Notas rápidas
1. FÁBULA BUFA (Fabula Buffa), a partir de Dario Fo, com Ciro Cesarano e Fabio GORGOLINI, e a colaboração artística de Carlo Boso.
Inauguração em grande da 28ª edição do Festival de Teatro de Almada, com a apresentação de ”Fábula Bufa”, a partir de um belíssimo texto de Dario Fo, que recria, em termos de actualidade, a estrutura cénica da “Commedie dell’Arte”. Dois excelentes actores, Ciro Cesarano e Fabio Gorgolini, que contaram com a colaboração artística de Carlo Boso, formado no Piccolo Teatro di Milano, onde trabalhou com Peppino de Filippo, Giorgio Strehler e Ferruccio Soleri, e encenou mais de quarenta obras. Boso foi director do Carnaval de Veneza entre 1983 e 1994 e dirigiu companhias em Veneza, Milão e Treviso. Em 2004, fundou nos arredores de Paris, nos estúdios criados em 1904 por Charles Pathé, a Académie Internationale des Arts du Spectacle. São dele estas palavras sobre “Fábula Bufa”: “quisemos dar vida a uma forma espectacular destinada a acordar a esperança numa sociedade enfraquecida por um vazio existencial e relembrar, ainda assim, que o teatro, sob todas as suas formas, mesmo as mais burlescas, permanece uma arma poderosa”.
O espectáculo, que conta apenas com dois actores em cena, recria um burlesco de enganos onde um cego e um paralítico invocam o milagre da cura, para depois se revoltarem contra ela, “pois assim terão de trabalhar” e ninguém lhes dá esmolas. Jesus é evocado na cruz e vilipendiado pelos pedintes, mas é dele a última palavra de esperança numa sociedade nada pacífica, mas onde o lugar do actor e do cómico permanece inalterável e essencial para manter o alento do cidadão comum e lhe dar o conforto de uma alegria.
Segundo a documentação do Festival, “Ciro Cesarano e Fabio Gorgolini, formados por Carlo Boso na sua Escola de Montreuil e licenciados em História do Teatro pela Universidade de Bolonha, criaram em Paris, em 2006, a companhia Teatro Picaro com o objectivo de encontrar uma linguagem teatral capaz de conciliar a herança tradicional com as temáticas contemporâneas na concretização de um teatro simultaneamente popular, social, burlesco e poético”. Conseguem-no plenamente com um trabalho de altíssima qualidade, quer ao nível da palavra, quer no do gesto, da pantomima ou da acrobacia.
Um espectáculo para recordar e que introduziu da melhor forma o tema central da edição deste ano do Festival de Teatro de Almada, que presta homenagem à “Commedie dell’ Arte”-
2. SANTA JOANA DOS MATADOUROS, de Bertolt Brecht, com encenação de Bernard Sobel Colaboração artística de Francis Seleck e Eric Castex
Bernard Sobel, encenador francês de créditos firmados, regressou ao Festival de Almada para dirigir um espectáculo com interpretação de alunos finalistas da Escola Superior de Teatro e Cinema e alunos recém-formados da ACT – Escola de Actores. Uma experiencia inédita e particularmente sugestiva. Creio que não inteiramente lograda, mas ainda assim muito estimulante, tanto mais que deu a conhecer uma nova geração de aspirantes a actores portugueses, onde se vislumbra muita qualidade para futuros voos.
Brecht é um dramaturgo genial, criador de um teatro didáctico de intenções declaradamente comunistas, mas que ultrapassa esse circunstancialismo histórico com a grandeza da sua palavra, vigorosa e poética, e pela clareza das suas intrigas, que procuram desmontar jogos de poder e de interesses criados. As lutas de classe entre os poderosos e os explorados do mundo podem ser acusadas de algum esquematismo, mas são fascinantes de acompanhar. “Santa Joana dos Matadouros” não será das suas obras-primas (“Mãe Coragem e seus filhos”, “O Círculo de Giz Caucasiano, “A Alma Boa de Tzé Chuan”, “A Mãe” ou “Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny”), mas é muito interessante, sobretudo por trazer para o palco um tema violento e agressivo como o da exploração do comércio da carne, numa Chicago em plena crise de 1929.
Acontece que a forma escolhida por Bernard Sobel para encenar este espectáculo, um longo e largo corredor no meio de duas bancadas de espectadores, por onde evoluem duas dezenas de actores, que vão trocando de papéis, não terá sido a melhor para clarificar as intenções da peça. Mas revela-se estimulante como experiência, e revela um bom conjunto de promessas.
Santa Joana é uma jovem que ingressou no Exército de Salvação para aliviar a miséria dos trabalhadores dos matadouros de Chicago, e que acaba vítima das contradições de um capitalismo selvagem que só olha ao lucro.
Citando fontes do Festival, Bernard Sobel (n. 1935) é o criador do Teatro de Gennevilliers, uma cidade da periferia de Paris, onde desenvolveu a sua acção de director e encenador entre 1963 e 2006. Foi em 1963, depois de fazer a sua formação no Berliner Ensemble, então dirigido por Helene Weigel, viúva de Brecht, que Sobel se instalou em Gennevilliers, onde começou por fundar o Ensemble Théâtral de Gennevilliers (ETG), um grupo de jovens actores e investigadores que adoptou um estatuto amador, cuja intenção era contribuir para o nascimento de uma forma teatral diferente das que existiam nessa época. Entre os autores que apresentou, contam-se Vichnevski, Koplov, Volokhov, Erdman, Heiner Müller, Kleist, Schiller, Lessing, Lenz, Heinrich Mann, Grabbe e, naturalmente, Brecht. Mas é também um especialista de Molière, de quem encenou várias obras, e o seu repertório inclui muitos outros autores clássicos e modernos, como Eurípedes, Marlowe ou Sarah Kane. Após deixar a direcção do Teatro de Gennevilliers, por ter atingido o limite de idade, Sobel fundou a sua própria companhia, tendo dirigido textos de Olecha, Mayenburg e Kleist.
Intérpretes: Alice Medeiros, Ana Cris, Bartolomeu Paes, Carlos Gomes, Catarina Rosa, Daniel Fialho, Diogo Tavares, Eduardo Breda, Elisabete Pedreira, Joana Campos, Joana de Verona, José Mata, José Redondo, Mafalda Jara, Marco Trindade, Rita Miranda, Sara Reis, Sofia Vitória, Tomás Tojo, Vera Barreto; Tradução: Manuel Resende; Cenário: Pierre Setbon, Guilherme Frazão; Figurinos: Mina Ly; Música e canções Olivier Bernaux; Desenho de luz: Guilherme Frazão; Som: Bernard Vallery; Fotografia: Rui Carlos Mateus; Ass. de figurinos: Bárbara Pinto, Inês Pereira, Lydia Neto; Ass. de dramaturgia: Miguel Curiel, Nuno Pontes; Duração: 2H40.
3. MOI, RODIN (Eu, Rodin), de Patrick Roegiers, com encenação de Mihai Maniutiu. Criação do Teatro Nacional Radu Stanca Sibiu (Roménia).
As relações entre Rodin e a sua discípula e amante Camille Claudel estiveram na origem de “A Paixão de Camille Claudel”, um belíssimo filme de Bruno Nuytten, com Gérard Depardieu e Isabelle Adjani. Soube agora que, em 2002, o Museu Guggenheim de Bilbau convidou o coreógrafo belga Marc Bogaerts para criar uma performance com interpretação de Esther Cloet. Um ano depois, o dramaturgo francês Patrick Roegiers juntou-se ao projecto, escrevendo o monólogo “Eu, Rodin”. A fusão da dança com as palavras deu-se no Teatro Nacional Radu Stanca de Sibiu, sob a direcção do encenador romeno Mihai Maniutiu, com interpretação de Constantin Chiriac.
Nada de mais decepcionante. A peça é um monólogo sem qualquer dramaticidade. A encenação é antiquada, obsoleta, de um gosto estético deprimente. A representação tonitruante e o bailado que a acompanha um apêndice sem graça nem convicção. “Eu, Rodin” afirma-se “um espectáculo sobre o amor e o poder, sobre a criação e a destruição, que coloca em cena, e em confronto, a escultora Camille Claudel (1864-1943) e o seu mestre e paixão, o escultor Auguste Rodin (1840-1917). Trata-se de uma criação em que Camille “dança” a sua relação com Rodin, e em que este “fala” através de um monólogo. Infelizmente, para mim, não passou de uma enorme maçada apesar de só durar uma hora.
Intérpretes: Constantin Chiriac, Esther Cloet; Tradução: Anca Maniutiu; Cenário: Iuliana Vîlsan, Mihai Maniutiu; Figurinos: Iuliana Vîlsan; Coreografia: Marc Bogaerts; Língua: Romeno, legendado em português; Duração: 1H00.
4. THE JEW (O Judeu), a partir de “The Jew of Malta”, de Christopher Marlowe; criação colectiva de Mundo Perfeito | Dood Paard | Maria Matos Teatro Municipal (Lisboa, Amesterdão).
Deve ser uma heresia o que vou dizer, dado que muitos consideram “O Judeu de Malta” “uma das obras-primas da dramaturgia universal”, Mas a verdade é que acho esta peça de um racismo aviltante, de um anti semitismo sem desculpa, só comparável ao “Judeu Juss”, filme aberrante do período nazi. Christopher Marlowe (1564-1593) é um dos grandes dramaturgos do período isabelino, contemporâneo de Shakespeare. Pode ter sido um mestre no sec. XVI, mas encenar esta peça no sec. XXI não me parece muito sensato. Mesmo que a mesma tente actualizar a mensagem (o que se calhar ainda a torna mais odiosa).
Retirando este aspecto, a encenação do colectivo é magnífica com um primeiro tempo em que, à vista dos espectadores, se constrói todo o cenário, sobrecarregando-o de elementos dispersos até à exaustão, para num segundo momento, se assistir à sua desagregação. Numa peça de mentiras e embustes, a relação entre o texto e a sua encenação é perfeita, ainda que à primeira vista o possa não parecer. Os actores são excelentes, quase todos portugueses a debitarem um texto inglês. Fica o senão, essencial, do significado racista desta história de ganância e vingança que se situa em Malta, ponto de cruzamento de religiões, de culturas e entreposto de rotas de comércio.
Parece ter estado na origem de “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare.
Socorrendo-me das notas do Festival, “Mundo Perfeito”, companhia que nasceu em 2003, tem apresentado o seu trabalho na Europa, Médio Oriente e América do Sul. Além de promover o trabalho artístico de Tiago Rodrigues, que partilha a direcção com Magda Bizarro, esta companhia tem apostado na nova dramaturgia, na criação colectiva e nas colaborações entre artistas portugueses e internacionais. Quanto ao grupo “Dood Paard” (em português, “Cavalo Morto”) foi fundado em Amesterdão em 1993. O seu trabalho, frequentemente politizado e de tom provocatório, inclui dramaturgos como Ésquilo, Shakespeare, Oscar Wilde, Edward Albee, Arthur Schnitzler ou Thomas Bernhard. Sem director, o trabalho colectivo e a autonomia são as principais características deste grupo.
Actores e criadores do espectáculo: Carla Maciel, Gillis Biesheuvel, Gonçalo Waddington, Kuno Bakker, Manja Topper, Tiago Rodrigues e ainda os técnicos André Calado, Julian Maiwald, René Rood; Adaptação: Paul Evans; Tradução: Joana Frazão; Comunicação: Raymond Querido; Produção; Dood Paard Marten Oosthoek; Produção: Mundo Perfeito Magda Bizarro; Residência artística: Espaço Alkantara; Língua: Inglês, legendado em português; Duração: 2H00.