Barros. Entretanto, estreia-se em palco em 1945, no Teatro da Trindade, em “Electra, a mensageira dos deuses”, de Jean Giraudoux, ao lado de actores como Lucília Simões, Francisco Ribeiro (Ribeirinho) ou João Villaret, num espectáculo de Os Comediantes de Lisboa. Em 1959 ganhou o Prémio de Melhor Actriz pelo seu desempenho da «enteada», na montagem que Gino Saviotti fez da peça “Seis personagens à procura de um autor”, de Luigi Pirandello, no Theatro Avenida. Juntamente com Armando Cortez, Fernando Gusmão, Costa Ferreira, Rogério Paulo, Armando Caldas e Ruy de Carvalho, Carmen Dolores funda em 1961 o inovador Teatro Moderno de Lisboa. Protagonizou centenas de peças do melhor reportório português e internacional, permanecendo D. Madalena, de “Frei Luís de Sousa”, como uma das suas mais memoráveis criações.

Eunice Muñoz estreou-se em 1941 no Teatro Nacional D. Maria II, com a peça “Vendaval”, de Virgínia Vitorino, num espectáculo dirigido e também interpretado por Amélia Rey Colaço (além de actrizes como Palmira Bastos ou Maria Lalande). A rápida afirmação do seu talento – em espectáculos como “Raparigas modernas”, de Leandro Navarro, ao lado de Irene Isidro, ou “Frei Luiz de Sousa”, de Almeida Garrett (foi Maria, sob direcção de Amélia Rey Colaço) – abre-lhe as portas do cinema, participando em “Camões” (1946), ao lado de Carmen Dolores (o desempenho de Beatriz da Silva valeu-lhe o Prémio de Melhor Actriz Cinematográfica do Ano), o que mais tarde voltaria a ganhar, em “Manhã Submersa” (1980), de Lauro António. Trabalha com importantes renovadores do teatro, destacando-se António Pedro, na Companhia do Teatro Ginásio, e Ribeirinho, no Teatro Nacional Popular. Se a protagonista de “Joana d’Arc” (1955), de Jean Anouilh, e Claire de “As criadas”, de Jean Genet – ao lado de Glicínia Quartin e Lourdes Norberto, na estreia da peça em Portugal, em 1972, com o Teatro Experimental de Cascais e sob direcção de Victor Garcia – são marcos fundamentais da sua carreira, ficou célebre o seu desempenho da personagem principal de “Mãe coragem e os seus filhos” (1986), de Bertolt Brecht, sob a direcção de João Lourenço.

Maria Barroso também fez a sua estreia na Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, em 1943, deixando o Teatro Nacional D. Maria II ao fim de quatro anos, por imposta proibição de exercer a profissão, durante o regime de Salazar. Nessa breve passagem pelo Teatro Nacional destacou-se o seu desempenho em “A casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca (1948), “Paulina vestida de azul”, de Joaquim Paço D’Arcos (1948) e – sobretudo – na protagonista de “Benilde ou a Virgem Mãe” (1946), de José Régio (Manoel de Oliveira baseou-se na peça para o seu filme homónimo de 1975, no qual Maria Barroso participou, interpretando desta vez a governanta Genoveva). Regressou apenas duas vezes aos palcos nos anos 60, em espectáculos da companhia Teatro do Nosso Tempo, dirigidos por Jacinto Ramos (em 1965, participou em “Antígona”, de Jean Anouilh, e em “O Segredo”, de Henry James e Michael Redgrave). As conhecidas vicissitudes familiares desta incansável resistente política e cívica não lhe permitiram a prossecução de tão prometedora carreira teatral, decidindo Maria Barroso tornar o seu enorme gosto pela declamação de poesia – nomeadamente dos autores que integraram o movimento impulsionado pela publicação do Novo Cancioneiro, em 1941 – uma poderosa arma de resistência à ditadura e de educação pela arte, que cultivou
apaixonadamente.

1 comentário:

Ana Paula Sena disse...

Obrigada, Lauro António, por partilhar essa experiência.

O seu é um bonito texto de homenagem.

Gostei muito de o ler.

Abraço