sexta-feira, janeiro 04, 2013

OS MISERÁVEIS DO MUSICAL AO CINEMA

 

OS MISERÁVEIS

Um musical como “Les Misérables”, ou “Les Miz” para os incondicionais, merecia uma obra-prima na sua adaptação ao cinema. O que Tom Hooper nos reserva não se aproxima de nada disso, infelizmente. O que há de bom na sua versão vem-lhe do próprio musical, e ele apenas acrescenta ao conjunto uma realização que tropeça a cada passo no seu exibicionismo de contorcionista estilístico, com uma ou outra boa excepção. Mas vamos por partes.

O romance de Victor Hugo é majestoso e brilhante, quer do ponto de vista de escrita, mil e duzentas páginas de uma tumultuosa epopeia humana em busca da liberdade, da igualdade e da fraternidade entre os homens, como do ponto de vista humanista, defendendo fracos e oprimidos contra a ditadura da opressão brutal e da iniquidade social. Uma obra que é certamente das mais adaptadas ao cinema, em versões muito desiguais mas todas elas demonstrando a perenidade e actualidade da mensagem. Miseráveis e injustiças proliferam pelos quatro cantos do mundo e, mesmo nesta tão apregoada Europa da abundância, cada dia se multiplicam os deserdados.

A versão musical que nasceu em 1985 nos palcos de Londres tem sido um sucesso por onde tem passado. Merecidamente, isto digo eu que sou um apaixonado por musicais e tenho “Os Miseráveis” como um dos melhores exemplos do género nos tempos mais próximos (ao lado de “Sunset Boulevard, de “O Fantasma da Ópera” ou de um “Martin Guerre”). Julgo a adaptação do romance notável, na forma como o condensa, sem o ferir na sua fidelidade, na forma como equilibra personagens e situações, na forma como concilia o individual e o colectivo, o romântico e o épico. Julgo a partitura musical das mais inspiradas, tendo em conta sobretudo a especificidade deste musical, todo ele cantado, aproximando-se em muito mais da ópera ou da opereta do que dos musicais da época de ouro (entre os anos 30 e os 50 do século passado). De resto este não é um musical dançando, é um musical essencialmente cantado, pelo que a sua adaptação teria de ter em conta este aspecto, o que julgo Tom Hooper tentou compreender, não dando tanta atenção ao plano de conjunto (para se apreciar a dança na sua globalidade) e mais ao plano aproximado (para se concentrar no canto, o que resulta muito bem nalguns casos, como por exemplo na canção de Fantine, "I Dreamed a Dream", admiravelmente conseguida por Anne Hathaway, e não tanto noutros, onde leva ao preciosismo esta aproximação).

A história desta adaptação a musical é curiosa. Poucos sabem que a primeira versão é francesa, uma encenação de Robert Hossein, com texto de Alain Boublil e Jean-Marc Natel e música de Claude-Michel Schönberg. Estreou-se em 1980 no Palais des Sports, com um elenco encabeçado por Maurice Barrier (Jean Valjean) e Jean Vallée (Javert). Esteve três meses em cena, após o que se despediu sem grande euforia. Mas, passados três anos, o produtor inglês Cameron Mackintosh, que tinha acabado de estrear “Cats” na Broadway, recebeu um álbum deste concerto e ficou impressionado. Entregou a Herbert Kretzmer a versão inglesa que se estreou em Londres, a 8 de Outubro de 1985, no Barbican Centre. Pouco depois, estrearia na Broadway – ao lado de “Cats”, “The Phantom of the Opera”, “Miss Saigon”. Daí para cá transformou-se no maior sucesso de sempre de um musical – mais de 65 milhões de espectadores em todo o mundo.

A adaptação cinematográfica acompanha, pari passu, a versão musical, com uma ou outra liberdade, que todavia não interfere com a partitura. Mas os meios que o cinema põe à disposição da história libertam-na do espaço fechado de um palco, o que é desde logo visível na sequência inicial, com Jean Valjean em trabalhos forçados, numa grandiosa reconstituição do porto militar de Toulon, no sul de França, pouco antes de ser libertado, depois de cumprir uma pena de 19 anos de prisão nas galés, por ter roubado um pão para matar a fome à família (cinco por esse crime, mais 14 por várias tentativas de fuga). Jean Valjean, com uma força sobre-humana e um ódio feroz a quem o aprisionou, tem pela frente Javert, o chefe da polícia que não lhe irá dar tréguas ao longo de toda a existência. É ele quem lhe põe na mão um passaporte amarelo que o irá causticar para sempre como ex-condenado. Todos o afastam até chegar a casa de um padre que o acolhe, lhe dá comida e cama, e lhe desculpa um roubo de pratas, com a promessa de Valjean tornar um honesto cidadão. Este, tocado pela graça na sua empedernida consciência, acaba por se regenerar, transformar a prata em ouro, multiplicando o capital, através de um fábrica que administra, sendo nomeado “maire” da cidade de Montreuil. Estamos em 1823.

Na sua fábrica trabalha Fantine, mãe (solteira) de Cosette, que um dia é despedida e cai de degrau em degrau até à mais profunda desgraça, que a conduzirá à morte. Muitas são as peripécias, mas perto do fim, Valjean que, como maire assumira a identidade de Madeleine, promete a Fantine tomar conta da sua filha que se encontra sob a guarda de uns taberneiros, contumazes na rapina e avidez, de nome Thénardier. A miúda é tratada como uma escrava, Valjean liberta-a a troco de uma considerável quantia, mas Javert anda por perto e quer fazer regressar às galés o seu inimigo de estimação, pois este furtara-se à apresentação obrigatória perante a policia, dada a sua liberdade condicional. Javert é filho de um condenado e jurou cumprir a lei e impor a ordem custe o que custar. Para ele, não há regeneração possível. Victor Hugo tem uma ideia diferente da justiça e quer demonstrá-lo nesta sua obra. Por isso a oposição Javert-Valjean é tão intensa, complexa, insistente e obsessiva. São duas concepções do mundo que se opõem. A velha sociedade absolutista a que a Revolução Francesa tinha posto cobro, a nova ordem do mundo que nascia desse movimento libertador.

De fuga em fuga, Cosette cresce ao lado do seu pai adoptivo, e assim chegamos a 1832, às barricadas nas ruas de Paris, contra o novo rei. Entre os estudantes revoltosos vamos encontrar Marius, filho de um nobre, que renega as origens e que, de bandeira em punho, é um dos chefes do movimento que faz frente aos soldados do rei. No entretanto, Marius e Cosette encontram-se e apaixonam-se e surge a história de amor que irá ocupar grande parte da segunda metade da obra, intercalada com a revolução e a persistente perseguição de Javert a Valjean. Estão reunidas as condições para um final que irá reunir as diferentes linhas de acção, voltando o filme a algumas sequências de grande espectacularidade, sobretudo com as barricadas e confronto final de Javert e Valjean nos esgotos de Paris.

O que, portanto, sobressai no filme vem do musical: a estrutura dramática e a partitura musical. O que Tom Hooper traz de novo é, no mínimo, discutível: o filme nunca tem um tom próprio, oscila entre algumas sequências bem conseguidas e outras insustentáveis, pelos rodriguinhos e um estilo quase grotesco de enquadramentos e lentes mal utilizadas. Há um plano de Valjean no cimo de uma escada que é o paradigma deste estilo arrebicado e pomposo do realizador. Que não é de agora e já lhe mereceu Oscars da Academia. Num texto meu dedicado a “O Discurso do Rei” (Fevereiro de 2011) disse: “(..) a realização, que é verdadeiramente desastrosa, com um recurso insano à utilização da grande angular, que transforma personagens e ambientes em grotescas caricaturas, sempre que é usada. Creio ter percebido a intenção de Tom Hooper, um realizador que vem da televisão e nos dera um interessante “Maldito United” (2009). Ele terá pensado que esta era a melhor maneira de traduzir em imagens a perturbação e a claustrofobia do rei gago, mas apenas optou pela facilidade e o resultado é por vezes simplesmente grotesco. Em lugar de traduzir a gaguez do rei, afirma a gaguez do seu realizador”. O que eu tinha acusado em 2011 mantém-se em 2012. Talvez lhe volte a conferir estatuetas, para mim de todo imerecidas. Mas a Academia parece andar virada para esse tipo de realização acrobática e excêntrica, pois “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky, enfermava da mesma doença e também foi muito ovacionado.

Há, no entanto, aspectos positivos nesta obra que certamente não sairá de mãos a abanar da cerimónia dos Oscars que se aproxima. A direcção artística, cenários, guarda-roupa e adereços é bastante boa, e a interpretação merece alguns destaques. Sem surpreender, Hugh Jackman é um eficaz Jean Valjean, Russell Crowe deixa um pouco a desejar como Javert, Anne Hathaway é magnifica como Fantine, Amanda Seyfried não desmerece como Cosette, Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, como Thénardiers, são deslumbrantes de graça comedida, Eddie Redmayne é um Marius que foge ao rodriguinho do galã, Aaron Tveit  é um bom Enjolras, Samantha Barks uma Éponine que se afasta um pouco da imagem habitual e Daniel Huttlestone é dos melhores Gavroches de uma extensa lista. Tom Hooper resolveu fazer os actores cantarem em directo, em vez de serem dobrados como era habitual neste género, e não parece que tenha ganho nada com este feito. De resto, quase todos os actores secundários que têm anterior experiência vocal noutros musicais sobressaem pela voz.

Finalizando, quem gosta de musicais e deste em particular deve preferir ficar em casa a ver e ouvir pela enésima vez o concerto do 25º aniversário. Mas quem mesmo assim queira ir ao cinema, haverá certamente quem no final deteste e quem tenha suportado com alguma galhardia. Este último foi o meu caso.  

OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables
Realizador: Tom Hooper (Inglaterra, EUA, 2012); Argumento: William Nicholson, segundo texto de Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil, adaptando o romance de Victor Hugo, com poemas de Herbert Kretzmer, Alain Boublil, Jean-Marc Natel, James Fenton; Produção: Bernard Bellew, Raphaël Benoliel, Tim Bevan, Liza Chasin, Eric Fellner, Debra Hayward, Cameron Mackintosh, Angela Morrison, Thomas Schönberg; Música (não original): Claude-Michel Schönberg; Fotografia (cor): Danny Cohen; Montagem: Chris Dickens, Melanie Ann Oliver; Casting: Nina Gold; Design de produção: Eve Stewart; Direcção artística: Grant Armstrong, Gary Jopling, Hannah Moseley, Su Whitaker; Decoração: John Botton, Leigh Bryant, Stephen Doyle, Billy Edwards, Carrie Garner, James Hendy, Anna Lynch-Robinson, Sarah Whittle, Matt Wyles; Guarda-roupa: Paco Delgado; Maquilhagem: Nicola Buck, Karen Cohen, Julie Dartnell, Audrey Doyle, Patt Foad, Sarah Grispo, etc.; Direcção de produção: Kate Fasulo, Tom O'Shea, Jason Pomerantz, Bobby Prince, Matthieu Rubin, Patrick Schweitzer; Assistentes de Realizador: Ben Howarth, Mark Cockren, Gayle Dickie, Sid Karne, Vaughn Stein, Harriet Worth; Departamento de arte: Julia Castle, Malcolm Roberts; Som: Dominic Gibbs, Lee Walpole, John Warhurst; Efeitos especiais: Hugh Goodbody, David Holt, Paul McGuinness, etc.; Efeitos Visuais: Richard Bain, Fabrizia Bonaventura, Robert Connor, Izzy Field, Tim Field, Ali Ingham, Sean Mathiesen, Nathalie Mathé, Allison Paul, Natalie Reid, Adrian Steel; Animação: Ben Wiggs; Companhias de produção: Working Title Films; Cameron Mackintosh Ltd. Intérpretes: Hugh Jackman (Jean Valjean), Russell Crowe (Javert), Anne Hathaway (Fantine), Amanda Seyfried (Cosette), Sacha Baron Cohen (Thénardier), Helena Bonham Carter (Madame Thénardier), Eddie Redmayne (Marius), Aaron Tveit (Enjolras), Samantha Barks (Éponine), Daniel Huttlestone (Gavroche), Cavin Cornwall (preso 1), Josef Altin (preso 2), Dave Hawley (preso 3), Adam Jones (preso 4), John Barr (preso 5), Tony Rohr, Richard Dixon, Andy Beckwith, Stephen Bent, Colm Wilkinson, Georgie Glen, Heather Chasen, Paul Thornley, Paul Howell, Stephen Tate, Michael Jibson, Kate Fleetwood, Hannah Waddingham, Clare Foster, Kirsty Hoiles, Jenna Boyd, Alice Fearn, Alison Tennant, Marilyn Cutts, Catherine Breeze, John Albasiny, Bertie Carvel, Tim Downie, Andrew Havill, Dick Ward, Nicola Sloane, Daniel Evans, David Stoller, Ross McCormack, Jaygann Ayeh, Adrian Scarborough, Frances Ruffelle, Lynne Wilmot, Charlotte Spencer, Julia Worsley, Keith Dunphy, Ashley Artus, John Surman, David Cann, James Simmons, Polly Kemp, Ian Pirie, Adam Pearce, Julian Bleach, Marc Pickering, Isabelle Allen, Natalya Angel Wallace, Phil Snowden, Hadrian Delacey, Lottie Steer, Sam Parks, Mark Donovan, Lewis Kirk, Leighton Rafferty, Peter Mair, Jack Chissick, Dianne Pilkington, Robyn North, Norma Atallah, Patrick Godfrey, Mark Roper, Paul Leonard, etc. Duração: 157 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 3 de Janeiro de 2013.

1 comentário:

V. disse...

Quem sabe, sabe :) Um beijo e mais um texto óptimo *