A ÁRVORE DA VIDA
“The Tree of Life”, de Terrence Malick, é um acontecimento. Como o foram todos os seus (raros) filmes anteriores. Este é um daqueles autores que prepara minuciosamente cada nova obra, desde a sua estreia na longa-metragem, com o magnífico “Noivos Sangrentos” (1973), passando por “Dias do Paraíso” (1978), “A Barreira Invisível” (1998), ou “O Novo Mundo” (2005), até chegar a este estranho, fascinante e estimulante “A Árvore da Vida” (2011). Agora, como que a contrariar tudo o que se conhecia dele até aqui, anunciam-se quatro novos títulos para os próximos dois anos: “Voyage of Time”, “Lawless”, “Knight of Cups” e um projecto que se conhece apenas pela designação “Untitled Terrence Malick Project”.
O filme começa com uma citação do livro de Job: “Onde estavas quando lancei as fundações da Terra? Entre as aclamações das estrelas da manhã e o aplauso de todos os filhos de Deus?” Claro que este é um filme que invoca a presença (ou a ausência) de Deus, mas é mais uma obra de onde ressaltam as dúvidas e as incertezas, as reticências numa resposta única, do que uma afirmação indubitável de fé divina.
“A Árvore da Vida” pode ser aqui uma metáfora metafísica ou espiritual, uma resposta científica, ou simplesmente a árvore que se planta no quintal e que vai crescer acompanhando o crescimento dos filhos do casal O’Brien. “A Árvore da Vida” é o elogio da vida e da natureza, mas também do apogeu da Graça. Dizem-nos logo no início que umas freiras, algures, ensinaram que existiam dois caminhos, “o da Natureza e o da Graça”. Mais tarde, descreve-se o casal O’Brien como sendo o pai um símbolo da Natureza e a mãe, da Graça. Assistimos, entretanto, ao nascimento da Terra e acompanhamo-la do “Bing Bang” até à actualidade. Vemos a brutalidade do fogo e da lava em explosão, mas também a harmonia da paisagem, a beleza verde dos campos e das árvores, o amarelo dos girassóis, o azul da água, a aragem a percorrer as areias douradas dos desertos, lentamente vamos entrando nessa melopeia de imagens e sons, de movimentos de câmara e de ritmos musicais que nos restituem o mundo no seu esplendor. Percebe-se que a Graça e a Natureza coexistem, são um casal, e ambos querem o melhor para os seus filhos, ainda que por caminhos diversos, por vezes até antagónicos.
O pai (um magnífico Brad Pitt) é austero, rigoroso, por vezes violento na sua educação formal. Sabe-se que vem de uma existência traumatizante, está habituado ao “struggle for life”, que é a base da filosofia de vida dos americanos, há que ser forte para derrotar os adversários, há que olhá-los de frente, mostrar se possível fraqueza para depois aplicar o golpe definitivo. É isso que ensina aos filhos, muito embora gostasse de ter sido músico, possivelmente escrever e reescrever dezenas de vezes uma obra-prima e depois dizer “Podia estar melhor”. Mas os caminhos da sua árvore da vida foram outros e vê-se humilhado no final da carreira, despedido, obrigado a mudar de casa, depois de ter perdido um dos seus três filhos.
A mãe (essa portentosa Jessica Chastain) é a Graça, o espírito, as saias a que se agarram os filhos, o colo a que recolhem, o doce olhar que os ampara, o choro convulsivo quando lhe é transmitida a funesta notícia da morte do filho, o andar desamparado pelas ruas de Smithville (uma cidadezinha perto de Austen, no Texas, corria a década de 50 do século passado). Ela é aquela que para os olhos de um dos filhos não foi: “deixaste que ele (o pai) fizesse de ti o que ele quis. Eu não vou fazer nada do que disserem.” Mas a mulher é a Graça, a presença etérea do espírito materno, a mãe terra, a procriadora, aquela de cujo ventre sai o futuro. Um pezinho de bebé, acolhido entre as mãos dos que o amavam antes dele nascer, e o vão preparar para a vida, para o confronto com a Natureza e com a Graça, com o meio físico e a espiritualidade. Afinal, a dualidade que todos nós enfrentamos quando entramos neste planeta onde a beleza extravasa do exterior para o interior (quase todos os cenários são limitados por vidros, que trazem para o interior das casas a paisagem exterior, quer ela seja dos verdes e azuis da paisagem natural, quer a do aço, do vidro ou do cimento da paisagem urbana das grandes metrópoles).
Terrence Malick aposta numa religião, a do amor: “A única forma de ser feliz é amando. Se amares, a vida passa num segundo.” Mas nem tudo é simples e por vezes a paisagem é de rochas inóspitas que é preciso atravessar. “Vejam a Glória que nos rodeia”, mas logo acrescentam que, por vezes, se vive “na vergonha”. É Jack (Sean Penn), o irmão mais velho, que vive por entre arranha-céus e que grita contra “este mundo está entregue à bicharada, onde campeia a ganância”, que, no final, invoca o irmão perdido, pedindo-lhe: “Irmão, cuida de nós, Orienta-nos. Até ao fim dos tempos.”
Religião? Alguém tenta confortar os familiares, dizendo, após a morte do filho: “Ele está agora nas mãos de Deus!”, ao que lhe respondem com uma inquietante pergunta: “Não esteve ele sempre nas mãos de Deus?”.
“A Árvore da Vida” não é um simples filme. É uma experiência que se atravessa, se vive. Parece-me ter muito de autobiográfico, por muito pouco que se saiba de Terrence Malick, um autor que quase não fala de si, se recusa a dar entrevistas, vive recolhido, e de quem se conhece uma única fotografia. Há quem diga que nasceu em Ottawa, Illinois, outros afiançam que foi em Waco, Texas, filho de Emil Malick, um geólogo austero, proveniente de uma família imigrante, iraniana. A mãe foi Irene Malick, de quem guarda boas recordações. Toda a sua infância é passada em ambientes rurais. Teve dois irmãos mais jovens, um dos quais, Larry, estudou música (guitarra) em Segóvia, Espanha, e que se sabe que morreu jovem (talvez suicídio).
Terrence Malick estudou filosofia na Universidade de Harvard, especializando-se em Heidegger, sobre quem escreveu uma tese, “The Essence of Reasons”. Deu aulas de filosofia e de cinema, escreveu artigos para o “Newsweek”, “The New Yorker” e “Life”. Em todos os seus filmes a natureza ocupa um lugar preponderante. Creio que em todos os seus filmes podemos encontrar um pouco de si, da sua vida passada, do seu testemunho filosófico sobre o destino do homem. O que torna as suas obras completamente diferentes de todas as outras. Afinal, o que faz a diferença das obras de arte é o seu cunho pessoal. Se já tudo se disse e se contou, e se nada é novidade na “estória”, o que é único e transmuda as vozes é a sua sinceridade e a sua verdade.
Não há em “A Árvore da Vida” uma narrativa tradicional, cronológica, mas antes um evocar de olhares e palavras, de memórias e emoções, quase todas elas mantidas por Jack O’Brien, que recorda, de forma não linear, figuras, situações, sentimentos, locais, os anos 50, o Texas, a família, o pai e a mãe, os irmãos, as brincadeiras, a natureza, os rios e as árvores, e aquela árvore plantada no jardim… A iniciação.
Admiravelmente fotografado por Emmanuel Lubezki, com uma soberba montagem que demorou dois anos e ocupou o realizador e cinco montadores, “The Tree of Life” é indiscutivelmente um dos grandes filmes, senão o maior, de 2011. É impossível não estabelecer pontos de contacto, mais estilísticos do que temáticos, com “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Kubrick. Nas sequências da criação do mundo, na banda sonora, na utilização da música como suporte e contraponto das imagens. E pode, e deve, dizer-se a fechar (ou a abrir para novos considerandos que nunca se esgotarão nesta obra) que “A Árvore da Vida” é, sobretudo, uma celebração da vida e do amor, um poema, uma elegia, uma meditação, uma reflexão filosófica ou um simples olhar extasiado para a beleza que nos rodeia, e que nem sempre sabemos celebrar.
A ÁRVORE DA VIDA
Título original: The Tree of Life
Realização: Terrence Malick (EUA, 2011); Argumento: Terrence Malick; Produção: Nigel Ashcroft, Ivan Bess, Greg Eliason, Dede Gardner, Nicolas Gonda, Sarah Green, Grant Hill, Susan Kirr, Brad Pitt, Bill Pohlad, Donald Rosenfeld, Paula Mae Schwartz, Steve Schwartz, Sandhya Shardanand; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Emmanuel Lubezki; Montagem: Hank Corwin, Jay Rabinowitz, Daniel Rezende, Billy Weber, Mark Yoshikawa; Casting: Vicky Boone, Francine Maisler; Design de produção: Jack Fisk; Direcção artística: David Crank; Decoração: Jeanette Scott; Guarda-roupa: Jacqueline West; Maquilhagem: Direcção de Produção: Scott E. Chester, Erica Frauman, Frank Hildebrand, Tim Assistentes de realização: Bobby Bastarache, Cleta Elaine Ellington, Scott R. Meyers, Katie Tull; Departamento de arte: Ruth De Jong, Robert K. Weinberger; Som: Erik Aadahl, Craig Berkey, Will Files; Efeitos especiais: Brian Cross, Ryan Roundy; Efeitos visuais: Erin Ferguson, Bradley Friedman, Dan Glass, Alexa Hale, Steve Jaworski, Stephen King, Key Hyung Lee, Eric D Legare, Ruheene Masand, Laurent-Paul Robert, Benson Shum; Animação: Mike Jahnke, Sheldon Kruger, Gary Mau; Companhias de produção: Brace Cove Productions, Cottonwood Pictures, Plan B Entertainment, River Road Entertainment; Intérpretes: Brad Pitt (Mr. O'Brien), Sean Penn (Jack), Jessica Chastain (Mrs. O'Brien), Hunter McCracken (Jack, em jovem), Laramie Eppler (R.L.), Tye Sheridan (Steve), Fiona Shaw (avó), Jessica Fuselier (Guide), Nicolas Gonda (Mr. Reynolds), Will Wallace (Arquitecto), Kelly Koonce (padre Haynes), Bryce Boudoin (Robert), Jimmy Donaldson (Jimmy), Kameron Vaughn (Cayler), Cole Cockburn (Harry Bates), Dustin Allen (George Walsh), Brayden Whisenhunt, Joanna Going, Irene Bedard, Finnegan Williams, Michael Koeth, John Howell, Samantha Martinez, Savannah Welch, Tamara Jolaine, Julia M. Smith, Anne Nabors, Christopher Ryan, Tyler Thomas, Michael Showers, Kimberly Whalen, Margaret Hoard, Wally Welch, Hudson Lee Long, Michael Dixon, William Hardy, Tommy Hollis, Cooper Franklin Sutherland, John Cyrier, Erma Lee Alexander, Nicholas Yedinak, Alex Draguicevich, Jackson Hurst, etc. Duração: 139 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 26 de Maio de 2011.
Terrence Malick - a única fonografia conhecida do cineasta