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segunda-feira, janeiro 20, 2014

CINEMA: GOLPADA AMERICANA


GOLPADA AMERICANA

“American Hustle”, de David O. Russell, pertence a uma levada de filmes norte-americanos, de 2013, baseados em factos reais, que nos oferecem um olhar muito crítico sobre a sociedade actual, em particular a sociedade ianque. Quase todos giram em redor dos ambientes da alta finança e da corrupção que a rodeia, da sexualidade e da droga que os envolve, do crime de colarinhos brancos e da violência física e psicológica em que sobrevivem. É uma constante da cinematografia daquele país evoluir ao sabor das incidências políticas: quando ganham os republicanos as eleições para a presidência, temos obras na sua generalidade puritanas e rosáceas; quando triunfam os democráticos, a opção é por filmes críticos, de tonalidade social acentuada. Os americanos quase nunca põem em causa o sistema. Apenas se conformam com ele, no primeiro caso, elevando-o ao nível de quase perfeito, e o criticam com um olhar reformista, procurando aperfeiçoar as mazelas, no segundo caso. “Golpada Americana” pertence, pois, a esta última categoria.
Entre finais da década de 70 e inícios da de 80, nos EUA, surgiu um escândalo que ficou conhecido por “Abscam Operation”. Os seus protagonistas foram Melvin 'Mel' Weinberg, um escroquezito americano, a sua companheira de golpadas, a inglesa Evelyn Knight, e o agente do FBI, Anthony Amoroso, Jr. Junta-se a este trio a mulher oficial de Weinberg, Cynthia Marie Weinberg, e o principal visado nesta emboscada, Angelo Errichetti, então governador do Estado. Este foi um escândalo que explodiu bombasticamente nos anos 70, nos EUA, quando o agente do FBI empurra Melvin 'Mel' Weinberg e a sua amiga Evelyn Knight para um esquema sórdido que mete chantagem e delação para apanhar o citado político com a boca na botija, empochando generosa quantia de um suposto nababo árabe que se dizia disposto a investir forte em casinos no Estado de New Jersey.
“Golpada Americana”, o filme, mantém o essencial da história, alterando nomes e não muito mais. O vigarista chama-se agora Irving Rosenfeld (Christian Bale), e a sua companheira, aqui a fazer-se passar por inglesa, é a sedutora Sydney Prosser (Amy Adams). O agente do FBI é  Richie DiMaso (Bradley Cooper), o político na ficção é Carmine Polito (Jeremy Renner), e Rosalyn Rosenfeld (Jennifer Lawrence) é a ofendida esposa que irá ter papel decisivo neste imbróglio.


Num universo pantanoso, onde impera a corrupção, a violência, o sexo e as drogas, onde a suprema ambição é aumentar o pecúlio em dólares e saborear os prazeres da vida no limite, “Golpada Americana” é um retrato de uma sociedade sem escrúpulos, onde vale tudo para atingir os fins, quer se esteja do lado dos profissionais do crime como do dos agentes da ordem. Todos lutam por “uma carreira”, “um estatuto”, “subir na vida”, amealhar o mais possível e desfrutar do que lhes passe pela frente. Uma sociedade sem valores, a não ser os valores sonantes. Estamos em finais da década de 70 do século passado, mas o filme é de 2013, e por alguma razão o será: tudo se mantém igual, ou terá piorado. O caso refere-se a New Jersey, EUA, mas pode muito bem servir um pouco por todo o lado, dos EUA à China, da Itália a Angola, de Portugal ao resto do mundo. Casos destes são descobertos todos os dias. Nós só conhecemos, porém, os que vêm a público. 
O retrato não é bonito de se ver, mas a arte de David Owen Russell e o magnífico talento dos actores torna irrecusável esta viagem pelos meandros de uma sociedade a preparar as grandes crises económicas e socais que dela iriam sair (inclusive a que vivemos hoje e que não deixa de ser uma filha directa desses anos que geraram o polvo tentacular). 
David Owen Russell nasceu a 20 de Agosto de 1958, em Nova Iorque. Iniciou-se nos anos 90 com duas curtas-metragens, a que se segue em 1994 a sua primeira longa, “Spanking the Monkey”, uma comédia. Em 1999, chama a atenção com uma charge militar, “Três Reis”, a que se seguem “Os Psico-Detectives” (2004), “The Fighter - Último Round” (2010), “Guia para um Final Feliz” (2012) e agora este “Golpada Americana” (2013). Tem em preparação “Nailed”. Tornou-se um realizador habitual nas nomeações dos Oscars nos três últimos filmes, oferecendo aos seus protagonistas estatuetas douradas. Christian Bale e Melissa Leo, em “The Fighter - Último Round”, Jennifer Lawrence, em “Guia para um Final Feliz”, e agora vai de certeza voltar para casa com mais algum actor devidamente oscarizado (a escolher entre os casos de Christian Bale, Amy Adams, Jennifer Lawrence ou Bradley Cooper). David O. Russell tornou-se em poucos anos um realizador de sucesso e se “Guia para um Final Feliz” era uma comédia inteligente, subtil e ligeiramente crítica, “Golpada Americana” coloca-se a um nível mais exigente e igualmente mais conseguido. O argumento é extremamente bem construído, a realização é vibrante, sem efeitos escusados, e deixa brilhar, na medida certa, os seus magníficos actores, que erguem personagens de uma impressionante credibilidade (mesmo que ligeiramente caricaturados, por vezes).

GOLPADA AMERICANA
Título original: American Hustle

Realização: David O. Russell (EUA, 2013); Argumento: Eric Singer, David O. Russell; Produção: Matthew Budman, Bradley Cooper, Megan Ellison, Jonathan Gordon, Andy Horwitz, Mark Kamine, George Parra, Charles Roven, Eric Singer, Richard Suckle; Música: Danny Elfman; Fotografia (cor): Linus Sandgren; Montagem: Alan Baumgarten, Jay Cassidy, Crispin Struthers; Casting: Lindsay Graham, Mary Vernieu; Design de produção: Judy Becker; Direcção artística: Jesse Rosenthal; Decoração: Heather Loeffler; Guarda-roupa: Michael Wilkinson; Maquilhagem: Kristen Barry, Kathrine Gordon, Evelyne Noraz, Trish Seeney, Wesley Wofford; Direcção de Produção: Shea Kammer, James Masi, Tim Pedegana; Assistentes de realização: Michele Ziegler, Xanthus Valan, Ben Bray, Guy Efrat, Jason Fesel, Allan Rafael, Peter Soldo; Departamento de arte: Theodore Suchecki, Chris Sullivan; Som: Jay Nierenberg, John Ross; Efeitos especiais: John Ruggieri; Efeitos visuais: Sean Devereaux, Lloyd Hackl, Marc D. Rienzo, Ryan Suchor; Companhias de produção: Atlas Entertainment; Intérpretes: Christian Bale (Irving Rosenfeld), Bradley Cooper (Richie DiMaso), Amy Adams (Sydney Prosser), Jeremy Renner (Mayor Carmine Polito), Jennifer Lawrence (Rosalyn Rosenfeld), Louis C.K. (Stoddard Thorsen), Jack Huston (Pete Musane), Michael Peña (Paco Hernandez / Sheik Abdullah), Shea Whigham (Carl Elway), Alessandro Nivola (Anthony Amado), Elisabeth Röhm  (Dolly Polito), Paul Herman (Alfonse Simone), Saïd Taghmaoui, Matthew Russell, Thomas Matthews, Adrian Martinez, Anthony Zerbe, Colleen Camp, Steve Gagliastro, Chris Tarjan, Zachariah Supka, Christy Scott Cashman, Simon Hamlin, Martie Barylick, Dawn Oliveri, Becki Dennis, Jay Giannone, Arthur Birnbaum, Rob DiNinni, Michael Fennimore, Jack Jones, Danny Corbo, Sonny Corbo, Robert De Niro (Victor Tellegio), etc. Duração: 138 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Janeiro de 2014.

quarta-feira, janeiro 16, 2013

CINEMA: GUIA PARA UM FINAL FELIZ

 
    GUIA PARA UM FINAL FELIZ

Passa-se algo de estranho nas nomeações para Oscars nos últimos anos, e isso tem a ver com a qualidade do cinema que se produz na América nestes últimos tempos. Olhando só para a lista dos nove nomeados para melhor filme do ano, e falando só dos que já vi, claro que há bons filmes, todos eles me parecem em princípio merecedores da atenção do espectador, mas… não há uma única obra-prima, uma só que seja para nos arregalar os olhos. Mas, acho que todos se recordam, em 1941, “Citizen Kane” esteve nomeado e não ganhou, o que ganhou foi “O Vale era Verde”, de John Ford. Mas reparem, entre os nomeados estavam ainda “Suspeita”, de Alfred Hitchcock, “O Sargento York”, de Howard Hawks, “Relíquia Macabra”, de John Huston, “Raposa Matreira”, de William Wyler, além de “Flores do Pó”, de Mervyn LeRoy, “O Defunto Protesa”, de Alexander Hall, “A Minha História”, de Mitchell Leisen, e “Com um Pé no Céu”, de Irving Rapper. Foi um ano interessante, dez títulos nomeados, com seis obras-primas a atropelarem-se para conseguirem chegar em primeiro. O melhor filme de sempre, que para mim continua a ser “O Mundo a seus Pés”, foi batido. Por uma outra obra-prima e até eu compreendo o embaraço dos membros da Academia. Mas veja-se o que se passa este ano. Obviamente que não há uma única obra-prima, nem sequer uma sobrinha para remediar (convém dizer que ponho de lado “Amor”, do austríaco Michael Haneke, porque apesar de estar nomeado nesta categoria, vai ganhar a de melhor filme em língua não inglesa, e ponto final). Os restantes é tudo boa gente, mas a andar na mediania. Por mim, até agora, prefiro o classicismo austero de “Lincoln”, de Steven Spielberg, mas acho muito interessantes “Argo”, “Guia para um Final Feliz”, enquanto espero para ver “OO, 30 Hora Negra”, “Django Libertado”, “A Vida de Pi” e “Bestas do Sul Selvagem”, e até percebo a nomeação de “Les Miserables”. Mas aqui não há uma única obra-prima. Enquanto há uns anos atrás havia várias no mesmo ano.
Posto isto, outro lamento, ainda que num mesmo registo. Não se trata de saudosismo retrógrado, mas apenas de verificar uma realidade. Por onde andam as brilhantes comédias norte-americanas de outros tempos? Uma comédia era um acontecimento, um entretenimento inteligente, sensível, por vezes sofisticado e elegante, outras vezes de um burlesco desenfreado, sorria-se ou gargalhava-se com gosto. Agora, descobrir uma comédia norte-americana que não nos faça corar de vergonha, é quase como encontrar uma agulha no palheiro. Vá lá, este ano temos uma: “Guia para um Final Feliz”, de David O. Russell, um realizador que nos dera duas obras anteriores interessantes, o descabelado “Três Reis” e “The Fighter – Último Round”. Agora num registo de comédia romântica adapta o romance de Matthew Quick, "The Silver Linings Playbook", e safa-se bem, ainda que sem deslumbrar. Apoiando-se em bons actores, como Bradley Cooper (que vem de “Ressaca” e outros tais), Jennifer Lawrence (a fabulosa descoberta de “Despojos de Inverno”) ou o eterno Robert De Niro, constrói um filme muito agradável de se seguir, sobre a vida destrambelhada do cidadão norte-americano que sobrevive num sobressalto constante, quer tenha saído de uma clínica psiquiátrica ou viva normalmente o seu dia a dia sem recurso a fármacos. 
 
 

Pat (Bradley Cooper) terá sido, antes de privarmos com ele no filme, um vulgar cidadão, casado, professor, filho de uma família algo estranha, até que um dia, ao regressar a casa, descobre que a mulher não está sozinha no banho e espanca o estranho que ocupa o seu lugar na banheira. Espanca-o bravamente e é preso, possivelmente julgado, descobrem que é bipolar, enfiam-no durante uns meses numa clínica, donde sai no dia em que o filme começa a acompanhá-lo. Regressa a casa dos pais, vive obcecado com Niki, a mulher que abandonou o lar e vive sozinha, e de quem está proibido de se aproximar. Acorda os pais às quatro da manhã para saber onde está uma gravação vídeo, mas enfim, não se trata de nada muito preocupante. Esfalfa-se a correr pelas ruas da vizinhança, para cansar o corpo, e encontra uma jovem amiga de uma amiga, Tiffany, que ficou viúva há pouco tempo e que adora sexo e o convida de imediato para uma sessão de queima de calorias. Mas ele continua casado, apesar de não praticar e relembra a Tiffany que ela também o é, apesar de o marido jazer no cemitério. Até aqui tudo bem, as personagens têm graça, estão muito bem defendidas pelos actores, a perseguição da obcecada sexual é muito divertida (e a actriz magnífica), o pai de Pat não é muito melhor que os outros perturbados psíquicos (ele vive a pensar na equipa da terra e nas vitórias que lhe podem trazer uma fortuna nas apostas) e há um antigo companheiro de clínica de Pat que aparece de vez em quando, em fuga. Ainda se devem referir a temerosa mãe de Pat e o irmão deste, que não destoa da família. Há ainda um polícia que tenta serenar os ânimos, com a calma necessária.
Depois o filme descai um pouco, com os ensaios para um baile, e tudo acaba num “happy end” que não agride ninguém. Há uma boa referência a “Singin’ in the Rain”, que serve de modelo para um “pas de deux”, analisado num ipod, o que dá bem o sinal dos tempos.
Nesta sociedade onde parece não existir bom senso (mas onde é que ele existe?) a loucura reparte-se habilmente entre os que estão dentro da clínica e os que estão fora, podendo muito bem trocar entre si que ninguém dará por nada.
A realização é sóbria e discreta, a interpretação boa, o filme escorre sem problemas de maior e como tal recebe a recompensa de sete nomeações para os Oscars, entre as quais a de melhor filme, melhor realizador, quatro actores e argumento adaptado. Realmente, descobrir uma comédia que não agrida a inteligência e a sensibilidade de um espectador que tenha mais do que nove anos e escolaridade correspondente, é difícil. Mas sete nomeações é obra! Veremos quantos Oscars revertem a seu favor. 
GUIA PARA UM FINAL FELIZ
Título original: Silver Linings Playbook
Realização: David O.  Russell (EUA, 2012): Argumento: David O. Russell, segundo romance de Matthew Quick ("The Silver Linings Playbook"); Produção: Bruce Cohen, Bradley Cooper, Donna Gigliotti, Jonathan Gordon, Mark Kamine, George Parra, Bob Weinstein, Harvey Weinstein; Música: Danny Elfman; Fotografia (cor): Masanobu Takayanagi; Montagem: Jay Cassidy, Crispin Struthers; Casting: Lindsay Graham, Mary Vernieu; Design de produção: Judy Becker; Direcção artística: Jesse Rosenthal; Decoração: Heather Loeffler; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Diane Dixon, Diane Heller, Lori McCoy-Bell, Janeen Schreyer, Carla White; Direcção de produção: Mark Kamine, Tim Pedegana; Assistentes de realização: Ben Bray, Xanthus Valan, Michele Ziegler; Departamento de arte: Marjorie Eber, April Hodick, Paul Maiello; Som: Odin Benitez, Kaspar Hugentobler, Tom Nelson; Efeitos especiais: Drew Jiritano; Efeitos visuais; Mark O. Forker, David P.I. James, Holt Lindenberger; Companhias de Produção: The Weinstein Company, Mirage Enterprises; Intérpretes: Bradley Cooper (Pat), Jennifer Lawrence (Tiffany), Robert De Niro (Pat Sr.), Jacki Weaver (Dolores), Chris Tucker (Danny), Anupam Kher (Dr. Cliff Patel), John Ortiz (Ronnie), Shea Whigham (Jake), Julia Stiles (Veronica), Paul Herman (Randy), Dash Mihok, Matthew Russell, Cheryl Williams, Patrick McDade, Brea Bee, Regency Boies, Phillip Chorba, Anthony Lawton, Patsy Meck, Maureen Torsney-Weir, Jeff Reim, Fritz Blanchette, Rick Foster, Bonnie Aarons, Ted Barba, Elias Birnbaum, Matthew Michels, Pete Postiglione, Richard Eklund III, Sanjay Shende, Mihir Pathak, Ibrahim Syed, Madhu Narula, Samantha Gelnaw, etc. Duração: 122 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal; Estreia em Portugal: 10 de Janeiro de 2013.

sábado, fevereiro 19, 2011

CINEMA: THE FIGHTER

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THE FIGHTER - ÚLTIMO ROUND
Não vale a pena dizer que este filme não é sobre boxe, porque tem todo o aspecto de o ser. Senão não haveria filmes sobre boxe, pois o boxe cruza-se sempre com outros aspectos da vida, e este desporto (?) funciona muitas vezes como metáfora mais ou menos evidente de outras realidades. A verdade é que há muitos, e quase todos bons e muito bons filmes que têm o boxe como ponto de referência, desde o clássico “Gentleman Jim”, de Raoul Walsh, ao mais recente “Million Dollar Baby”, de Clint Eastwood, passando por “O Touro Enraivecido”, de Martin Scorsese, ou os vários “Rocky”, de John G. Avildsen e Sylvester Stallone. Podem, e devem, citar-se ainda “Um Homem e o seu Destino”, de Ralph Nelson, “A Queda de um Corpo”, ou “O Grande Ídolo”, ambos de Mark Robson, “Nobreza de Campeão”, de Robert Wise, “O Campeão”, de Franco Zeffirelli, “Ali”, de Michael Mann, ou “Cinderella Man”, de Ron Howard. Haveria muitos outros a acrescentar a esta lista que mostra o boxe sob os mais variados ângulos.
Quer se goste ou não deste espectáculo, o boxe é muito cinematográfico e tem servido de base a muito boa gente, realizadores, argumentistas, directores de fotografia e actores, para exporem o seu talento. “The Fighter – Último Round” é apenas mais um exemplo, e nem por isso dos melhores, ainda que mereça alguma atenção.
Como já aconteceu em muitos outros casos, esta é mais uma história real transposta para o cinema. O boxeur em causa é o "Irish" Micky Ward, nascido a 4 de Outubro de 1965, em Lowell, no Massachusetts, que teve vida difícil e um percurso estranho, tão invulgar quanto a sua estratégia nos combates decisivos. Vindo de um bairro suburbano e pobre, habitado por um operariado desqualificado, inscrito numa família sem grandes perspectivas de vida, Micky Ward teve no seu meio-irmão mais velho, Dicky Eklund, o seu ídolo e o seu treinador inspirado.
Dicky poderia ter sido um grande nome no mundo do boxe se o crime e as drogas o não tivessem atirado para trás das grades. Verdade ou lenda, dizia que ganhara ao mítico Sugar Ray Leonard, e servia-se dessa história para inspirar autoridade. Micky sempre o viu como um ganhador, seguiu-lhe as pisadas, e ouviu os seus conselhos, mesmo quando o visitava na prisão, antes de cada novo combate. A técnica prescrita por Dicky era aguentar, aguentar, aguentar e desferir no final um ataque fulminante, quando já ninguém esperava uma reacção sequer daquele bombo da festa. Resultou, até ao cinturão de campeão do mundo de pesos leves. Numa carreira feita de altos e baixos, mais baixos que altos acrescente-se, este combate em Londres, perante um público adverso, foi a sua coroa de glória, que não se viria a repetir, diga-se.
Nada que não se tenha visto e revisto no cinema. A crónica do jovem infeliz que resiste e faz das dificuldades a sua derradeira vitória é tema banal. Trivial também o relato de mais uma luta de David contra Golias, o que fica bem documentado neste filme, no “último round”, quando o arrogante campeão do mundo em título julga levar de vencida, em três tempos, o atrevido pretendente. É mais uma história de perseverança com bom fim. Mais uma tormentosa luta para se impor, perante as dificuldades da vida. Da vida do dia a dia, que as imagens documentam, que fica igualmente simbolizada em cada combate que se trava no ringue, perante os holofotes que iluminam a metáfora e os olhares de quem acompanha o feito.
O que “The Fighter” tem de mais interessante é a descrição desse microcosmo familiar e bairrista, esse Massachusetts sem ponta de romantismo, a família, os amigos, as mulheres sentadas, paradas, a olharem os treinos, a conversarem à porta de casa, as ruas sem graça, a existência cinzenta. A figura da mãe, protectora e exploradora, as sete irmãs que testemunham, quase sem intervir. Depois há o confronto que é também cumplicidade entre os irmãos, que se incentivam e se defrontam, que fazem dos punhos arma de arremesso contra a adversidade.
Nas personagens dos dois irmãos, dois bons actores que se enfrentam igualmente através de processos de representação muito diversos, senão mesmo contraditórios. Mark Wahlberg (Micky Ward) é a serenidade, a calma, a sobriedade de processos, a interiorização das emoções, enquanto Christian Bale (Dicky Eklund) opta pela composição barroca, sobrecarregada de tiques, esforçada, moldada num corpo mortificado, deliberadamente emagrecido para se conter na macilenta figura. Por mim, acho que Wahlberg fica um pouco aquém e que Bale ultrapassa as medidas. Mas a Academia não vai pensar assim. Ela gosta de representações desta fibra e irá reservar a Christian Bale o Óscar de melhor actor num papel coadjuvante. Que ele é um excelente actor já o demonstrou. Noutros filmes. Aqui torna demasiado evidente essa condição. Sem necessidade. Amy Adams, por seu turno, sem alardes de vedetismo, dá-nos uma belíssima composição.
David Owen Russell (que antes assinara obras curiosas, como “Três Reis”, 1999, ou “Os Psico-Detectives”, 2004) oferece em “The Fighter” um bom trabalho que, sem deslumbrar, justifica nota positiva. Sobretudo pela toada quase neo-realista que imprime a uma boa parte da obra. Mais à vontade fora do ringue do que dentro dele, onde as suas imagens perdem no confronto com muitos dos títulos atrás citados, David O. Russell assina uma obra mediana que só está nomeada para vários Oscars porque a produção do ano não foi brilhante, e porque a Academia prefere o estardalhaço ao rigor. Sete nomeações (melhor filme, realizador, argumento original, montagem, actor secundário e actriz secundária, com duas nomeações) para este filme e uma para “Hereafter”, de Clint Easwood (melhores efeitos visuais)?
Anda alguém a gozar com a gente.

THE FIGHTER - ÚLTIMO ROUND
Título original: The Fighter
Realização: David O. Russell (EUA, 2010); Argumento: Scott Silver, Paul Tamasy, Eric Johnson, Keith Dorrington; Produção: Darren Aronofsky, Dorothy Aufiero, Keith Dorrington, Ken Halsband, David Hoberman, Eric Johnson, Ryan Kavanaugh, Todd Lieberman, Paul Tamasy, Tucker Tooley, Leslie Varrelman, Mark Wahlberg, Jeff G. Waxman; Música: Michael Brook; Fotografia (cor): Hoyte Van Hoytema; Montagem: Pamela Martin; Casting: Sheila Jaffe; Design de produção: Judy Becker; Direcção artística: Laura Ballinger; Decoração: Gene Serdena; Guarda-roupa: Mark Bridges; Maquilhagem: Donald Mowat, Johnny Villanueva; Direcção de Produção: Ken Halsband, Mark Kamine, Christopher Kulikowski, Andrew Troy; Assistentes de realização: Xanthus Valan, Michele Ziegler; Departamento de arte: Melissa B. Miller, Kevin L. Raper, Kurt Smith; Som: Odin Benitez; Efeitos especiais: Stephen R. Ricci; Efeitos visuais: Tim Carras, Joshua D. Comen; Companhias de produção: Closest to the Hole Productions, Fighter, Mandeville Films, The Park Entertainment, Relativity Media, The Weinstein Company; Intérpretes: Mark Wahlberg (Micky Ward), Christian Bale (Dicky Eklund), Amy Adams (Charlene Fleming), Melissa Leo (Alice Ward), Mickey O'Keefe (ele próprio), Jack McGee (George Ward), Melissa McMeekin, Bianca Hunter, Erica McDermott, Jill Quigg, Dendrie Taylor, Kate B. O'Brien, Jenna Lamia, Frank Renzulli, Paul Campbell, Caitlin Dwyer, Chanty Sok, Ted Arcidi, Ross Bickell, Sean Malone, José Antonio Rivera, Art Ramalho, Sugar Ray Leonard, Jackson Nicoll, Alison Folland, Sean Patrick Doherty, Sue Costello, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal: Valentim de Carvalho Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 10 de Fevereiro de 2011.
Classificação: ***