quarta-feira, fevereiro 12, 2020

TEATRO: A PEÇA QUE DÁ PARA O TORTO




A PEÇA QUE DÁ PARA O TORTO

Hoje é dia de estreia de “A Peça Que Dá Para o Torto”, no original “The Play That Goes Wrong”. É um texto dos ingleses Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields, que se encontra em exibição em Londres, há mais de cinco anos, numa produção da Mischief Theatre Company, com encenação de Hannah Sharkey. Grande sucesso de público e de crítica, com emigração para os palcos de mais de trinta países, e muitos prémios arrecadados, quer em Inglaterra como por outras latitudes.
A versão que vamos ver em Lisboa é o que se chama uma "replica show". O que significa que a UAU, empresa produtora portuguesa, adquiriu "os direitos todos da peça, não só do texto, mas também do cenário, da luz, da música, de tudo". Uma encenadora britânica, Hannah Sharkey, tem estado em Lisboa, para assegurar que tudo corra como acontece em palcos ingleses, mas a tradução para português, com algumas indispensáveis adaptações, é de Nuno Markl, e, neste contexto,  surge igualmente a figura do encenador residente, Frederico Corado, que divide responsabilidades locais com os demais responsáveis (só para que conste, é meu filho, para assim ficar assegurado desde já algum possível conflito de interesses).
A obra é muito divertida, bem construída, sólida peça de carpintaria (não é um eufemismo, como veremos mais adiante), não pactua com a estupidez tatas vezes reinante neste tipo de produção, afirmando-se pelo contrário como obra inteligente e de humor crítico e sensível. É realmente um vendaval de gargalhadas, mas não vazio de sentido e inócuo.
Antes de mais, trata-se de uma peça no interior de uma peça. Uma peça inglesa, tipicamente british, encenada pelo núcleo de Teatro da Sociedade Recreativa e Cultural do Sobralinho. Logo de início o encenador coloca os pontos nos ii. A Sociedade tem tido muitas dificuldades para levar a cena algumas produções, sobretudo por falta de meios. A versão de Os Miseráveis passou a O Miserável, a Branca de Neve passou a ser acompanhada unicamente pelo Matulão, à falta de sete anões, de Tennesse Williams apresentaram O Triciclo Chamado Desejo (e depois tiveram ainda que actualizar: O Skate Chamado Desejo).
A peça que hoje levam a cena é uma produção de estilo policial, “Crime na Mansão Haversham”, que começa logo com o aparecimento de um cadáver estendido no meio de um cenário de um certo mau gosto britânico, uma velha mansão, como tantas outras que surgem no teatro e no cinema provindos daquela ilha que recentemente se afastou da EU. Não se trata tanto de uma paródia ao estilo de Agatha Christie, mas sim às medíocres réplicas desta escritora, que por aí proliferam.
Depois as investigações em relação àquela morte iniciam-se. Surgem sete pessoas naquela sala de estar com cheiro a velório: o irmão do morto, a noiva do morto, o irmão da noiva (por sinal brasileiro), o mordomo (não podia faltar), um inspector (está lá fora o inspector!) e ainda há mais alguns intervenientes como a contrarregra ou aderecista e ponto, e o técnico de som, irritadíssimo porque lhe roubaram um CD dos Duran Duran. Além disso, perdeu-se um cão, de que só sobrou a trela…
Primeiro aspecto a ressalvar neste contexto: a peça agarra nalguns estereótipos do policial e mesmo do romance negro e parodia-os com imensa graça. O morto, o mordomo, o inspector, a femme fatale que não resiste a nenhum macho, os suspeitos, tudo é posto em causa, assim como cada adereço, cada puxador de porta, cada vidro de janela, cada quadro, cada lareira (há só uma!), cada praticável. Nada está no sítio certo nem na hora exacta. O que potencia a hecatombe, de desgraça em desgraça até ao terramoto final.



A peça é bastante bem representada, por um elenco muito jovem, mas globalmente talentoso, mas esta não é uma representação vulgar. Todos têm de apresentar alguns resquícios de acrobatas, tal o empenhamento físico que a peça exige aos seus intervenientes. Se a construção do cenário e a colocação dos adereços pressupõe um trabalho minucioso, de relojoeiro, em que todos os elementos têm de estar no seu local determinado ao segundo exigido, o facto deste cenário já vir importado de Londres (via Espanha) ajudou em muito. Mas o elenco português teve de se adaptar a este cenário maquiavélico que impõe um ritmo endemoniado e uma certa destreza corporal. A Inês Castelo-Branco a ser retirada “desmaiada” por uma janela não é para qualquer uma, nem o Miguel Thiré a equilibrar-se com três móveis é para todos (e não digo mais, quem for ver avaliará). Mas todos os actores passam as passas do Algarve nesta comédia de slapstick, muito na linha de alguns grandes cómicos como Keaton, Chaplin ou Lloyd.
Segundo aspecto a sublinhar. Não sei se conscientemente se não, esta peça assume um papel pedagógico muito interessante. Pretende ser objectivamente uma representação realista ou naturalista e acaba por evoluir para um simbolismo, um non sense minimalista. Tal como Picasso que era um pintor realista notável ainda muito jovem, e depois foi evoluindo para o cubismo e até para a abstração, o mesmo acontece nesta peça. Um exemplo. Quando procuram retirar o cadáver da sala de estar, vão buscar uma padiola e colocam nela o corpo. Mas o pano cede, o corpo cai, os transportadores não se dão por vencidos e continuam a transportar a padiola, agora só as pegas de madeira. Mais tarde já mimam o transporte do corpo só com as mãos. A cena vai evoluindo do realismo para o simbolismo mais minimalista, um pouco uma das vias do teatro moderno.
Mais. Existe uma femme fatale (obviamente a Inês Castelo-Branco) que veste vermelho, como se esperaria. As tantas ela desaparece e a contrarregra surge a substituí-la apenas com o vestido vermelho sobre a jardineira. Buñuel realizou um filme com duas actrizes a interpretar o mesmo papel. O público na peça teatral compreende a substituição, assim como a entende mais tarde quando será um homem a aparecer neste papel.
“A Peça Que Dá Para o Torto” não só desconstrói os estereótipos do policial, como vai mais longe e deixa perceber o mecanismo da identificação num espectáculo teatral que não necessita do realismo para tornar evidente certas propostas. Por tudo isso um belo espectáculo que ainda bem que, neste caso, deu para o torto.
Prémio Olivier para Melhor Comédia Nova em Inglaterra, “The Play That Goes Wrong” tem um elenco globalmente muito eficaz, composto por Alexandre Carvalho, Cristóvão Campos, Igor Regalla, Telmo Mendes, Inês Castel-Branco, Joana Pais de Brito, Miguel Thiré e Telmo Ramalho. Sem querer menosprezar ninguém, devo sublinhar o trabalho destes quatro últimos.
Em cena a partir de hoje, no Auditório dos Oceanos, do Casino de Lisboa, tem estadia prevista até Junho.



domingo, fevereiro 09, 2020

OSCARS 2020 - PREVISÕES


OSCARS 2020 - PREVISÕES

Digam o que disserem, este ano de 2019, que agora se premeia, foi um excelente ano de cinema. Muitos e bons filmes, excelentes realizadores, magníficos intérpretes, como há muito se não via. São tantos os candidatos que há nomeados para todos os gostos e, apesar de haver como sempre favoritos, se houver surpresas, estas não serão "surpreendentes".  
Depois, o cinema nunca mais será como foi até aqui, com a confirmação em grande do streaming. A Netflix, e congéneres, vieram alterar por completo o sistema de exploração cinematográfica. O cinema, que está cada vez mais a ser consumido por crianças e adultos acriançados, ou altera os seus objectivos (e parece que já começou) ou vai descobrir-se a correr numa pista isolada, com o grande público adulto a ficar em casa a ver o que canais de TV e de streaming lhe oferecem. 
Quanto às previsões sobre os Oscars de 2020, elas aqui fica, com uma ressalva: por vezes não indicam os títulos que eu pessoalmente premiaria, mas assim aqueles que julgo virem a ser as escolhas dos membros da Academia de Hollywood. 
Entre os nomeados, os assinalados com uma cruz são os potenciais vencedores. Boa sorte!    


sábado, fevereiro 01, 2020

OS FILMES DOS OSCARS DE 2019 (5) JOKER



JOKER

Até hoje Gotham City apareceu no cinema sob o domínio de Batman, o justiceiro que lutava contra o Mal, encarnado pela figura do Joker. Batman tentava impor a ordem numa cidade dominada pela violência, a corrupção e todos os demais males do mundo. Batman era uma derivação de Superman, que tranquilizava os cidadãos que ficavam a saber, no final de cada filme, que há sempre um herói, com superpoderes ou não, que vela pela tranquilidade pública. Sabia-se a história de Batman, donde vinha e porque se dava ao trabalho de lutar pelo Bem, numa sociedade tão corrompida, enquanto do Joker tínhamos retratos por vezes inesquecíveis, trabalhados por actores de invulgar talento, conhecíamos as suas maldades, as vilanias, o riso convulsivo, as excentricidades, a indumentária de palhaço, o rosto maquilhado de clown, mas desconhecia-se tudo o mais. Qual o seu passado, o que o levaria a tamanhas façanhas de uma tão diabólica maldade? Todd Phillips vem alterar este injusto estado de coisas, dedicando uma obra inteiramente a o Joker.
Mas quem é este Todd Phillips? Pois só comecei a dar por ele em 2009, quando vi, por acaso, “A Ressaca”. Antes já tinha feito umas comédias que recuperei depois, mas nada de muito especial: 2000: “Road Trip - Sem Regras”; 2003: “Dias de Loucura”; 2004: “Starsky & Hutch” ou 2006: “Escola para Totós”. A comédia norte-americana destes tempos só raramente me divertia e muitas vezes lamentava o tempo perdido. “A Ressaca” foi uma revelação muito agradável. Bem realizada e escrita (pelo mesmo Todd Phillips), muito bem interpretada por um grupo de actores até aí não muito conhecidos, diria que o filme revelava o realizador a ter em conta e a seguir com atenção. O sucesso internacional de “A Ressaca” obrigou a outros desenvolvimentos na mesma área; A Ressaca II (2011), “A Ressaca III” (2013) e duas outras incursões pelo mesmo género, “A Tempo e Horas (2010) e “Os Traficantes” (2016).
De repente, uma mudança abismal. Em 2019, Todd Phillips muda radicalmente de registo e deixa de tentar a comédia e opta por uma biografia (dramática) do Joker. Esperemos que se tenha ganho um grande realizador. “Joker” é uma obra-prima. Como parece que o cineasta é dado a chorrilhos, anuncia para próximo projecto uma biografia de Hulk/Hogan.
Já me perguntaram se “Joker” é um filme particularmente violento. Creio que, apesar de algumas cenas violentas, um pouco na linha de “A Laranja Mecânica”, a obra não se define pela sua violência física, mas sim pela sua violência psicológica. Há muito que um filme não me angustiava tanto, após a sua visão. “Joker” é uma terrível visão da nossa sociedade, destas cidades onde vivemos um dia a dia cada vez mais egoísta, cada vez mais violento, cada vez mais corrupto, cada vez mais degenerado. Uma sociedade que afasta os pobres e os necessitados, que só olha para o lucro imediato, que depois de ter atingido (nos países mais avançados) um certo nível de bem-estar, o vai delapidando alegremente, para que os ricos sejam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.  
Em Gotham City, cidade que nunca esteve tão próxima de Nova Iorque, se bem que em todos os filmes anteriores de Batman todos tenham percebido que se falava de uma Nova Iorque mais ou menos fantasiada, um rapazinho esquelético, que trabalha como palhaço, e sofre de uma estranha doença que o leva a ter ataques de riso incontroláveis (anda mesmo com um cartão para mostrar aos estranhos que se trata de uma doença e não de falta de respeito), vive com a mãe, entrevada, de quem cuida desveladamente. Visita uma assistente social que o acompanha até ao dia em que o serviço é dado como inútil, a assistente social despedida, e ele fica mesmo sem os medicamentos que o estabilizavam. Depois é um encadeado de situações traumáticas, todas elas muito previsíveis, que transformam o cidadão Arthur Fleck no Joker. Um inocente palhaço que anda pelas ruas da metrópole a anunciar saldos que, aparentemente num passe de magia (mas sem magia nenhuma), se transmuda num temível vingador que subleva a cidade e faz justiça pelas próprias mãos, no que é apoiado por toda a “escumalha” que nele se revê e o transforma em símbolo de uma rebelião.
Assim se percebe, sem demagogias simplistas, como o Mal nasce do próprio Mal, como as circunstâncias sociais, políticas, educacionais, o próprio entretenimento televisivo, criam os monstros; como as sociedades desapiedadas acabam por ver revertidas sobre si próprias as consequências do seu egoísmo. O clima de “Joker” é angustiante de princípio ao fim, indo-se adensando à medida que pequenos e grandes acontecimentos, ou segredos, se vão revelando. A criação dos ambientes é notável: uma cidade intransitável, ruas e becos atravancados de lixo, uma chuva impiedosa, as cores berrantes dos néons, os cartazes da publicidade, os interiores esquálidos, os quartos miseráveis, a sala da agência dos palhaços, os corredores solitários, as carruagens do metropolitano, o estúdio de televisão, com uma realidade forjada, as mansões dos ricos e poderosos, as salas de espectáculos…
O argumento é extremamente inteligente, bem escrito, desenvolvidos, criando personagens que vão marcar a história do cinema. O Joker de Joaquin Phoenix é absolutamente magistral. O seu trabalho é invulgarmente bem conseguido, de antologia. Há um lado mais visível que é brilhante, o jogo do corpo, o lado histriónico, quando dos ataques de riso, tudo isso é de sublinhar. Mas o que me prende é o mais secreto, a forma como o rosto, os olhos reagem em certas situações, os gestos suspensos, as contradições interiores que o actor deixa antever com uma subtileza invulgar, uma maestria total. Pena tenho eu de Banderas, DeNiro ou Adam Driver que este ano têm interpretações notáveis e não vão ter hipótese de competir com Phoenix. O Oscar está entregue!
De resto, o filme está nomeado para 11 Oscars, e certamente vai regressar a casa com várias estatuetas. Não será o Melhor Filme do Ano, nem o Melhor Realizador, que há concorrentes fortíssimos (ainda que se ganhar algum destes prémios não vinha daí mal nenhum ao mundo), Joaquin Phoenix é definitivamente o Melhor Actor, o Melhor Argumento Adaptado, a Melhor Fotografia, a Melhor Montagem, a Melhor Partitura Musical Original, a Melhor Maquilhagem, o Melhor Guarda-roupa, o Melhor Som e a Melhor Mistura Sonora são hipóteses com muitas probabilidades.
Aqui está um ano como há muito se não via em Hollywood. Vários filmes excelentes acotovelando-se para chegar às estatuetas.


JOKER
Título original: Joker
Realização: Todd Phillips (EUA, 2019); Argumento: Todd Phillips, Scott Silver, baseados em personagens de bd criados por Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson;  Produção: Richard Baratta, Bruce Berman, Jason Cloth, Bradley Cooper, Joseph Garner, Aaron L. Gilbert, Walter Hamada, Anjay Nagpal, Todd Phillips, Emma Tillinger Koskoff, Michael E. Uslan, David Webb; Música: Hildur Guðnadóttir; Fotografia (cor): Lawrence Sher; Montagem: Jeff Groth; Casting: Shayna Markowitz; Design de produção: Mark Friedberg; Direcção artística: Laura Ballinger; Decoração: Kris Moran; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Vanessa Anderson, Mitchell Beck, Sunday Englis, Kay Georgiou, Nicki Ledermann, Jerry Popolis, Tania Ribalow, Kim Taylor, Carla White, etc. Direcção de Produção: Lisa Dennis, Carla Raij, Fady Hadid, Mark Scoon; Assistentes de realização: Ryan Robert Howard, Felix Jordan, Jeremy Marks, David Webb, etc. Departamento de arte: Joseph S. Alfieri, Nara DeMuro, Mariella Navarro, Michael Scarola, Miccah Underwood, etc.; Som: Tony Crowe, Michael Dressel, Alan Robert Murray, Tom Ozanich, Kira Roessler, etc. Efeitos especiais: Jeff Brink, Doug Facciponti, Corinne Fortunato, Cleo Camp, Joseph Sacco; Efeitos visuais: Ankita Agrawal, Karina Benesh, Patrice Cormier, Mathew Giampa, Allie Glisch, Bryan Godwin, Edwin Rivera, Carolyn Shea, Kin Yiu, Nigel Cyril, Kristen Drewski, etc.  Companhias de produção: Warner Bros., Village Roadshow Pictures, BRON Studios, Joint Effort, DC Comics, Creative Wealth Media Finance;  Intérpretes: Joaquin Phoenix (Arthur Fleck/ Joker), Robert De Niro (Murray Franklin), Zazie Beetz (Sophie Dumond), Frances Conroy (Penny Fleck), Brett Cullen (Thomas Wayne), Shea Whigham (Detective Burke), Bill Camp (Detective Garrity), Glenn Fleshler (Randall), Leigh Gill (Gary), Josh Pais (Hoyt Vaughn), Rocco Luna, Marc Maron, Sondra James, Murphy Guyer, Douglas Hodge, Dante Pereira-Olson, Carrie Louise Putrello, Sharon Washington, Hannah Gross, Frank Wood, Brian Tyree Henry, April Grace, Mick Szal, Carl Lundstedt, Michael Benz, etc. Duração: 122 minutos; Distribuição em Portugal: Warner Bros.; Classificação etária: M/ 14 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Outubro de 2019.